MST. ‘Fiz um acordo com o meu filho e não vemos juntos o Porto-Benfica porque dá faísca’

Mais You Talkin' To Me? 08/29/2020
Tovar FC

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MST. ‘Fiz um acordo com o meu filho e não vemos juntos o Porto-Benfica porque dá faísca’

Miguel Sousa Tavares. O nome está ligado ao Porto. Porto cidade, onde nasce em Junho 1950. Porto clube, onde acumula glórias e tristezas, armazenadas na memória desde os tempos de Américo até aos de Casillas. É o dia do Porto-Liverpool e estamos em Lisboa, sentado de costas para a chegada do homem à Lua em tamanho xxl e com vista para a Ponte 25 de Abril. Partida, largada, fugida.

Conhece a minha mãe?

[a cara indicia um não]

Maria João Lourenço. Entrevistou-o algumas vezes para a TV Guia nos anos 90. Aquelas rubricas do “24 horas com” e outras que tais.

O nome diz-me alguma coisa, de facto.

Já estamos em desvantagem, está a ver. Eu conheço a sua mãe desde os 13/14 anos, quando passei um trimestre a estudar “O Cavaleiro da Dinamarca” nas aulas de português.

E a sua mãe, o que faz agora?

É tradutora e revisora.

Traduz quem?

Murakami, Haruki Murakami.

Traduz do francês?

E não só: Inglês, alemão, espanhol, italiano [MST arregala os olhos]. Uma vez, trouxe-lhe um Murakami do Irão.

[MST sorri] Aí é indecifrável, imagino.

Mais complicado.

Tenho aí uns quatro ou cinco livros do Murakami. Gosto dele. Ora bem, diga lá. Disse-me ao telefone que era uma entrevista futebolística.

É verdade. Por acaso, estou a ler um livro do Bela Guttmann. Lembra-se dele no Porto?

É ele o treinador do 3-0 em Torres Vedras?

É ele mesmo.

Então é o jogo do Calabote. Esse é o primeiro título que me lembro, em 1959. Tinha oito anos e lembro-me que o Porto ficou no campo a ouvir o final do Benfica-CUF pela rádio, com o Calabote a marcar penáltis para o Benfica.

O Porto é campeão nesse dia.

Campeão por um golo.

Lembra-se do quê em concreto?

De ouvir pela rádio.

Só?

Nessa altura, o que mais me interessava era jogar futebol de manhã à noite.

Ai era?

Todos os dias.

E como é que conviveu com a seca de 19 anos? É que o Porto só volta a ser campeão em 1978.

Vim estudar para Lisboa e juntava as economias para ir ver o Porto em Alvalade, na Luz e no Restelo. Levámos sempre porrada. Era terrível, um exercício de masoquismo. Ainda não havia claques, só uns vinte gatos-pingados espalhados pelas bancadas. Era massacre sobre massacre Quando empatávamos, era cá uma festa.

Esse Porto tem os seus jogadores históricos, não? Cubillas?

Isso é mais tarde. Naquele tempo, havia o Américo. A quem devemos grandes tarde de glória em que só perdíamos por um ou dois-zero, através de exibições simplesmente heróicas. E ainda o Hernâni.

Claro, o Furacão de Águeda.

Era interior-esquerdo, como se dizia na altura. Grande jogador, com lugar na selecção portuguesa. Só depois é que veio o Cujbillas, talvez o segundo melhor jogador do Porto. Estrangeiro, digo.

O primeiro é Madjer?

Madjer, claro. Mas o Cubillas era um fenómeno, um príncipe. Salvo erro, jogou dois anos e meio, sempre com as meias para baixo, e nunca se lesionou nem apanhou um jogo de castigo.

Também ia ao Porto?

Não, não havia dinheiro para isso. O meu pai não me dava dinheiro, então juntava as semanas para ver o Porto em Lisboa. Morava na Graça e ia a Alvalade ou à Luz de autocarro ou metro.

De metro, imagino a diferença desses dias para os de hoje.

