Vítor Oliveira. ‘Por cada golo meu nos distritais, o meu pai dava-me 25 tostões’
É uma terça-feira, 2 Março 2017. O dia começa no Oriente. A estação, salvo seja. De repente, acordo e já estou em Tunes. Há troca de comboio para Lagos, onde passo a hora de almoço no Amuras. Primeiro, entrevisto Pacheco. Depois, Dominguez. À tarde, conduzido por Dominguez, sigo para Portimão. À espera, Vítor Oliveira. Numa sala dentro do estádio, o treinador recebe-nos de braços abertos com a boa disposição do costume.
O Vítor Oliveira nasceu em Matosinhos.
No dia 17 Novembro 1953, uma data bonita.
O Vítor gostava de futebol?
Sempre, sempre gostei.
E ia ao estádio?
Sempre. Primeiro no Campo Santana, que era perto da minha casa, depois no Estádio do Mar, já mais espigadote. Ia sempre ver o Leixões. Nunca perdia os jogos do Leixões. Ainda hoje acompanho. É das poucas equipas que acompanho, em casa ou fora. E olhe que já não vou muito ao futebol.
Já jogava futebol?
Cresci na praia de Matosinhos, onde cresceram muitos bebés que se tornaram figuras do nosso futebol nos Portos, Benficas e Sportingues. Aos 15 anos, eu e os meus amigos fomos às captações dos juvenis do Leixões.
Só aos 15?
Não havia para trás, aos 15 era o primeiro ano das camadas jovens do Leixões. Naquele tempo, jogava basquetebol.
Basquetebol?
Ah pois.
A que posição?
Base ou extremo. Também jogava voleibol e andebol, era o tempo da mocidade portuguesa. Havia aqueles que jogavam basquetebol, os que jogava voleibol, os que jogava andebol e os que jogavam tudo. Cresci num ambiente muito eclético, devo dizer-lhe. Bom, lá fomos ao treino de captação, às 5 da tarde. Saímos da praia e tal e lá fomos.
Como?
A pé. Ainda não havia dinheiro para ir de autocarro.
Resultado?
Ficaram todos menos eu. E eu até era o melhor do grupo. Pronto, tudo bem, fui-me embora. Passadas duas semanas, o Leixões volta a chamar-me.
Então?
O treinador era o Óscar Marques, uma figura do futebol leixonense, que muito fez por nós e por todos os outros. Os meus amigos, os tais escolhidos nas captações, foram dizer-lhe que o melhor jogador eu eu e que o tinham mandado embora. O Óscar Marques pediu então uma nova avaliação e lá fui. Acabei por ficar.
Estamos a falar de que ano?
1969.
Imagino a quantidade de jogos do Leixões vistos pelo Vítor.
Uyyyy, tantos.
Algum europeu?
Olha, sim, tive essa sorte. Vi aquele Leixões-La Chaux de Fonds para a Taça das Cidades com Feira. Ainda hoje é uma das mais sensacionais remontadas da UEFA. Perdemos 6-2 lá e ganhámos 5-0 no Campo Santana, onde costumávamos dar uns toques de futebol e até voleibol nos ringues atrás das balizas.
Conheceu algum ídolo?
O fantástico Osvaldo Silva, que ainda jogou no Sporting e no Porto. Durante muitos anos, o Osvaldo viveu em casa de um tio meu, ali na Rua França Júnior. Lembro-me de outras figuras do futebol, como Rosas, Pacheco, Jaburu, um goleador nato que veio do Porto, e Raul Machado, que chegou a ser o meu treinador. A todos eles, via-os na rua e no campo, seja em jogo ou simplesmente em treinos.
E a final da Taça de Portugal com o Porto, em 1961, onde estava?
Não vi nem fui. Provavelmente, o meu pai protegeu-me da multidão e não me levou. Na festa, aí sim, andei lá no meio, misturado com toda a gente na Rua Brito Capelo. E eu morava na rua de cima, a Brito e Cunha. Antigamente, havia muito isto dos grupos de rua. Juntámo-nos todos, os da Serpa Pinto, os da Heróis de França, os da Brito e Cunha, os da Brito Capelo. Foi uma tarde gloriosa para o Leixões. Está a ver, não é? Porto 0 Leixões 2 nas Antas. Memorável. Tive uma infância muito feliz, interessante e divertida, medianamente virada para a escola. Converso às vezes com os meus filhos e eles ficam surpreendidos com as coisas que fazíamos naquela altura.
