Chiquinho Conde. “O Marinho Peres falava ‘gente, o que vocês acham: vamos jogar a pressionar ou deixamos vir o adversário?’”
O futebol português é assim, sui generis. Nos anos 80, há três Chiquinhos nos nossos relvados: o Conde, o Carlos e o Carioca. Cada um no seu clube começado pela letra B: Belenenses, Benfica e Boavista. Ele há coisas. Só visto mesmo, contado nem se acredita. Dos três, o mais rodado é Chiquinho Conde, com 105 golos espalhados por 405 jogos em Portugal. Craque.
Bom dia Chiquinho, tudo bem?
Tudo bem, muito obrigado. E o Rui?
Impecável. Viu a imagem que lhe enviei?
Claaaaro, adorei. É o meu primeiro jogo internacional.
Tinha quantos anos?
21.
Eiscccchhhh, tão novo.
Ahahahah, atenção que podia ter vindo para Portugal ainda mais cedo.
A sério, para onde?
Benfica.
Benfica, em que ano?
Mil novecentos e oitenta e seis. No ano anterior, transferi-me do Beira para o Maxaquene. Fomos campeões de Moçambique, fui o melhor marcador do campeonato e estagiámos na Cruz Quebrada. O nosso treinador era o Rui Caçador. No Verão, o Benfica foi jogar connosco a Maputo, como era tradição no final do campeonato português, e quis trazer-me. Só que.
Só que?
Na altura, não havia legislação para os jogadores moçambicanos do futebol profissional. Era o regime da altura. Como sou um homem cheio de sorte, o Belenenses foi a Moçambique no ano seguinte para jogar com o Maxaquene e marquei um golo. Perdemos 3-1, mas o golo é meu, ahahahah. O presidente Mário Rosa Freire disse ‘temos de levar este miúdo para Portugal’ e começou aquele braço-de-ferro.
Benfica e Belenenses?
Isso mesmo. O Rui Caçador, já ligado à formação do Benfica, jantava com dirigentes do Benfica e depois almoçava com dirigentes do Belenenses. Às tantas, os dois clubes mandaram pessoas até Moçambique para negociar o meu passe e, aí, o Belenenses foi mais lesto.
Quanto?
Deu 120 mil dólares ao Maxaquene. O Benfica estava então em digressão pelas Américas e fez-se representar por João Rodrigues. O Belenenses enviou o empresário Abdul Zubaida.
Aquele que transferiu o Seninho do FC Porto para o Cosmos?
Esseeee mesmo.
Maravilha, que história.
Pois é, foi assim que fui parar ao Belenenses.
E jogou de caras com o Barcelona.
Pois foi, o Barcelona de Zubizarreta, Schuster e LIneker. Perdemos lá 2-0, sofremos os dois golos muito perto do fim. O jogo estava controlado e convencemo-nos que ia ficar 0-0. Foi um balde de água fria.
Duas semanas depois, 1:0 no Restelo.
Golo do Mapuata, a passe do Mladenov. Um golo bem cedo, por sinal. Foi bom para impor ainda mais respeito ao Barcelona. Eles vieram defender a vantagem e, de repente, viram-se aflitos. A balança podia ter caído para o nosso lado, criámos situações para levar o jogo até ao prolongamento. E aí nunca se sabe.
Jorge Martins, 1.
Um dos melhores guarda-redes que vi na minha carreira: jogava como ninguém com os pés, corajoso a sair da baliza, fortíssimo entre os postes e com uma personalidade fantástica. O Justino, que hoje é o treinador de guarda-redes da selecção nacional, acabou por ser o suplente eterno do Jorge.
Teixeira, 2.
A sua alcunha era o Tarzan pela disponibilidade ilimitada. Médio defensivo de origem, o Marinho Peres puxou-o para lateral-direito, o que diz bem da sua versatilidade.
José António, 3.
Mítico capitão. Era lindo vê-lo a jogar, não fazia faltas e coordenava a equipa na posição do fora-de-jogo.
Espectáculo.
Um menino de Cascais, todo pipi. Ahahahahahah. Grande companheiro, líder carismático. Organizava almoços e jantares com o resto do plantel.
Sobrinho, 4.
Como o José António não tinha muita velocidade, o Sobrinho compensava bem essa lacuna, além de ser um central forte no jogo aéreo e bom no desarme. Personalidade fantástica, já agora.
Artur, 5.
O pai do Jose Fonte. Rápido e com um bom pé esquerdo. E já se sabe que os canhotos são sempre diferentes, batem na bola como mais ninguém. De resto, subia muito, em contraste com o Teixeira no lado direito.
Paulo Monteiro, 6.
Jogava em qualquer posição do meio-campo para a frente. Ambidestro, com boa meia distância. Rápido e agressivo, tinha problemas de visão.
Uyyyyy.
Ahahahah. Por isso era o zarolho. A gente chamava-o zarepa. Só no gozo, ahahahah. Ah é verdade, colocava bem as bolas, fossem curtas ou longas.
Jaime, 7.
O elemento fundamental do grupo, sempre animado. Como jogador, era um extremo à moda antiga. Muito rápido, com um gosto incrível de ir à linha. E, atenção, cruzava como ninguém.
Juanito, 8.
Chamavamos-lhe ‘pé canhão’ porque marcava a nossa agenda através dos livres directos. Ele chutava com a parte interna do pé e a bola descrevia um arco impressionante, como aconteceu vs Benfica na final da Taça de Portugal 1989. Com uma pujança física extraordinária, recuperava muitas bolas e tanto fazia o trabalho sujo como também saía bem a jogar.