É bem possível que não chegasse vivo. Na altura, era perigoso mas havia respeito. Agora…

E depois dessa seca de 19 anos, há a fase dos dois títulos de campeão seguidos.

Curiosamente, nunca fui adepto do Pedroto. Sou dos poucos portistas, bem sei. Durante três anos, o Pedroto teve a melhor equipa portuguesa e nunca conseguiu ganhar o campeonato. Só ganhou o campeonato em 1978, graças a um livre do Ademir.

Estava lá nas Antas?

Por acaso, estava lá. Há um autogolo do Simões e depois o tal livre do Ademir, perto do fim. Empatámos 1-1 e foi a festa.

Mas o Benfica também era forte.

Está bem, mas o meio-campo era Seninho, Duda, Octávio, Oliveira. Nunca percebi como metiam o Pedroto nos píncaros. Para mim, o melhor treinador do Porto foi o António Morais, que se revelou melhor treinador que o Pedroto. E ganhou um campeonato sem espinhas.

E depois?

Depois vieram treinadores ótimos, como o Carlos Alberto Silva que limpou dois campeonatos na maior. O Bobby Robson, outro bicampeão.

E o Artur Jorge?

Medo.

Medo?

Medo. Não fosse o Madjer ter-se revoltado ao intervalo no jogo de Viena e o Porto nunca teria ganho aquela final da Taça dos Campeões.

Revoltou-se como?

Isso é um facto histórico, conhecido.

Então?

O Madjer jogou recuado durante a primeira parte, o Futre estava sozinho lá à frente. Ao intervalo, o Artur Jorge disse aos jogadores para continuar a jogar assim e o Madjer revoltou-se ‘não, não, mister, agora vamos jogar como a gente sabe’ e é o que se sabe. Dois golos, 2-1 e vitória. O Artur Jorge é um treinador com medo, sempre à retranca, com medo.

Apanhei há dias uma entrevista sua com ele, na RTP.

È verdade, no programa Face a Face. Convidei-o no dia em que o Porto perde em casa com o Sporting, para a meia-final da Taça de Portugal, em que um gajo do Sporting marcou o golo da vida dele.

Ahhhh, o Mário.

Esse mesmo: Mário, um brasileiro. Aos 119 ou 120 minutos. Nem antes nem depois o rapaz marcou um golo daqueles. No final do jogo, facto inédito na minha vida: entrei na cabine de um clube. Do Porto. E duas coisas impressionaram-me: um, as madames dos jogadores, aqueles penteados, aquelas toilettes todas, com o devido respeito até parecia que tinha entrado para um cabaret de meninas; não esperava que fosse tão mau e espero que não o seja hoje em dia; dois, fui dar com o Artur Jorge, poeta, licenciado em Letras, intelectual, aos palavrões, desvairado com a derrota.

Palavrões para o ar?

Para o ar, para toda a gente. Disse-lhe o que se passava lá fora, porque a malta queria matar o árbitro. E ele respondeu-me ‘acho muito bem, acho muito bem’. Dei por mim a pensar ‘isto é que são os bastidores do futebol?’ Impressionou-me, claro. Apercebi-me que o futebol é uma coisa muito boa para se ver à distância, nunca chegar muito perto. Felizmente, nunca me aproximei do fenómeno.

Embora escreva todas as semanas.

Se você reparar, escrevo sempre na posição de adepto de bancada. Nunca quis ser íntimo das novidades, nunca quis ser cartilheiro nem receber informações ditas importantes.

O Artur Jorge foi o seu único entrevistado do futebol?

Nãããão. Entrevistei o Pinto da Costa com a Margarida Marante, entrevistei o Luís Filipe Vieira sozinho. Quem mais? Não me lembro.

E é do Porto porque nasceu no Porto ou…

Curiosamente, o meu pai é um grande sportinguista e levou-me a ver um Sporting-Porto. Tinha uns cinco anos ou isso e achei tudo aquilo um espectáculo cénico bem bonito. Naturalmente, adoptei o clube com o equipamento mais bonito. Gosto do azul e branco às riscas, sempre achei lindo. Sou Porto, Real Sociedad. Comecei então a simpatizar pelo Porto logo aí. Depois o Sporting deu uma coça e eu ainda mais do Porto fiquei. [MST começa a rir-se]. Quando cheguei a casa, disse à minha mãe que era do Porto.