Havia acesso às estrelas quando o Leixões recebia os grandes?
Agora que me lembra, havia um vizinho em frente à casa dos meus pais que tinha sido observador do Benfica no Norte e os jogadores do Benfica costumavam ficar lá quando jogavam em Matosinhos. Era um senhor chamado Custódio Antunes. Lembro-me de ver o Eusébio, o Mário Coluna, o José Torres. Aquilo era uma romaria, uma festa inacreditável. E parece que estou a ver o Coluna com uma tranquilidade absolutamente diabólica, com uma voz muito pausada a falar connosco no meio da rua.
Eusébio, Coluna, Torres. Onde estava o Vítor Oliveira no Mundial-66?
Tinha 12 anos e chumbei nesse ano. Por isso, os meus pais, mais o meu pai, meteram-me a trabalhar numa mercearia de retalho. Era um grande depósito e lá fui trabalhar nesses três meses de Verão.
Viu algum jogo de Portugal?
Todos. A minha sorte era que a sub-gerente da loja, uma senhora simpatiquíssima, arranjava-me sempre serviços para ficar fora da loja durante os jogos. Num deles, com o Coreia, salvo erro, o serviço era levar uns volumes de tabaco para a praia internacional. Isso deu-me o tempo para ver o jogo em casa. Nunca mais vi essa senhora até aparecer no Estádio do Mar em 2006-07, na época em que o Leixões subiu à 1.ª divisão.
Nesses anos 60, havia mais para além do futebol?
Então não? Claro que sim. Olhe, o hóquei em patins, por exemplo. Vivia-se com muita intensidade o hóquei. E tantas equipas boas de Portugal. A do Velasco e Bouçós, jogadores fantásticos. A do Livramento, Lionel, Adrião, Rendeiro, Sobrinho. A do Vítor Hugo. Vi dois Mundiais ao vivo e a cores, ambos em Portugal. Um em Barcelos, outro no Porto. E outro desporto de eleição era o ciclismo.
Xiiiii, a Volta a Portugal.
Quando era miúdo, levantava-me de manhã e comprava o Jornal de Notícias para ler a descrição exacta da etapa. Aos tantos minutos, fugiu não sei quantos. Na subida para ali, o outro conseguiu deslocar-se do pelotão e só foi apanhado ao quilómetro tal por este e mais este. É o tempo das equipas de ciclismo de Benfica, Sporting e Porto, juntamente com as de Boavista, Louletano, Tavira. Era uma emoção tremenda, a inclusão dos três grandes. Notava-se isso no pelotão. Lembro-me de grandes artistas do pedal como Alves Barbosa, já na parte final, Peixoto Alves, vencedor de uma Volta nos anos 60, e Jorge Corvo, o eterno segundo classificado.
E o Joaquim Agostinho?
Já lá ia, claro. O Agostinho era uma referência incontornável, tanto cá em Portugal como lá fora. Quando ele ia ao Tour, todo o país se unia nos relatos para ver como lhe tinha corrido a etapa. Quando fazia um brilharete, ficávamos com um sorriso XXL. Dava para o Verão todo. Uma vez, lembro-me agora, fui de propósito a Vila do Conde só para ver correr o Agostinho.
Futebol, de novo. Qual a grande alegria nas camadas jovens do Leixões?
Chegámos a ir duas vezes às meias-finais do campeonato nacional, uma nos juvenis, outra nos juniores.
Eliminados por quem?
Primeiro, o Benfica de Shéu, Norton de Matos e Fidalgo. Depois, a Académica. Naquela altura, os três grandes iam sempre às meias-finais e a quarta vaga sobrava para um Leixões, um Vitória, uma Académica ou um Belenenses. Nós fomos duas vezes às meias do campeonato nacional, depois de quase um ano a jogar no campeonato distrital. Um pouco como agora, aliás.
E o Leixões era forte?
Deixava a sua marca no futebol, sempre tivemos boas equipas. A prova disso é que cheguei à selecção.
A sério?
