Yuran. ‘O FC Porto era uma família, o Benfica uma brincadeira’

Mais You Talkin' To Me? 05/07/2022
Tovar FC

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Yuran. ‘O FC Porto era uma família, o Benfica uma brincadeira’

Mogrovejo, Paz, N’Tsunda, Zwane e Baroni. Por incrível que pareça, é aqui que começa a caminhada para o inédito penta do futebol português. São estes cinco jogadores os primeiros a ser contratados pelo FC Porto, cortesia Marcelo Housemann, empresário argentino com ligações privilegiadas com o técnico inglês Bobby Robson. A ideia dos portistas é competir com o campeão Benfica mas cada nome é pior que o outro e só se salva o peruano Baroni, o único que joga, ainda que espaços (14 jogos, todos a suplente), durante a época. Para salvaguardar este quinteto de fiascos, o FC Porto entra finalmente em cena e contrata jogadores a sério, como Emerson (ex-Belenenses) e Rui Barros (Marselha).

Está fechado o plantel? Não, faltam mais dois jogadores, que só chegam no último dia do mercado: Serguei Yuran e Vassili Kulkov. Se o FC Porto dá tiros nos pés com o penta de reforços de meia tigela, o Benfica não lhe fica atrás. Além de trocar o treinador campeão (Toni) por Artur Jorge, este novo timoneiro dispensa os dois russos, que, sem clube, rapidamente se apresentam nas Antas. Para jogar e para ganhar – foram aliás os primeiros e únicos estrangeiros a sagrarem-se campeões nacionais em anos seguidos por equipas diferentes. Foi Yuran quem nos disse esta curiosidade.

Yuran, boa tarde. Como é que está?

Boa noite, aqui já é boa noite [em Moscovo, são três horas a mais que em Lisboa]. Estou bem, obrigado.

Quero entrevistá-lo mas antes disso quero saber se posso falar português à vontade?

Claro que sim. Aprendi português há mais de 10 anos e pratico-o de vez em quando. Há uns três anos, estive aí no Algarve com a minha equipa [Shinnik Yaroslavl]. Olha, perdemos com a Olhanense, por exemplo. E pratiquei o meu português. Com o árbitro. Eheheh

E agora o que faz?

Sou um treinador desempregado. Mas daqui a 15/20 dias, hei-de arranjar uma solução. Há conversações com um clube e tudo se resolverá.

Do que eu quero falar consigo é sobre a carreira de jogador em Portugal. Sabia que neste dia 10 Setembro 1994, você e Kulkov assinaram pelo FC Porto?

Do dia em si, não. Mas lembro-me dessa troca e do que ela provocou no futebol português. Afinal, não é todos os dias que dois jogadores saem de um campeão para outro.

De um campeão para outro?

Sim. Nós fomos campeões pelo Benfica em 1994 e fomos campeões pelo FC Porto em 1995. Fomos os primeiros – e, se não engano, até agora únicos – jogadores estrangeiros a vencerem dois campeonatos nacionais seguidos por clubes diferentes.

Bem visto.

Grandes recordações. De um lado e do outro.

Havia diferenças entre Benfica e FC Porto?

Ahhhh, claro que sim. O FC Porto era uma família, o Benfica… uma brincadeira. Naqueles tempos, o Benfica trocava de treinador constantemente e até de presidente. No FC Porto, ainda hoje isso é impensável. Há um homem-forte que move todo um clube, à procura de títulos e mais títulos. Nunca adormecem à sombra da glória. Têm sempre fome. Por isso, o FC Porto foi bicampeão europeu e bicampeão mundial nos últimos 25 anos. Por isso, o FC Porto está sempre nos oitavos-de-final da Liga dos Campeões ou da Taça UEFA. Ou da Taça das Taças, como foi o caso da época onde joguei nas Antas [FC Porto eliminado pela Sampdoria, nos quartos-de-final, após desempate por grandes penalidades]

Mas o Benfica foi quem o trouxe para a Europa, certo?

Sim. Cheguei a Lisboa em 1991. No ano anterior, ganhei tudo ao serviço do Dínamo Kiev: campeão da URSS, vencedor da Taça da URSS e eleito o melhor jogador da URSS. Além disso, marquei cinco golos na Taça das Taças, um deles em Barcelona [1-1]. Isso deu-me projecção e o passo normal era uma transferência para um grande do futebol europeu. Calhou ser o Benfica. O Eriksson insistiu na minha contratação.

Como foram os tempos em Lisboa?

Loucos, eheheh. Agora entendo a raiva de algumas pessoas, mas têm de compreender que eu e o Kulkov, que chegou na mesma época que eu, só que vindo do Spartak Moscovo, viemos de uma realidade completamente diferente. Na URSS, era treino, estágio, treino, estágio. Uma seca, pá! Os jogadores passavam muitas horas juntos, sem nada para fazer. Quando chegámos a Portugal, havia um treino de hora e meia e depois era dia livre para o que quiséssemos fazer. Por isso, íamos às compras, íamos aos restaurantes, íamos passear, íamos para os bares. Agora entendo que isso é errado mas aquela realidade entrou em choque com a nossa cultura e deixámo-nos absorver por ela. E foi bom.