E a sua mãe?

‘Fica-te bem porque tu nasceste no Porto’, eheheheh. As três coisas juntas, olha, deram-me um portista. Engraçado, anos depois, levei uma vez o meu filho à bola, a ver um Belenenses-Porto e estava todo excitado com a perspectiva de ver o meu filho a torcer comigo pelo Porto. Às tantas, o Porto marca e eu levanto-me a festejar. O meu filho, nada. E diz-me ‘pai, tenho um segredo para te contar: sou do Benfica’. Eheheheheheheh. Até hoje, ele não só é do Benfica, que ainda vá, como é o mais fanático que conheço. De tal maneira que fizemos um acordo em que não vemos juntos o Porto-Benfica. Dá faísca.

Foi a Viena?

Só fui a Gelsenkirchen.

Onde estava no 27 Maio 1987?

Estava em casa de um amigo meu benfiquista.

Outros tempos.

Mesmo, outros tempos. É um amigo que gosta de futebol e é aberto. Fui fazer-lhe companhia, porque ele tinha partida uma perna. Então, quando o Porto marca o segundo golo, saltei-lhe para cima da perna engessada e ele soltou um berro monumental. Outros tempos mesmo, lembro-me de ir festejar para o Marquês de Pombal e havia bandeiras do Benfica.

E em Gelsenkirchen?

Fui e vim no avião do clube [MST faz uma cara de quem está a ter um flashback e começa a sorrir]. E há um pormenor com graça: quando estava a embarcar, um grupo de rapazes veio ter comigo. Intitulavam-se dragões de luxo, porque viajavam sempre com a equipa, ficavam em hotéis de luxos e iam aos restaurantes Michelin. Lá fizemos uma selfie blá blá blá. Passados uns tempos, vi uma notícia em que não sei quantos tipos daquela operação não-sei-quê-da-noite-discotecas do Porto tinham sido presos. Dos seis ou sete da fotografia, dois tinham morrido e quatro estavam dentro. Eu disse para mim ‘porra, sou o único em liberdade daquela selfie de Gelsenkirchen’.

E quando o Porto é campeão mundial?

Na final da neve, em 1987, vi aos bochechos. Na de 2004, nem vi porque estava a caçar perdizes em Mértola. Era uma caçada fantástica, imperdível, e parti do pressuposto que aquilo eram favas contadas com o Once Caldas. Obviamente, não havia televisão na caçada. Havia era uma carrinha pick-up com rádio e, volta e meia, lá ia ouvir o resultado. Estava sempre 0-0. Quando chegou aos penáltis, pronto, parei a caçada e pus-me de joelhos ao lado da carrinha. O último penálti é o do Pedro Emanuel e disse para mim mesmo ‘já está tudo perdido, este gajo não vai acertar’. Da mesma forma que vi o Herrera com o Sporting na Taça da Liga e deixei de acreditar. Mas o Pedro Emanuel marca o penálti com uma categoria. Meu Deus, aquilo foi uma alegria. Golo e título mundial. Ainda hoje não vi o jogo todo.

Foi um abafo do Porto: duas bolas ao poste, dois golos anulados.

Às vezes, perde-se assim. Olhe o Porto na meia-final da Taça da Liga com o Sporting. Domínio e, depois, derrota nos penáltis. Porque o grande mestre da estratégia, o Jesus, tinha tudo preparado para ganhar nos penáltis. Como é óbvio.

E finais da Taça no Jamor?

Costumo ir. A minha última vez foi o 6-2 ao Vitória.

Em 2011.