A sério. Fui convocado umas três/quatro vezes pela seleção júnior e joguei duas, ambas com a Suíça, na qualificação para o Europeu-72. Estreei-me na Tapadinha, campo do Atlético. Era uma equipa jeitosa, com Pietra, Bastos Lopes, Alexandre Alhinho, Norton de Matos, Pedroto, um lateral-direito chamado Ramalho, Rodolfo, Ibraim, Francisco Vital. O guarda-redes era o Quim. Tenho uma história engraçada com ele.
Então?
É um guarda-redes com andamento de 1.ª divisão, ao serviço do Marítimo, por exemplo. No Gil Vicente, foi treinado por mim e, às tantas, pediu-me para fazer um jogo de reservas no lugar do Brassard, hoje treinador da federação portuguesa de futebol. Questionei-o: ‘então porquê, se estás a jogar na equipa principal?’ Diz-me ele: ‘é que o meu filho vai estar no outro lado do campo, a jogar pelo Fafe.’ Jogou então o Quim, eheheheh.
Lembra-se do resultado desse Portugal-Suíça?
Acho que ganhámos 1-0, golo do Pedroto. Ou será do Rodolfo? Não me lembro.
E lembra-se se estava nervoso?
Nãããã, nunca fui um jogador muito nervoso ou de tremer com adversários mais fortes. Encarava o jogo com tranquilidade. Até porque que se o futebol não desse certo, ia para engenharia. Estudava ao mesmo tempo que jogava e só abdiquei do curso quando decidi enveredar pelo futebol a sério.
E isso aconteceu quando?
Quando vim jogar para Portimão, aos 27/28 anos. Aí sim, larguei a faculdade.
Qual era o curso?
Eletrotecnia, na Faculdade Engenharia do Porto. Já tinha o quarto ano quase completo e só me faltava o quinto, só que virei-me completamente para o futebol.
Porquê?
Não consegui voltar a arrancar a carreira académica, passou o timing, passou aquela vontade. E também porque acabei a carreira de jogador e iniciei imediatamente a de treinador. Ainda fui à faculdade para ver a minha situação académica e, olhe, desisti.
Arrepende-se?
Nada. A engenharia ficou pelo caminho porque o futebol deu-me tudo o que tenho.
O futebol deu-lhe tudo. Lembra-se da estreia profissional?
Um Benfica-Leixões, não foi?
Isso mesmo.
Empatámos na Luz.
Hein?
Empatámos 6-0, eheheheheh.
Um cabaz.
Lembro-me de comentarmos que fui certamente dos jogadores que mais vezes toquei na bola.
Então?
Era golo deles, a bola ia ao centro, o Horácio tocava para mim e eu dava para trás.
Eheheheheheh.
Aquilo era muito difícil, difícilimo. Havia uma desigualdade gigantesca, a todos os níveis.
Como?
Profissionalismo, condições de trabalho e qualidade dos jogadores. Benfica, Porto e Sporting estavam mesmo muito à frente. Entretanto, essa diferença estreitou-se. E agora parece-me outra vez evidente. Os grandes estão mais à frente. Antes, os melhores jogadores de uma equipa média-pequena iam sempre para os grandes, no final da época. As outras equipas estavam sempre sempre sempre em formação. Se ao poderio económico, juntássemos a experiência constante na Europa, aí a diferença era maior ainda. O Benfica, por exemplo, jogava muito na Taça dos Campeões e ganhava um ritmo impossível de alcançar para um Leixões da vida. Em casa, de vez em quando, ainda fazíamos uma gracinha. Na Luz, era terrível. O túnel da Luz era enorme. Primeiro que chegássemos ao campo, era assustador. Depois, aquela massa humana. Não dava.
E as viagens para Lisboa?
Saíamos de Matosinhos às 8h30/9 da manhã. Almoçávamos em Leiria antes de arrancarmos para Lisboa, onde chegávamos às 17h30/18h00. Não havia autoestradas e era quase um dia perdido. Por isso, não se treinava na véspera do jogo.
Imagino então ir do Norte para o Algarve?
Ahhhhh, às vezes até saíamos à sexta-feira. Depois do jogo, dormíamos normalmente na estalagem da Barrosinha, em Alcácer. Acho que já está desactivada. No dia seguinte, almoçávamos uns frangos a meio caminho e chegávamos a meio da tarde de segunda-feira.
Uyyyyy, isso dói.