Mas quando iam aos restaurantes ou aos bares, nenhum adepto mais irritado vos incomodou?

Nunca, nunca. Sempre tivemos o respeito de toda a gente. Inclusive, algumas pessoas até nos ofereciam copos. E diziam-se do Benfica. Será que era do Sporting e só nos queriam enganar? Eheheh

E no dia seguinte, a ressaca?

Não havia ressaca nenhuma. Treinávamo-nos normalmente, como se nada fosse. E quando tínhamos algum problema, falávamos com o Eriksson [o treinador sueco, na primeira época de Yuran e Kulkov, em 1991-92].

Então, o Yuran nunca teve problemas com o Benfica?

Só nunca contei com a compreensão do Mozer. Ele estava sempre a implicar comigo.

Porquê?

Não sei, pergunta-lhe tu a ele. Ele não devia gostar das pessoas de Leste. Também implicou com o Ivic [treinador jugoslavo no início da época 1992-93, substituído em Dezembro por Toni]. Comigo, às vezes, era duro naquelas bolas divididas. Eu revidava e lá vinham problemas, porque ele não aceitava que lhe tocassem. Quantas vezes o treino foi interrompido para os outros nos separarem? Não há dedos nas mãos para isso. Mas o problema maior nem era esse.

Então?

No FC Porto, o Paulinho Santos e eu também estávamos sempre às turras. Depois, no balneário, os mais velhos como o João Pinto juntavam-nos, abraçavam-nos e serenavam os ânimos. Costumavam chamar-nos o Mike Tyson I e o Mike Tyson II. Íamos almoçar em grupo, ali para os lados de Vila do Conde, de onde era natural o Paulinho Santos, ou então ia só almoçar com o Mourinho e tudo ficava resolvido. No Benfica, não havia esse sentimento de aproximação depois dos treinos. As brigas entre mim e o Mozer eram constantes e nunca nos acalmavam os ânimos. No fim do treino, cada um ia para a sua vida. No dia seguinte, eu aparecia descontraído e o Mozer parecia que trazia o problema do dia anterior consigo e aí era pior ainda.

Como se deu a troca Benfica-FC Porto?

Foi tudo muito rápido. O Artur Jorge não contava connosco e tratámos de arranjar um clube, com a ajuda do nosso empresário [Paulo Barbosa]. Tanto eu como o Kulkov dávamo-nos muito bem com o Bobby Robson, sobretudo depois do acidente do Cherbakov [avançado russo que ficou tetraplégico depois de um acidente de viação na Avenida da Liberdade], em que nós os três, mais o Mourinho [adjunto de Robson], encontrávamo-nos no hospital [São José, em Lisboa] com regularidade. Ficámos amigos desde então e trocávamos muitas mensagens. Quando soube que o Benfica nos dispensara, o Robson falou com o Pinto da Costa e o negócio fez-se num instante. O Benfica ainda ganhou muito dinheiro com esta dupla transferência [a segunda da história entre os dois clubes, depois de Dito e Rui Águas terem feito o mesmo trajecto, em 1988-89], mas nós é que voltámos a ser campeões.

Alguma recordação especial dessa época?

Ahhhh, claro que é aquele golo na Luz [2 de Outubro de 1994]. Marquei o 1-0 aos 65 minutos, fui expulso por dois amarelos aos 75’ e o Isaías empatou aos 90’. Acabou 1-1, mas marcar aquele golo foi muito bom, libertador. A caminho do balneário, o José Mourinho, naquele estilo que ainda hoje lhe é característico, agarrou-se a mim e gritava para o ar ‘és o maior’, ‘estás aqui é para marcar’, ‘mostraste aos gajos que és bom’, ‘deste-lhes uma lição’. Eu só me ria, enquanto os jogadores do Benfica seguiam cabisbaixos, como o treinador [Artur Jorge] e até o presidente [Manuel Damásio]. O Mourinho deixou a porta do balneário aberta e continuava a falar altíssimo para os do Benfica ouvirem.

Foi bicampeão nacional e depois voltou à Rússia.

Estava cansado e triste. Aconteceram muitas coisas más, como o acidente do Cherbakov [pausa], a morte do Rui Filipe [mais uma pausa]. Bem sei que são coisas que acontecem mas que de certa forma nos enfraquecem. Por isso, quis voltar para casa. E até fui bem sucedido, no Spartak Moscovo.

Ao lado do Kulkov?

Claro, éramos inseparáveis. E eu pergunto: quantas equipas ganharam todos os seis jogos da fase de grupos da Liga dos Campeões? O Spartak Moscovo, em 1995-96, num grupo com Blackburn, Légia Varsóvia e Rosenborg. Seis jogos, seis vitórias. Eu marquei quatro golos, um em Blackburn quando ganhámos 1-0. Foi, aliás, esse o golo que me fez transferir para o Millwall, também da Inglaterra, a meio dessa época.

Deixe-me adivinhar: você e o Kulkov?

Claro que sim, mas então? O Bobby Robson aconselhou-nos ao Mick McCarthy, treinador do Millwall. O problema é que mal chegámos, o Mick saiu para treinar a selecção da Rep. Irlanda. Com outro treinador, não jogámos muito. Ou mesmo pouco.

in jornal i, Jan 2011

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