Mapuata, 9.
Ponta-de-lança corpulento e jovem. Uma força da Natureza, com remate forte e bom jogo de cabeça.
Falava português?
Sabes, aprendeu com relatividade facilidade. E ainda.
O quê?
Era o nosso estilista, porque aprumava-se muito. Gastava rios de dinheiro em roupas. Ahahahah.
Mladenov, 10.
Dos melhores com quem joguei, um pé esquerdo extraordinário e uma inteligência de jogo fora do comum. Quer no treino quer no jogo, dava gosto vê-lo.
Ao nivel do Balakov, com quem o Chiquinho também jogou?
Que coincidência feliz, Mladenov e Balakov. Vamos ver, o Mladenov jogava mais a ponta-de-lança, mais finalizador. O Balakov era mais 10, jogava de trás para a frente. O Mladenov era tranquilo, com uma personalidade impressionante. O Balakov era mais irreverente, quer a jogar, quer fora do jogo. O Mladenov era mais fechado, o Balakov mais comunicativo. O Balakov driblava com uma facilidade impressionante e o Mladenov sacava sempre algum pormenor extraordinário. O Mladenov era muito intuitivo, astuto.
E chegámos ao fim: Chiquinho, 11.
Nesse tempo, ainda vivia sozinho em Algés, era solteiro.
E que tal?
Não foi fácl a minha inserção na sociedade portuguesa, culpa das lesões mais do Depireux, um treinador belga autor de algumas situações caricatas.
Com o Chiquinho?
Sim, sim. Veja bem, jogo de apresentação do Belenenses no Restelo, vs Internacional de Porto Alegre. Ainda jogava lá o Aloísio. Ao intervalo, 2-0 com dois golos meus. No balneário, o Depireux substituí-me. Cheguei a pensar ‘mas é proibido marcar golos neste clube?’.
Então?
Era o tempo dos dois estrangeiros em campo e havia Mladenov, intocável, Mapuata, trazido pelo Depireux desde o Zaire, e eu.
Travessia no deserto, imagino.
A meio da época, sai Depireux e entra Marinho Peres. Que apostou definitivamente em mim, projectou-me claramente. Por isso, marquei oito golos nos últimos 10 jogos.
Uauuuuuu.
É, o Marinho era especial.
Ia falar agora dele: treinador, Marinho Peres.
Carismático e bom condutor de homens. Hoje ouvimos falar de jogo interior e jogo exterior, ahahahahah. O Marinho era de uma simplicidade enorme. Ainda me lembro dele daquela cena antes da final da Taça de Portugal com o Benfica.
Qual cena?
Saímos do nosso hotel dentro de uma carrinha pequena. Quando chegamos ao Jamor, o Benfica entra ao mesmo tempo que nós com um autocarro. O Marinho olhou pela janela e só disse ‘caramba, fogo, mas vamos comê-los todos, vamos comê-los’.
E assim foi, 2-1.
Entrámos como autênticos kamikazes e o Benfica entrou em bicos de pés, com Mozer, Valdo, Ricardo, Silvino, Diamantino, Pacheco, Paneira, Veloso, Mats. Nesse dia, o Marinho mudou a estratégia, com três centrais (Sobrinho, José António e Baidek), Zé Mário à esquerda, Teixeira à direita. No meio, Juanico, Macaé e Adão. Na frente, eu e o Chico Faria. Ganhámos, depois de termos eliminados Sporting e Porto, os dois no Restelo. Foi uma época memorável. E porquê?
Isso pergunto eu.
Éramos muito solidários. Em tarde não, a solidariedade dava para arrancar um ponto. Em tarde sim, quando vinha ao de cima a capacidade técnica, surpreendíamos qualquer clube. O Marinho Peres também ajudava muito pela sua humanidade e boa disposição. Mesmo os suplentes estavam de bem com a vida e isso é uma dávida para qualquer plantel. Às vezes, nas palestras, falava connosco. ‘Gente, o que vocês acham: vamos jogar a pressionar ou deixamos vir o adversário?’ É preciso haver essa simbiose entre treinador e jogadores. No dia deste jogo com o Barcelona, no Restelo, o Marinho dizia-nos que não tínhamos nada a perder. ‘Chiquinho’, disse ele, ‘tu jogas no campo todo’. Joguei sem lugar fixo e corri com a mesma pujança durante os 90 minutos.
Ah valente.
Ahahahahah. Foi mesmo. A última oportunidade de golo pertenceu-me. Cruzamento, eu cabeceei, o Zubizarreta defende por instinto e o José António não consegue fazer a recarga. Paciência. O que vale é a amizade e essa continua para sempre.
Ai é?
Ainda hoje somos muito unidos e temos um grupo no whatsapp. Quando se aproxima o dia de aniversário da conquista da Taça de Portugal (28 Maio), a malta agita-se e começamos a picar-nos uns aos outros. Depois, encontramo-nos num restaurante e é uma alegria incontrolável.
Todo o plantel?
Todo, até o Mladenov vem da Bulgária para estar connosco. É fantástico. Estamos todos juntos, conversamos imenso, rimo-nos até dizer chega. Hoje, por exemplo, é o aniversário do Adão. Ainda por cima, 60 anos. Está aqui uma agitação no whatsapp que nem imagina.