Os autocarros não eram famosos e as estradas eram más (havia só um bocadinho de autoestrada, ali do Carregado até Lisboa e dos Carvalhos ao Porto; de resto, EN1).
Sabe qual foi o jogo seguinte àquele 6-0 do Leixões na Luz?
Não.
Um com o Atlético, em Matosinhos.
Aquele em que marquei um golo.
Esse mesmo.
Foi o meu primeiro golo de sénior. E de cabeça.
Era costume marcar e, ainda por cima, de cabeça?
Nas camadas jovens, sim. Marcava muitos golos, até porque comecei a ponta-de-lança. Só depois é que passei a médio e jogava a 8, como se diz agora. Os goleadores de serviço eram o Horácio e o Estêvão, ambos muito bons. Há uma história engraçada sobre os golos.
Conte aí.
Como lhe disse, fazia muitos golos nos distritais. E recebia dinheiro por cada um deles.
Maravilha.
Por cada golo, o meu pai dava-me 25 tostões, corresponde agora a um cêntimo e qualquer coisa. Ao fim de seis ou sete jornadas, ele desistiu da aposta.
Em 1975, o Vítor sai do Leixões, na 1.ª divisão, e assina pelo Paredes, da 2.ª. Porquê?
O Paredes estava a começar a aparecer. A cidade cresceu muito com a indústria do mobiliário, havia algum dinheiro e tinha acabado de subir da 3.ª para a 2.ª. Fez-se um investimento grande e, de uma assentada, o Paredes levou quatro/cinco jogadores de Matosinhos. Ainda hoje me recordo da assinatura do contrato com o Paredes. Estávamos numa salinha da sede, que ainda hoje existe, e, de repente, soa a sirene. Havia um incêndio nas proximidades, os diretores do Paredes eram bombeiros e a assinatura foi adiada por um dia.
E assinou?
Sim, sim. No dia seguinte, tudo assinado. Cheguei a casa, já noite alta, e apanhei o meu pai a sair para o mar. Perguntou-me que tal tinha sido o dia. Os meus pais, honra lhes seja feita, nunca se meteram na minha vida profissional. Deram-me sempre uma liberdade enorme. Bom, perguntou-me como tinha corrido o dia. Disse-lhe que tinha assinado pelo Paredes e ele questionou essa opção com aquela pergunta sacramental do ‘vais ganhar quanto?’. Disse-lhe 14 contos. Era um contrato muuuuito bom, muito mais do que ganhava no Leixões na 1.ª divisão. O meu pai começou então a fazer-me perguntas sobre onde é que era Paredes? Ali ao pé de Penafiel, a uns 40 km do Porto, disse-lhe eu. E ele, já de saída: “jogar, não jogas grande coisa, mas és fino para fazer contratos”.
O seu pai via os seus jogos?
Sempre.
E a sua mãe?
As mulheres não eram vistas num campo de futebol e a minha mãe levava uma vida dura, como peixeira, a acordar todos os dias às quatro da manhã. Aos domingos, era para descansar.
Volto ao seu pai.
O meu pai era o meu maior crítico. Se ganhasse por dois, deveria ter sido por quatro. Se perdesse por um, era uma porcaria. Nunca estávamos em sintonia, uma visão diametralmente oposta à minha. Ele era um descontente por natureza, um pessimista. Só em relação ao futebol, atenção. De resto, era uma pessoa animada, com quem se podia falar.
Ia à pesca com ele?
Nunca fui, nunca tive essa tendência para a pesca. Quando era miúdo, íamos pescar ao longo do paredão na praia de Matosinhos. Íamos pescar íamos. Metia-me lá a dormir, a apanhar sol, e só acordava quando a malta chamava-nos para ir à praia porque a maré já estava baixa e dava para jogar futebol no areal.
Deu-se bem no Paredes?
Recomecei a marcar golos e fui o segundo melhor marcador de toda a 2.ª divisão. Só que o Paredes não subiu. Aliás, fugimos à 3.ª divisão no último minuto da última jornada da liguilha, com o Vilanovense. Um penálti marcado por mim, 3-2 para nós.
Saiu do Paredes?
Continuei na 2.ª divisão e assinei pelo Famalicão.
Que tal?
Fomos campeões da zona norte e depois ganhámos o título da 2.ª divisão, numa poule com o campeão das zonas centro e sul. No jogo do título, demos cinco ou seis-zero ao Barreirense.
