Great Scott #634: Primeiro positivo de doping em Mundiais de futebol?
Jean Joseph
Haiti no Mundial, eis uma notícia inesperada. Jamais visto, nunca mais repetido. Estamos a falar da campanha de qualificação da Concacaf para o Mundial-74. A FIFA, sabe-se lá porquê, escolhe Porto Príncipe (capital do Haiti) como sede para o torneio hexagonal.
Guiado por Papa Doc desde 1957, o Haiti é um país a evitar pelo regime político despótico e sanguinário. Só que a FIFA é o que se sabe. Com a morte do ditador sem escrúpulos (soa a pleonasmo, bem sei), salta para a ribalta o seu filho, Baby Doc. Pior a emenda que o soneto. E a FIFA continua empenhada em dar cobertura a essa malta.
O resultado é catastrófico e o Haiti ganha o grupo com ajudas dos árbitros. No 2:1 vs Trindade e Tobago, o salvadorenho José Roberto Enríquez anula cinco golos (ya, cinco) aos visitantes. Um ano depois, a FIFA suspende para todo o sempre Enríquez mais um dos fiscais-de-linha, o canadiano James Higuet. Adiante, a uma jornada do fim, Haiti celebra o apuramento inédito e Baby Doc entra no balneário para saudar os novos heróis. Mais tarde, antes da partida para a RFA, o político recebe os convocados na sua mansão e exalta o poder haitiano. O céu é o limite.
O Mundial em si é uma aventura, até porque Haiti calha no grupo 4 com Itália, Polónia e Argentina e joga em Munique, no Estádio Olímpico. A estreia é no dia 15 Junho vs Itália, vice-campeã em título, e o público alemão puxa pelo Haiti. Ao intervalo, um surpreendente 0:0. No reinício, Phillipe Zorbe faz um lançamento longo para a desmarcação do avançado Emmanuel Sanon, cuja velocidade apanha a defesa italiana de surpresa, e o próprio Zoff. É golo, espantoso, 1:0 para o Haiti. Mais importante ainda, Zoff sofre um golo pela selecção ao fim de 1.143 minutos. É uma proeza assinalável. E de que maneira. Tanto assim é que a Itália vira para 3:1 e só se fala do 1:0 de Sanon a Zoff.
A imprensa internacional elogia o futebol haitiano e há jogadores a destacar com o líbero Jean-Joseph Ernst, sempre muito certo na abordagem aos lances, sobretudo a dobrar o lateral-direito Auguste. Para o sorteio do controlo anti-doping, o Haiti envia Sanon e Jean-Joseph. Nada de especial. Como prémio pelo esforço e pela dedicação, toda a selecção haitiana visita o jardim zoológico de Munique na manhã seguinte ao jogo. Dois dias depois, no dia 18 Junho, cai a notícia como uma bomba: Ernst acusa positivo de Phenylmetrazin. Faz-se uma segunda análise e a substância continua lá.
Gottfroed Schoenholzer, de nacionalidade suíça e director do anti-doping da FIFA, é quem anuncia o primeiro caso de doping em Mundiais. O francês Patrick Hugeaux, médico da selecção do Haiti, confirma o veredicto. E o jogador? Jean-Joseph diz de sua justiça. ‘Tomei Preludium para as crises de asma, o medicamento foi-me recomendado pelo médico de família.’
Hugeaux desmente-o, à cara podre. ‘Jean-Jopseh não é asmático, estou com os jogadores há três meses, tenho a ficha médica de cada um deles e ele não sofre de asma. Além disso, Preludium nunca foi remédio para a asma, funciona, isso sim, como um estimulante.’ Como se isso fosse pouco, ainda faz pouco do jogador. ‘Ele não é inteligente o suficiente para saber o que está a fazer.’
Passa-se um dia, já é terça-feira, e Jean-Joseph é suspenso do Mundial. À frente dos jornalistas, uma série de agentes da polícia secreta do Haiti invade o centro de estágio da selecção do seu país e, à base de murros e pontapés, arrasta Jean-Joseph para dentro de um carro. Daí para o Hotel Sheraton, em Munique, onde espera um avião de regresso a casa. Quando chega ao Haiti, o líder Baby Doc condena o comportamento de Jean-Joseph e manda-o para um campo de concentração durante dois anos. Só é libertado para voltar à selecção na fase de apuramento rumo ao Mundial-78 – curiosamente, o escocês Willie Johnston é apanhado nas malhas do doping na Argentina e é o segundo caso; o terceiro é o argentino Maradona em 1994.
De volta a Jean-Joseph, a substância encontrada na sua urina é a mesma do nadador norte-americano Rick DeMont, campeão olímpico dos 400 m livres em Munique-1972. Antes da partida para os Jogos Olímpicos, o próprio DeMont anuncia ao Comité Olímpico dos EUA o seu estatuto de asmático para justificar a dosagem de Marax, receitado pelo médico. O problema é que o Comité Olímpico dos EUA não faz a devida ligação com a lista de produtos aceites e não aceites pelo Comité Olímpico Internacional.
Vai daí, De Mont toma Marax, à falta de informação, na véspera da final dos 400 metros. Vítima de um ataque de madrugada, De Mont saca um comprimido entre a uma e as duas da manhã e toma um outro já de manhã, durante o pequeno-almoço. Já refeito do susto, vai à água e ganha por um centésimo de segundo sobre Cooper. Em vão, o Marax é uma substância proibida e a medalha de ouro vai para o australiano Brad Cooper.
Em 1996, DeMont processa o Comité Olímpico dos EUA por má informação da equipa médica e o caso embrulha-se uns quantos anos. Por fim, em 2001, os médicos aceitam a responsabilidade do erro e aí é a vez do Comité Olímpico dos EUA pedir ao Comité Olímpico Internacional a reentrega da medalha de ouro dos 400 metros livres para DeMont. Até hoje.