Fui com o meu outro filho, o portista. Foi um ano irrepetível, o do André [Villas-Boas]. E disse isso mesmo ao meu filho, lembra-te bem deste dia porque tão cedo não vais ver uma época assim. Ganhámos supertaça, campeonato, Liga Europa e taça. Nesse dia, com o Vitória, o Porto jogou enormidades. Aliás, devia ter acabado 7-2 porque um jogador com quem sempre embirrei, o Mariano González, marca um golo bonitíssimo que é anulado por fora-de-jogo inexistente. Que injustiça, a única coisa de jeito que fez em quatro anos e não conta.

Era um grande Porto.

Só o ataque, veja bem: Hulk Falcao e James. O Falcao nem jogou.

O Villas-Boas até jogou com alguns suplentes, como o Nuno Espírito Santo.

Pois foi. Bom, entre o Nuno Espírito Santo e o Helton, venha o diabo e escolha.

A sério?

Uma coisa que me surpreende: desde o Vítor Baía que o Porto não tem um guarda-redes digno do resto da equipa.

Não gosta do Casillas?

Gosto dele, tirando o facto de que ele não sabe sair a cruzamentos. O Porto devia ter um grande guarda-redes, um Rui Patrício.

Quais assim os heróis de outras equipas na sua infância?

O Eusébio, era impossível não o ter como herói.

Vi-o jogar?

Sim senhor. E cheguei a jogar contra ele.

Como assim?

Joguei no campeonato do CIF, ao serviço do Pé Leve. E o Eusébio mais o Coluna e o Rogério Pipi jogavam no S. O. V., Seita do Olho Vivo. O Eusébio tinha uns 40-e-muitos e já não se mexia. Jogava a meio-campo, ao lado do Coluna. Que, invariavelmente, me dava uma cotovelada ou uma joelhada na coxa nas bolas divididas. Ele sabia dar porrada sem o árbitro ver. A certa altura, já estava farto daquilo, virei-me para ele e disse-lhe ‘agora já percebo porque é que você foi um grande jogador de futebol’.

E o Coluna?

‘Ò puto, tens tanto que aprender’.

Quem jogava no Pé Leve?

O avançado era o Luís Norton de Matos. Que estava a jogar às escondidas do Benfica.

Bom jogador, chegou à selecção pelo Portimonense.

O melhor de nós todos, sem dúvidas. Mas era cá um fuço, não passava a bola a ninguém. Sabe quem era o guarda-redes da nossa equipa?

Não.

O Miguel Pais do Amaral. Jogava com a camisola branca e os calções amarelos, à inglesa.

E era bom?

Era alto.

E vocês foram campeões?

Ficámos uma vez em segundo lugar.

E o Miguel jogava a quê?

Médio.

Por iniciativa própria ou…?

Gostava de jogar no meio. Mas comecei em todo o lado. Quando era miúdo, fui guarda-redes. Depois, passe para ponta-de-lança nos torneios da mocidade, no liceu. Ainda fui extremo e depois médio. O meu sonho era jogar como o Hernâni, nos passes em profundidade.

Passes em profundidade?

Nesses torneios do CIF, metia a bola em profundidade para o ponta-de-lança e ficava quietinho cá atrás, eheheheh. E adorava cobrar penáltis.

Ai sim?

Até hoje tenho uma teoria para os penáltis: bater sempre rasteiro. Ainda ontem o Higuaín atirou à trave, com o Tottenham. Não percebo como é que se marca um penálti pelo ar. Não percebo como é que um treinador deixa o marcador oficial de penáltis fazer isso. Não entendo. Mesmo. Ao marcar pelo ar, um gajo está a acrescentar mais uma hipótese ao insucesso. Pode falhar porque o guarda-redes defendeu, porque a bola saiu ao lado e porque a bola saiu por cima. Não entendo, a sério.

O Miguel atirava rasteiro?

Isto não é 100% eficaz, mas o rasteiro anula a possibilidade de a bola sair pelo ar. Já para não falar do guarda-redes. Se tens 1,80 ou 1,90 metros de altura, é mais difícil ir ao chão do que ir ao ar. Não percebo. Já tinha dito isso? Eheheheheheh. Assim como não percebo o porquê de escolher canhotos para marcar cantos do lado esquerdo do ataque e um destro a cobrar no lado direito. São coisas que vão contra a minha lógica.