Assim, sem mais nem menos?
Havia um grande desnivelamento. No sul, jogava-se bem em termos técnicos. No Norte, havia mais força e intensidade. Regra geral, as equipas do Norte saíam-se bem, quase sempre melhor que as do Sul.
Aí está, Vítor Oliveira novamente na 1.ª divisão.
Por uma época, apenas. Descemos de divisão na última jornada. E comecei aí a carreira de treinador.
Então não foi em Portimão?
Aí foi a tempo inteiro, em Famalicão foi só um jogo.
Como assim?
Na penúltima jornada, empatámos 2-2 com o Braga. Eu até marco um golo, bem fora da área. Na baliza deles, o Conhé. Nessa noite, a direção do Famalicão despediu o treinador, um senhor elegantíssimo chamado Mário Imbelloni.
O grande Imbelloni?
Esse mesmo, um dos jogadores da melhor equipa do mundo dos anos 40: o San Lorenzo Almagro. Que veio cá a Portugal e deu um festival de bola àqueles que lhe apareceram pela frente: Porto, Benfica, Sporting, Belenenses. O Imbelloni jogou ainda no Real Madrid e, depois, cá em Portugal.
Bom homem?
Homem fantástico, que acabou na miséria. Um genro deu-me cabo de todo o dinheiro, com uma procuração. Só para ver: quem lhe pagou o bilhete da viagem para a Argentina fui eu e o Manuel José. Dividimos a conta. Uns meses depois, soubemos que ele tinha morrido. Uma tristeza. Tal como o Imbelloni, também o Famalicão demitiu o adjunto Frederico Passos. Foram-se embora os dois. Então, os dirigentes apareceram em casa da minha namorada, agora minha mulher, e disseram-me que contavam comigo para o último jogo. Eu e o adjunto Melo, aquele baixinho, guarda-redes do Benfica, conhecido pelos quatro golos do Lourenço num Benfica-Sporting.
Qual era a missão?
Ganhar no Restelo para evitar a despromoção.
E?
Perdemos 2-0. Fui então para o Espinho, onde apanhei o Manuel José como jogador-treinador.
Espinho?
Jogávamos no Campo da Avenida, um pelado muuuuito difícil para toda a gente, inclusive Benfica, Sporting e Porto. O primeiro ano foi bom, o segundo foi mau, porque tive uma lesão no menisco.
Em 1981, assina pelo Braga de Quinito.
O Braga de Quinito em 1981-82, depois o Braga de Juca em 1982-83.
Com o Quinito, o Braga vai ao Jamor.
Essa final da Taça de Portugal é muito provavelmente o momento mais fantástico da minha carreira de jogador.
Eliminaram quem na meia-final?
O Benfica, em Braga. Das poucas vezes que o 1.º de Maio encheu por completo. Mas completo mesmo, a transbordar. Ganhámos 2-0 e o Humberto Coelho jogou como avançado nos últimos 20 minutos. Era uma táctica comum do treinador inglês do Benfica, o John Mortimore. Quando estava empatado ou a perder, metia o Humberto lá à frente e o Humberto era um portento. Marcava golos a torto e a direito. Às vezes, até marcava dois por jogos. Um fenómeno.
Na final, o Sporting de Allison foi mais forte.
Sem dúvida, o 4-0 espelha isso mesmo. Saí exausto, a 20 minutos do fim. O Fernando Vaz, grande referência do futebol português, fez-me um elogio rasgadíssimo na crónica de um jornal desportivo, porque realmente fiz uma bela exibição. No fim, só me lembro do Allison com uma garrafa de champanhe numa mão e um charuto na outra a passear-se ali na zona dos balneários. Que figura.
E o que dizer do Quinito de smoking?
Não foi bem de smoking. Foi mais de papillon, com um casaco branco. Aquilo fui muito giro. Apareceu-nos assim de surpresa, no hall do hotel. Ninguém estava à espera. Como sempre, aliás. O Quinito era dos que mais surpreendia as gentes do futebol. Por isso é que sentimos a sua falta, desde que se retirou por razões familiares.
Como eram os treinos deles?
