Great Scott #523: Único coreano a jogar futebol pelo Japão nos Jogos Olímpicos?
Kim Yong-sik
A Ásia esconde muitos encantos e alguns desastres, como terramotos e guerras – uma delas tem a ver com as Coreias, anexadas pelo Japão entre 1910 e 1945. Com o fim da 2.ª Guerra, em Agosto 1945, o Japão perde esse território e as duas Coreias são ocupadas, política e economicamente, por dois aliados. A do Norte está entregue à URSS, a do Sul aos EUA. Oficialmente, o Japão só reconhece a independência dessas Coreia em Abril 1952 com a assinatura do Tratado de São Francisco.
Adiante. Há um antes e um depois na história desses países, com a figura de Kim Yong-sik no epicentro. Ponto prévio, o homem joga à bola como poucos. Frescura física, habilidade inata e tacticamente evoluído, Kim deslumbra por onde passa. Seja 10, seja 9. Tanto se lhe dá, maestro ou goleador, dá água pela barba a qualquer adversário. Daí que seja convocado para representar o futebol japonês nos Jogos Olímpicos 1936, em Berlim.
Facto, é a primeira equipa asiática de sempre numa grande competição. E nada melhor que causar a surpresa dos oitavos, com 3:2 vs Suécia. A vitória em si é uma surpresa xxl, mais ainda se tivermos em conta a vantagem sueca de 2:0 ao intervalo. Na segunda parte, Kawamoto reduz aos 49’, Ukon empata aos 62’ e Matsunaga dá a volta aos 85’. No Estádio do Hertha, os cinco mil espectadores nem querem acreditar nos seus olhos. O Japão, desconhecido Japão, elimina a Suécia. Na jogada do 3:2, o nosso Kim desmarca Matsunaga e faz-se notar pelo toque de bola.
(nos ¼, a futura campeã Itália dá 8:0 vs Japão e acaba-se o sonho)
Acontece a 2.ª Guerra e o Japão deixa de mandar nas Coreias. Com a independência, há um salto de personalidade. A sociedade cresce, o futebol acompanha. Nos Jogos Olímpicos 1948, em Londres, a Coreia do Sul apresenta-se ao serviço. Na bagagem, o sonho de passar a primeira eliminatória, vs México. Doze anos depois, Kim já conta 38 primaveras. E então, no pasa nada. É o número 10, e ponto. Nos 5:3 vs México, dá duas assistências e vira herói nacional. Mais uma vez.
(nos ¼, a futura campeã Suécia dá 12:0 e acaba-se a papa doce)
A vida avança, Kim veste a pele de seleccionador sul-coreano e apura-se para o Mundial-54, na Suíça. A façanha é um hino à persistência. A Coreia do Sul convivera com o domínio do Japão e depois a guerra das Coreias. A economia está em baixo. Mesmo assim, Kim sonha com o Mundial. E incute o desejo junto da federação e até do presidente sul-coreano Syngman Rhee. O sorteio dá Japão e o sistema da FIFA é jogos de ida e volta. E agora?
Insistimos, a Coreia do Sul não tem dinheiro para viajar. E agora? Kim, sempre ele, tem uma ideia e comunica-a ao presidente Rhee. O Japão faz os dois jogos em casa e paga as despesas da Coreia. Baaaaah, Rhee abana a cabeça em discórdia. Pormenor, Rhee é capturado e torturado pelas tropas japonesas na tal guerra. Não, a resposta é não. Kim insiste pelos flancos, fala com a federação e volta a falar com Rhee. As conversas demoram meses, o Japão (e a FIFA) aguarda o veredicto.
Às tantas, Kim saca uma frase para a história. ‘Vamos ganhar ao Japão. Se perdemos, atiramo-nos todos ao Mar da China.’ Bem, aqui Rhee acorda para a vida e aceita o repto. Dois jogos no Japão, vamos lá. Favorito até à sétima casa, o Japão esfrega as mãos de contentamento e já se vê na Suíça como primeiro representante asiático de sempre nos Mundiais. Erro crasso.
A maior capacidade atlética da Coreia do Sul vira do avesso a superior técnica do Japão e regista uma surpresa maiúscula nos dois jogos em Tóquio, com 5:1 e 2:2. Isso mesmo, a Coreia do Sul dá cinco e, atenção, o Japão até marca primeiro. Debaixo de um nevão insuportável, a tal força física mais o desejo de derrubar outras barreiras do passado valem a goleada.
Uma semana depois, no mesmo estádio e com o mesmo árbitro de Hong Kong, agora debaixo de uma saraivada impressionante, a Coreia do Sul sela o apuramento com um 2:2. Suíça, aí vamos nós. A viagem é um pesadelo logístico. À falta de um voo comercial directo entre Coreia e Suíça, a selecção pede ajuda à força aérea dos EUA estacionada em Seul. Fretam-se então dois aviões para levar 11 elementos em cada um.
Até aqui, tudo bem. O problema é o resto. Para já, o avião está preparado para calmeirões norte-americanos e os jogadores sul-coreanos apresentam-se tão baixos tão baixos tão baixos de estatura que nem chegam com os pés ao chão. O voo dura 48 horas com paragens para gasóleo em Manila, Hanoi, Calcutá, Karachi, Síria e Itália.
Quando aterram na Suíça, os sul-coreanos nem sabem a quantas andam e apanham duas valentes tareias, vs Hungria (9:0) e Turquia (7:0) na fase de grupos. Seis anos depois, Kim continua à frente da Coreia do Sul e conquista a Taça da Ásia 1960, em casa, numa campanha imaculada, com três vitórias vs Vietname do Sul (5:1), Israel (3:0) e China (1:0). Por tudo isso, Kim Yong-sik é considerado o padrinho do futebol da Coreia do Sul. Grande.