Os seus penáltis davam golo?

Quase sempre. Tinha uma finta que deixava o guarda-redes nas covas. Não lhe dava hipótese.

O quê, a paradinha?

Não, isso não. Desequilibrava-o com uma finta. Não era preciso colocar a bola ao canto inferior. Bastava enganar o guarda-redes, desequilibrá-lo. Se ele fosse para um lado, metia a bola para o outro. Agora, só tinha uma finta. Duas é que não. Se houvesse dois penáltis no mesmo jogo, só marcava o primeiro, ahahahahahah.

Quando é que parou de jogar?

Aos 24 anos.

Porquê?

Por causa do tabaco.

A sério?

Epá, já não dava. Passei para o ténis. Aliás, sempre joguei ténis.

Gosto de jogar e de ver?

Adoro jogar e ver. É um desporto imbatível, a nível de tudo: não há anti-desportivismo, não há perdas de tempo, não há lesões simuladas. E depois tem qualquer coisa de combate de gladiadores. É intenso, três ou quatro horas de altos e baixos tanto físicos como psicológicos. Um jogo fabuloso, completo mesmo.

Quem é a sua figura preferida?

O melhor de todos os tempos é o Federer, dominador de todas as pancadas possíveis e imagináveis e com uma longevidade extraordinária. A figura do meu tempo era o McEnroe, um revolucionário em muitos sentidos, que destronou o Borg. Borg esse que já tinha feito uma revolução do ponto de vista técnico com aquelas pancadas topspin. O topspin permitia-lhe bater a bola com força sem que ela caísse fora, com um efeito de baixo para cima, tipo folha seca. Só que o Borg era muito defensivo e jogava lá atrás, sempre com o topspin.

E o McEnroe?

Destrona o Borg numa célebre final em Wimbledon e impede-o de ganhar o sexto título seguido. O jogo do McEnroe era qualquer coisa. Em tudo. Como era canhoto, servia com a esquerda e fazia vóleis com a esquerda. No serviço, nunca mais houve alguém como o McEnroe porque ele escondia a bola até ao fim. Depois era ofensivo, sempre encostado à rede. Além disso, partia raquetas e dizia palavrões. Estava sempre a ser suspenso, um rebelde em campo.

Esses jogos passavam na televisão?

Via-os sempre. Essa final de 1981 ainda hoje está gravada na minha memória porque aquilo demorou umas três horas e tal e, às tantas, o meu filho caiu em cima de uma tábua com um prego lá no jardim de casa. Deu um berro lacinante. Então deu-se uma coisa extraordinária, ahahahah: enquanto tentava tirar o prego da perna do meu filho, queria ver as últimas pancadas do jogo. Faltavam umas quatro jogadas ou assim. O miúdo a sangrar e eu a levá-lo ao colo na sala, antes de sairmos de casa para o Hospital São José, ahahahahah.

Entre McEnroe e Federer, há uma série de tenistas fabulosos.

Uyyyyyy, muitos mesmo.

Becker? Lendl?

Nunca liguei muito ao Becker e o Lendl era um chato, porra. Gostei muito do Edberg, um jogador mais ao meu estilo. O Agassi era grande. Depois apareceu o Nadal, um jogador diferente, cheio de força. As lesões traíram-no, é pena. E há o Federer. É que o Borg era um fenómeno, mas jogava lá atrás. O Federer joga atrás, vai à rede e domina todas as pancadas. E é um senhor. Uma vez, vi-o entrar para a final de Wimbledon todo vestido de branco, como é norma em Wimbledon, mas com um blazer branco cheio de estilo. De um designer italiano daqueles que acaba em “cci”. Caramba, este gajo é um lorde. Tomara os ingleses verem um inglês assim vestido. Ou a jogar assim. Nos últimos 40 anos, o único a chegar à final é um escocês, e não inglês: Andy Murray.

E no feminino?