Havia um treino à quarta-feira que era o treino da quarta-feira europeia. Eram treinos puxados, mais físicos que outra coisa, em que os jogadores andavam com outros às cavalitas a subir os degraus do 1.º de Maio, pela bancada acima. Primeiro normalmente, depois ao pé coxinho, depois assim, a seguir assado. Eram exercícios tramados e subir aquelas escadas com degraus altíssimos era um desafio imenso. Sem esquecer que as bancadas eram muito altas. Nós, claro, começávamos a bufar e a resmungar. Às tantas, o Quinito pára e olha para os papéis. Ele trazia sempre o treino numas folhas, espécie de cábula dos seus treinos como jogador do Racing Santander, em Espanha. Às tantas, ele parava, olhava para aquilo e dizia: ‘vocês têm razão, os espanhóis correm muito e não jogam nada; vamos lá fazer mas é uma peladinha’. E lá íamos, todos felizes da vida. O Quinito dava muita liberdade ao jogador numa altura em que o treinador era como um ditador. O Quinito, não. Fugia à regra.
Só uma coisa: a final de 1982 foi a única visita do Vítor Oliveira ao Jamor?
Nãããão, sempre foi um curioso de finais.
Então?
Tenho um grupo de amigos de Coimbra que se junta e vai às fases finais. Tanto se nos dá a final da Taça de Portugal ou Europeus/Mundiais. Fomos ao Inglaterra-1996, França-1998, Holanda/Bélgica-2000, Alemanha-2006. Temos aqueles bilhetes do follow my team e vamos até à final, independentemente de Portugal. Nunca cedemos á tentação de os vender, e olhe lá que recebemos algumas/muitas propostas inacreditáveis de dinheiro. Fomos sempre fiéis. Vamos pelo jogo, para viver toda aquela aquela envolvência.
E ao Jamor?
Voltei lá mais uma vezes. Vi o Benfica 5 Boavista 2, por exemplo. É a tarde em que o Futre dá um espectáculo sensacional. E fui lá ver o Sporting-Leixões em 2002. O Sporting do Bölöni e o Leixões do Carvalhal, na 2.ª B. Ganhou o Sporting com um golo irregular do Jardel, em fora-de-jogo. Nesse ano, o de 2002, ganhei 3-0 ao Sporting em Alvalade, pelo Gil Vicente. Havia o Manoel, um avançado muito muito interessante. Mais o marroquino Ali, que depois foi para o Boavista. No banco, o Paulo Alves saltou e ainda fez o 3-0. Foi uma noite interessante.
Isso já é a segunda fase do Vítor Oliveira no Gil. Na primeira, apanhou o Drulovic.
Que jogador, o melhor que apanhei como treinador. A meio da época, saiu para o Porto sem nós sabermos.
Como?
Saiu para o Porto e nós não sabíamos. Fomos de férias de Natal, para aí a 22 ou 23 Dezembro, e voltámos a 27. Achámos estranho a sua ausência e perguntámos-nos se o Drulovic teria ido para a Sérvia. No dia seguinte, fomos informados que tinha ido para o Porto. Quatro dias depois, apareceu-me ele lá em casa, com um dirigente do Porto, a justificar a saída. Havia uma cláusula no seu contrato que lhe permitia sair assim.
Como é que o Drulovic aterra em Barcelos?
O Drulovic estava na Suécia, onde vivia o irmão de um dirigente do Gil, agora da federação portuguesa de futebol, chamado Carlos Coutada. Ora bem, ele avisou-nos que o irmão tinha três jogadores sérvios muito bons: um extremo-direito, um ponta-de-lança e o Drulovic, que era o mais miúdo de todos, com uns 21 anos, acho. Ao fim de dez minutos do primeiro treino, saí do campo e disse ao presidente ‘você não deixe sair este miúdo’. Era o melhor, de longe. O melhor que já tive.
E já deve ter tido uns bons, não?
Uma vez, fui jogar à Madeira, com o Marítimo, ao domingo. Na véspera, fomos ver o Nacional e estava lá um tridente de ataque, que coisa: Edmilson, o loirinho do Porto e Sporting, Roberto Carlos e Silvinho. Assinámos com Edmilson e Roberto Carlos. O Salgueiros também. Dividiu-se então o negócio: o Edmilson foi para o Salgueiros e o Roberto Carlos para nós. Que avançado, muito, muito bom.
De volta ao Vítor Oliveira jogador. A seguir ao Braga, segue-se o quê?
