Toscana à boleia de Eusébio. No México, madre mia
Esta história aconteceu, mas ainda não foi publicada. Nem vai ser. Pelo menos em formato de livro. É (era) um segredo guardado a sete chaves. E é (era) um dos melhores golos de Eusébio. De que o próprio nem sequer se lembra, mas que David Toscana, o escritor mexicano contemporâneo mais vendido em todo o mundo, vai divulgar, num exercício que não lhe é nada habitual.
Em vez de discorrer sobre o assunto em cima de uma mesa, com uma máquina de escrever à frente, Toscana exprime-se através do telemóvel. Do outro lado está o i. Nós estamos em Lisboa, ele na Polónia. Mas isso foi ontem. Amanhã nós continuamos em Lisboa e ele vem ter connosco à Feira do Livro e também à apresentação do romance editado recentemente pela Oficina do Livro, “Santa Maria do Circo”.
Antes da viagem propriamente dita, uma viagem no tempo em que Toscana se livrou do excesso de carga, que é como quem diz de memórias guardadas. Eusébio, essa figura emblemática do futebol português que chegou ao Benfica em Dezembro de 1960, ainda Toscana não nascera (Monterrey, 1961), e só de lá saiu em 1975. Foi precisamente nesse ano que Eusébio deu uma guinada na sua vida e partiu para o México. Não de férias, mas para jogar futebol.
Destino: Monterrey, terra natal de David Toscana. Equipa: Club Fútbol Monterrey, que enchia o estádio com os milhares de adeptos, entre eles um jovem de 14 anos chamado David Toscana. O treinador do Monterrey era o chileno Fernando Riera, amigo de Eusébio. Foi dele o convite, aceite sem demora. Assina-se um contrato por dois anos, embora Eusébio só tenha feito dez jogos com um golo pelo meio – e foi logo nomeado capitão, proeza assinalável e só possível devido à força do seu nome. É aqui que se cruzam as histórias de dois nomes incontornáveis da cultura do século XX.
“No México, o futebol sempre foi vivido com muita paixão”, garante o escritor com base na experiência própria salpicada com a realidade mais que evidente – o México-país organizou dois mundiais, em 1970 e 1986, e o México-selecção não falha uma fase final desde 1986. “Eu, por exemplo, que sempre vivi em Monterrey, desde cedo fiquei viciado no futebol. Não me lembro muito bem do Mundial-70, porque só tinha oito anos, mas recordo–me perfeitamente do Mundial-74, na RFA, sem o México, afastado da qualificação pelo Haiti. Já viu isto?”
“Nesse Mundial-74 torci pela Polónia. Aquele guarda-redes Tomaszewski era um espectáculo à parte [e até defendeu dois penáltis nessa fase final, contra a Suécia e a RFA].” Mas então, perguntará o leitor, e a história com Eusébio? Calma lá, que isto dos mundiais tem que se lhe diga. Então não é que Toscana, fervoroso adepto do futebol, já não acompanha esse desporto desde o Mundial-2002! “No dia em que os EUA ganharam 2-0 ao México [oitavos-de-final, por sinal apitados pelo português Vítor Pereira], acabou-se. Desliguei a televisão e nunca mais vi nada.” Nem aquele Portugal-México do Mundial-2006? “Nem esse. Perder com os EUA foi como descobrir que a minha mulher estava com outro. Não posso aceitar isso.”
Mas e as memórias? “Boas, excelentes, mas acabou-se. Nem fiquei assim no Mundial-86, quando o México de Hugo Sánchez foi eliminado pela RFA nos quartos-de-final. O jogo foi em Monterrey e fui lá ver. Foram 120 minutos de futebol físico e musculado. Interessantíssimo, e o árbitro anulou-nos um golo de que, por muitas repetições que passem, ainda hoje não se percebeu a irregularidade. Foi 0-0, e só se resolveu nos penáltis. Nem aí fiquei tão mal.”
Pronto, pronto, já passou. O i faz de psiquiatra e senta Toscana num divã para que ele possa voltar a adorar o futebol. A palavra-chave é Eusébio. ‘Quando ele chegou a Monterrey, foi o caos, uma explosão de alegria. Ele já tinha 33 anos mas era O Eusébio, com “o” maiúsculo. E uma vez aconteceu-me isto, que marcou a minha vida da forma mais simples e original. Como o próprio Eusébio, um homem simples e original. Senão, veja lá: em 1975, estava a pedir boleia para ir para o Centro quando um carro parou, abriu o vidro e era O Eusébio. Perguntou-me se queria boleia para a cidade (Sul), que nada tinha a ver com o Centro (Norte), e eu disse que sim. A figura d’O Eusébio levou-me a entrar no carro. A viagem foi rápida, uns sete/oito minutos, e eu é que falei a maior parte do tempo, de tão deslumbrado que estava com aquela atitude da boleia, com a presença dele.’
‘Lembro-me de lhe ter perguntado sobre os quatro golos à Coreia do Norte nos quartos-de-final do Mundial-66 e de ele ter respondido que nessa altura se sentia em forma e apoiado por uma equipa fora de série, o que ajudou a transformar uma derrota de 3-0 numa vitória de 5-3. A resposta foi a mais humilde possível. O seu tom de voz não se alterou um segundo e manteve os olhos na estrada. Lembro-me disso porque… sei lá… estava à espera de uma explicação gestual, efusiva, triunfal. Mas não. Disse aquilo dos quatro golos num jogo do Mundial com uma tranquilidade impossível de imaginar. Ele continua assim?”, pergunta Toscana. A resposta podia vir da nossa parte, mas preferimos dar a conhecer a versão de Eusébio.
Quando atende o telemóvel e ouve a história, Eusébio despeja tudo o que lhe vem à cabeça sobre a aventura em Monterrey. “Como é que ele se chama? Toscana? Não me lembro, mas eu sempre quis ajudar toda a gente. Se visse uma pessoa a pedir boleia, parava e fazia-lhe a pergunta do ‘para onde vais?’. Agora também não sou maluco e não dava boleia a pessoas que não conhecia nem àquelas que só pelo olhar dava para ver o que eram. O que acho estranho é esse nome não me dizer nada, porque podia ser filho de alguém do clube. Desse episódio em concreto não me lembro. O que sei é que o meu carro em Monterrey era um Chevrolet Sport, que tinha comprado no Texas. Levei-o para o México porque o adorava. Mais tarde vendi-o ao presidente do Monterrey que, pelos vistos, gostava tanto dele como eu. Grande carro. Gostava de o conduzir novamente para sentir aquela força. Bons tempos”, recorda, nesta singular viagem ao passado, Eusébio, que vive em Lisboa, a cidade que hoje (e até sába[1]do, 17) recebe David Toscana. Os dois novamente juntos. E à boleia do i.
in jornal i, Set 2012