A Steffi Graf tinha um jogo lindíssimo.

Além de futebol e ténis, outro desporto?

Caça submarina, que não tem nada a ver.

Ca-ça sub-ma-ri-na?

Primeiro caçei no mar, depois em terra. E depois todo-o-terreno. Fiz umas 20 Voltas a Portugal de todo-o-terreno.

Hum?

Voltas a Portugal que davam mesmo a volta ao país. Durava nove dias. Depois, quando a maior parte da malta já não tinha vida para tirar nove dias de férias, reduziram para três/quatro dias.

E já não era Volta a Portugal?

Já não. Dividia-se por zonas: norte, centro e sul. Olhe, vou agora fazer em Abril uma brincadeira dessas.

Mas isso é corrida, cronometrado e tal?

É mais navegação do que corrida.

E o Miguel é piloto ou…?

Piloto, sempre. Não tenho jeito nenhum para navegar. Eu até me perco nas cidades, imagine-se o resto.

Ahahahahah.

A parte da condução começou por ser uma atracção que depois se tornou paixão. É um vício mesmo. Um vício a tal ponto que, às vezes, ia de carro com tracção a duas rodas e desviava-me para um troço apetitoso no meio do nada. Lá ia eu uns bons quilómetros por fora da estrada. Conheço Portugal fora de estrada. Se me perguntar se conheço Celorico de Basto, não faço ideia. Agora, fora de estrada, conheço todo o país. E é viciante porque atravessa-se tudo: rios, pontes, cordilheiras, vales, montes.

E há zonas mais vantajosas que outras?

O Alentejo proporciona mais velocidade, dá mais adrenalina.

Assim, sem medos?

Medo medo, só de alturas, abismos. Uma vez, se já tinha medo das alturas, passei a ter um respeito enorme: estava na montanha, o carro cheio de lama derrapou numa curva, aquilo andou entre a esquerda para a direita e foi para a direita. Batemos numa rocha e começámos a recuar. Pensei, ‘vamos cair de costas no abismo’. Mas não. Foi um susto daqueles muito grandes, até porque o carro pesa umas três toneladas.

Chi-ça, mais vale o futebol.

Neste caso, de acordo. Só que sou espectador no futebol. Ali sou o condutor. É um vício, repito-me. Começamos a dar passeios com a família e, de repente, já estamos a explorar o país de Norte a Sul. É que anda-se por caminhos escondidos, pouco vistos. É um Portugal diferente. E é uma maravilha descobrir uma tasca no meio do nada em que se come suptuosamente. Ou então vemos porque é que tantos incêndios, porque é que há secas. Percebe-se tudo isso, percebe-se o país por dentro.

Um país alternativo sem pessoas, imagino.

Completamente. Havia situações em que nos perdíamos, mesmo com mapas militares e tal. Perdíamo-nos e não havia ninguém a quem perguntar por quilómetros e quilómetros. Outra: um dia, estávamos perto de uma ponte, segundo o mapa. Só que não víamos ponte nenhuma. Atenção, às vezes a ponte não é uma ponte, é um conjunto de pedras a fazer a ligação de uma margem para a outra. Bem, estava marcada a ponte no mapa e nós andámos à roda, à roda, à roda sem detectar a ponte. Encontrámos um senhor, velhote já, que nos confirmou a localização da ponte. Metemo-lo no carro e fomos outra vez aquele sítio.

E a ponte?

Como não havia lá ninguém num raio de alguns quilómetros e o mato tinha crescido muito, as pedras que faziam a ponte tinham desaparecido de vistas. Quer dizer, elas estavam lá, debaixo do mato. Teve de ser o velhote a ajudar-nos.

Desculpe lá, vou voltar ao futebol. Bateu-me agora. Eusébio e quem mais dos outros clubes?

