Great Scott #560: Único guarda-redes com 63 defesas num jogo?
Shep Messing
Génio e figura. Pelé.
Génio e figura, Messing.
Quem? Pelé, brasileiro, número 10 por excelência, único tricampeão mundial (1958, 1962, 1970).
Quem? Messing, Shep Messing, norte-americano, bom vivant por natureza e guarda-redes nas horas vagas.
Os dois encontram-se num lendário jogo da liga norte-americana NASL, a 20 Junho 1975, em Boston.
Pelé acabara de assinar pelo Cosmos, a sua figura arrasta multidões. Eusébio joga pelos Boston Minutemen, a sua figura também arrasta multidões. O estádio é pequeno para duas figuras do alto, só 12 mil lugares. Os bilhetes vendem-se num abrir e fechar de olhos. Surpresa, há 18 mil pessoas. E agora? A malta estica-se para junto das linhas laterais e finais, como se fosse a final da Taça de Portugal 1974.
Eusébio, cronicamente lesionado no joelho direito, faz o 1:0 de livre directo, aos 12 minutos. Os adeptos invadem o relvado e abraçam o herói. É uma imagem comovente. De regresso aos seus postos fictícios, o jogo recomeça com aparente normalidade. Atenção ao uso da palavra aparente. A bola vai ao meio, sai o Cosmos. Em menos de 60 segundos, Pelé arranca um pontapé e faz o 1:1 para desgosto do guarda-redes Shep Messing. Toma lá mais uma invasão de campo, agora de 12 minutos, e a sorte de Pelé é a força dos seus seguranças a impedir o banho total da multidão. Curiosidade maiúscula, o golo é anulado. Diz o árbitro, Pelé faz falta sobre um defesa.
Tudo bem, o Cosmos empataria mais tarde, aos 88’, por Liveric. Como os jogos dos EUA não contemplam empates, vamos para prolongamento. Já sem Eusébio nem Pelé. E se o português é pelo próprio pé, o brasileiro é deitado numa maca, lesionado na ressaca daquela invasão de campo – e viaja para o Brasil, de onde só volta na semana seguinte, já em perfeitas condições para marcar um golo aos Washington Diplomats antes de passar pela Casa Branca.
No ano seguinte, em 1976, já Eusébio está nos Toronto Metro-Croatia (sagrar-se-ia campeão da NASL nesse ano ao serviço de uma equipa canadiana, com um golo de livre directo, pois claro, no Super Bowl) e Pelé continua o menino bonito de Nova Iorque. No dia 16 Junho 1976, no Estádio dos Yankkes, mais um Pelé vs Messing. Desta vez, 2:2. Prolongamento, ainda 2:2. Tudo se decide nos penáltis.
O último da série é de Pelé. O 10 arranca e Messing defende por cima da trave. A fotografia é icónica, ainda hoje: Messing a confortar Pelé. Passam-se uns dias e Bob Rigby lesiona-se com gravidade. De repente, o Cosmos está sem um guarda-redes à alturta dos seus pergaminhos. Pelé pergunta então aos directores se podem ir buscar Messing aos MInutemen.
A cena é caricata, descrita pelo próprio Messing. ‘Estávamos no aeroporto, à espera de um voo para Seattle, mas não tínhamos bilhetes porque o nosso dono estava a ser alvo de uma investigação do governo sobre um investimento em petróleo e fala-se de falência, prisão, favores e tal. Bom, às tantas, dentro do Aeroporto Logan, o meu treinador Hubert Vogelsinger atende o telefone, fala, desliga e diz-me ‘acabaste de ser transferido para o Cosmos em troca de 22 bilhetes de avião para Seattle’.
Em Nova Iorque, a cultura de bom vivant de Messing é elevada ao infinito. Shep conhece a cidade como a palma da sua mão e ensina Pelé a aproveitar todos os seus cantos. No campo, diz Messing, a energia de Pelé é contagiante. ‘No fim de cada treino, ele queria treinar remates à baliza e pedia-me mais 20 minutos de paciência para aperfeiçoar os seus gestos. Aperfeiçoar? Ele não precisava nada daquilo, já era perfeito e, mesmo assim, insistia. Também me lembro do que Pelé dizia antes de cada jogo, ainda no balneário. ‘Amigos, por favor, é só mais este jogo’. Ele queria ser campeão da NASL e retirou-se com o título, em 1977. Na festa, demos uma volta olímpica, idealizada por ele. Os adeptos foram à loucura. No fim dessa volta, Pelé encostou-me a cabeça ao ouvido e disse-me ‘só mais uma volta’. E demos mais umas quantas.’
Ora bem, Shep Messing é campeão da NASL pelo Cosmos em 1977, com Pelé. Cinco anos antes, Shep é convocado pela selecção dos EUA para os Jogos Olímpicos Munique-1972. Na primeira fase da qualificação, Messing é titular de caras e até é o herói no desempate por penáltis vs El Salvador, na Jamaica. ‘Ao quarto penálti, despi a camisola e comecei a gritar na direcção do marcador, o Mario Castro. Estamos uns 40 graus e aquilo foi libertador. Quando voltei a vestir a camisola, ainda conseguia ouvir os gritos do meu seleccionador. E então? A verdade é que consegui o que queria e a bola saiu ao lado uns bons 20 metros.’
A selecção dos EUA avança para a segunda fase e decide em casa. Messing é titular vs México em São Francisco (2:2) e é suplente de Ivanow vs Guatemala (2:1) em St Louis. Já em Munique, a relação de Messing com o seleccionador Guelker deteriora-se a partir do primeiro dia. Guelker não quer a selecção envolvida na cerimónia de abertura dos Jogos, Messing é simplesmente contra essa regra. E fura mesmo o estabelecido. ‘Era o que faltava, trabalhei dois anos para estar nos Jogos Olímpicos e ia falhar um dos momentos mais importantes?’
Guelker toma nota da ocorrência e inclui Ivanow nas duas primeiras jornadas, vs Marrocos (0:0) e Malásia (0:3). Messing é banco uma e outra vez. À terceira é de vez. No dia 31 Agosto, vs Alemanha, a anfitriã, no Olímpico de Munique, os EUA entram com Shep no onze. É um jogo de sentido único, a diferença é gigante. A Alemanha supera as expectativas, goleia 7:0. Ao todo, 82 remates. Isso, quase um por minuto. Algumas bolas ao lado, outras golo e umas quantas para defesa de Shep. ‘Fiz 63 defesas, deve ser recorde.’ Claro.
Cinco dias depois, Messing é surpreendido com o famoso ataque terrorista do grupo palestino Setembro Negro na noite de 5 Setembro a 11 atletas israelitas. Pormenor, Messing é judeu. E está na linha de fogo, por assim dizer. ‘Aquilo estava a ser a Disneylândia para mim e, de repente, tornou-se a casa dos horrores. Nunca me vi como judeu até esse dia. A partir daí, convivo assustado com esse estatuto. É absurdo. Como absurdo foi entrarem-me pelo quarto dentro e tirarem-me dali sem dizer uma palavras. Quer dizer, os dois polícias falavam alemão e eu não entendi nada. Só depois, muito depois, é que percebi tudo e o meu quarto até era próximo do dos atletas sequestrados, a uns 20 metros.’
Vida cheia de vida, a de Shep Messing.