Yazalde, um príncipe que marcava golos de todo o lado. Aquilo era impressionante. Todo aquele Vitória de Setúbal do Jacinto João. Lembro-me do Lusitano de Évora com o Vital à baliza, que deu 4-1 ao Sporting para a Taça de Portugal Lembro-me da Académica. Havia muitos bons jogadores e, de facto, a Lei Bosman mudou muita coisa. Cavou um fosso de desigualdade muito grande entre os pequenos e os grandes. Ainda ontem estava a ver o Manchester City com o Basileia e aquilo é um disparate. O City já gastou 900-e-tal milhões de euros em três anos, ainda queriam ir buscar o Mahrez ao Leicester. Qual fair-play, qual carapuça.

Se a Lei Bosman não vigorasse, quem eram os três estrangeiros com quem jogava neste Porto 2017-18?

Digo-lhe já dois de caras: Alex Telles e Marcano. São os melhores jogadores do Porto. Daí para a frente é que a coisa fia mais fino. Pelo que tem jogado, Marega. O Alex Telles é um jogador fabuloso. Não vejo um lateral-esquerdo melhor que ele.

Marcelo, do Real Madrid?

Não, o Marcelo não defende tanto nem tão como o Alex Telles. Não é tão consistente. O Marcelo arranca jogos de outro mundo, o Alex Telles é sempre constante. Se ele não aparecer na selecção do Tite no Mundial-2018, vai ser um espanto.

O Porto sempre teve bons laterais-esquerdos.

O Branco, pá. O Branco está na melhor equipa de sempre do Porto.

Quer fazer o onze de sempre do Porto?

Na baliza, o Américo. Foi profundamente injustiçado no Mundial-66, porque ele era melhor que o Carvalho e o José Pereira. Embora seja um fã tremendo do Vítor Baía, tenho de escolher o Américo. O gajo jogava sem luvas e de mangas arregaçadas, a aguentar as bombas do Eusébio. Vi um jogo na Luz em que o Eusébio massacrou o Américo de todas as maneiras e feitios e continuava 0-0. Naqueles tempos, arranjava-se um penálti se o Benfica não estivesse a ganhar à meia-hora. Nesse dia, só assim. César Correia apitou penálti, o Eusébio tomou uns 20 metros de balanço e fuzilou autenticamente o Américo.

À direita?

O Porto nunca teve um grande grande grande lateral-direito. Por razões sentimentais, tenho de ir pelo João Pinto, o eterno capitão. Mas custa-me muito eleger um defesa-direito que nunca fez um cruzamento bom em toda a vida. Mas, pronto, tinha um espírito combativo.

No meio?

Geraldão, sem dúvida. Mais Aloísio. À esquerda, Branco. Como trinco, outro brasileiro: Doriva.

E o Paulo Assunção, por exemplo? Ou o Costinha?

O Doriva marcou dois golos de livre directo ao Sporting, ambos a mais de 30 metros. Craque. Depois Cubillas, Oliveira, Madjer, Jardel. O Jardel marcava golos de todo o jeito, até de letra. E, pronto, estão onze.

Falta um.

Futre. Agora sim, completo.

E era de ir a jogos das outras equipas.

Fui à Luz ver o Benfica-Dortmund para a Liga dos Campeões e todos os benfiquistas estavam-me agradecidos porque dei-lhes sortes. De facto, o Ederson defendeu tudo. Até com os cabelos.

E mais, e mais?

Ia ver o Benfica à Luz com o meu pai. Um sportinguista e um portista naquelas noites europeias. Vi um 6-0 ao Nuremberga do tempo do Guttmann. Também vi o Autria Viena.

Isso é o Benfica campeão europeu.

O tempo em que só havia quatro tubarões na Taça dos Campeões: os campeões de Espanha, Itália, Alemanha e Inglaterra. Com sorte no sorteio, podia-se chegar à final sem apanhar nenhum deles.

E…

Nos anos 80, fui ver dois jogos ou três do Oliveira em Alvalade. Num deles, ele fez uma exibição monumental com três golos ao Dínamo Zagreb, 3-0 para o Sporting.

E a selecção nacional?

Infelizmente, sou daqueles que vibro mais com o Porto do que com Portugal.

Mas não houve nenhuma selecção que o puxasse?

Os Magriços, claro. Engraçado, os Magriços conseguiram fazer a unidade nacional por duas razões: o Estado Novo via ali o exemplo da pátria e os anti-Estado Novo viam ali a compensação contra o Estado Novo.

E aquela derrota com a Inglaterra na meia-final?

Mal perdido, éramos superiores à Inglaterra. Se tivéssemos mais sorte e mais crença, íamos à final.

Via os jogos onde?

Em casa de um tio-avô, que vibrava imenso com aquilo.

E na sua casa?

Não tínhamos televisão, o meu pai dizia sempre que não queria propaganda fascista em casa.

Lembra-se do último jogo com o seu pai no estádio?

Pfffffff, assim de repente não. Fomos ver aquele Portugal-URSS de qualificação para o Euro-84. Ganhámos 1-0, penálti sobre o Chalana, golo do Jordão. Ir à bola com o meu pai era sempre uma chatice.

Então?

Insistia em ir ao volante. Um dia, espetou-se contra um táxi e ele já queria bater no taxista. Chegámos ao estádio com 20 minutos de atraso. Ahahahahaha. Uma outra vez, ahahahah, fomos ver o Portugal-Brasil no Jamor, espetou-se na recta da Cruz Quebrada e chegámos atrasados novamente.

Só voltámos a ir ao Mundial em 1986.

O México foi uma vergonha total. Uma bandalheira. O Silva Resende [presidente da federação portuguesa] mandava as tropas para Saltillo e não se dignava a sair da Cidade do México.

Então e o Euro-2016?

O que tem?

Não vibrou?

Muito pouco. Não fizemos um único bom jogo. Tivemos sempre à beira da eliminação e nunca caímos.

E o Euro-2004?

Sou um adversário do Scolari, como é público e notório. O vendedor da banha da cobra. Fiquei muito feliz quando as finanças descobriram que ele não tinha pago os impostos e obrigaram-lhe a pagar esse esquecimento. Esse gajo foi um aldrabãozeco mesmo. E fiquei muito feliz quando o vi levar o Brasil à glória no Mundial-2014 com aquele 7-1 da Alemanha. E muita sorte teve ele, devia ter sido 8-0. Na jogada anterior ao golo do Óscar, a Alemanha falha o oitavo. Em 2004, o Scolari fez tudo o que não devia. Antes do Euro, castigou o Porto e tirou o Vítor Baía. No jogo inaugural do Euro, com a Grécia, tirou o meio-campo do campeão europeu e só o meteu no segundo jogo, quando uma arbitragem nos favoreceu com a Rússia. Na final, aquele sumidade do futebol vai perder o segundo jogo em menos de um mês com a Grécia sem ter aprendido nada em relação ao jogo de abertura. Uma coisa extraordinária.

Alguma vez se encontrou com ele?

Uma vez.

Aqui em Lisboa?

Sim, na apresentação de um livro de uma escritora brasileira que me tinha pedido para fazer a apresentação.

E então?

Não nos falámos. Já era pública a desavença. Ele tinha dito que o eu pai era um grande escritor mas que eu era bosta. Trocou o meu pai pela minha mãe, só mesmo um ignorante.

[à saída de casa, vemos uma tira do Corto Maltese estampada numa parede]

Eisch, o Corto Maltese.

Grande figura. Antes do jornalismo, fui advogado. Um dos meus casos tinha a ver com um italiano das Brigadas Vermelhas, foragido. Sabe onde é que ele estava?

Nem ideia.

Aqui, em Portugal.

Nããããão.

O mais engraçado nem é isso: ele jogava voleibol pelo Benfica.

Nããããããããããão.

É sério. Uma vez, o pai dele veio visitá-lo e deu-me “A Balada do Mar Salgado”. Nujnca mais me desprendi do Corto. Antes, tinha posteres, de papel e pano. Nada feito, aquilo estragava-se. Por isso, uma amiga minha fez-me este mural. Não há risco de se amarrotar ou ficar desfiado.

in Observador, 8 Março 2018

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