Portimão. Um clube, em ascensão, que pagava muito bem. Chegámos à Europa com uma equipa boa. Na baliza, Damas.
Que personagem.
Damas foi o melhor guarda-redes que conheci e foi um desgosto enorme quando soube da sua morte. Perdi um amigo nessa hora. Era para ser meu adjunto do Portimonense, quando o Manuel José o levou para o Sporting, já a caminho dos 40 anos. Era incansável.
Dizia Damas. Mais?
Coelho à direita, Balacó, Simões e Freitas como centrais. À esquerda, Teixeirinha do Estoril. No meio, eu, Pedroto, Nelson, que morreu muito cedo, Abreu, do Vitória, e Skoda, um belíssimo jogador, que chegou à seleção AA. Na frente, Rui Águas, Norton de Matos, o pai do Fábio Martins do Chaves e Cadorin.
Cadorin é outro nome incontornável do futebol algarvio?
Era um jogador muito difícil, quer no balneário, quer fora. Um jogador de conflito e uma pessoa libertina. Dentro do campo, um jogador fantástico, daqueles que resolvia jogos. Não era um grande profissional e excedia-se de vez em quando.
Há aquele caso de suborno com o Cadorin antes de um Portimonense-Porto.
Era eu o treinador e foi uma tentativa de suborno.
Lembra-se dessa semana?
Totalmente. O comportamento do Cadorin durante essa semana foi totalmente diferente do habitual.
Porquê?
Estava muito apático, alheio ao grupo, como se estivesse comprometido, com um peso na consciência. Ele tinha problemas com alguma frequência e falei com ele. Tanto eu como outros. Pressionámos, pressionámos e ele nada. Até que me apareceu em casa, numa quinta ou sexta-feira, já não sei bem. Morávamos no mesmo prédio e ele tocou-me à porta, acompanhado pela mulher, a dizer que precisava de falar comigo. Foi aí que falou do suborno e tal. Liguei ao presidente, que falou logo para a Judiciária. Foi uma coisa muito complicada.
No dia de jogo, o Cadorin joga?
Entendi que devia jogar e foi ele quem marcou o 1-0. Na baliza do Porto, o Zé Beto.
Que morreu num acidente de carro.
Éramos amigos e tinha estado com ele uns dois dias antes, num jantar em Matosinhos.
Como é que o Vítor passa de jogador a treinador do Portimonense assim de repente?
Acabou por acontecer sem ter feito nada por isso. O Manuel José foi contratado pelo Sporting e eu fui nomeado. Havia um nome ou outro em carteira, como Álvaro Carolino e Raúl Águas, só que o Portimonense acertou comigo. Naquela altura, não podia ser treinador porque não tinha as habilitações necessárias. Ia para o banco como diretor, eu que nunca assinei um cheque nem nada parecido. Fui então tirar os cursos e rapidamente consegui chegar ao quarto nível. A meio da terceira época, saí daqui e fui para o Norte. Voltei agora, 30 anos depois. Um acontecimento inacreditável.
Como treinador de 1.ª divisão, ganhou algumas vezes no campo dos três grandes?
Já falámos do 3-0 do Gil em Alvalade. Nunca ganhei nas Antas ou Dragão, só como jogador, numa Taça de Honra da AF Porto e até marquei um golo no 2-1. Na Luz, ganhei duas vezes, uma pelo Gil, golo de Mangonga, outra pelo Belenenses, um 3-2 com golo de Rui Gregório. Curiosamente, a vez que fiz mais mossa foi um empate, pelo Vitória. Marcámos o 1-1 em cima dos 90′, por Ricardo Lopes, se não me engano, e o Artur Jorge saiu do Benfica no dia seguinte.
Obr…
Espere aí, que lembrei-me de outra vitória em Alvalade, como jogador. Um Sporting-Leixões em 1972-73 que acaba aos seis, sete minutos com uma invasão de campo. Marcámos cedo, de penálti. O primeiro penálti é defendido pelo Damas e o árbitro manda repetir. O nosso treinador António Teixeira manda trocar o marcador e é golo, à segunda tentativa. Uns minutos depois, há uma jogada nossa em que é pontapé de baliza para o Sporting e o árbitro dá canto. Aquilo foi muito complicado. Muito mesmo. Vi coisas inenarráveis e o árbitro foi selvaticamente agredido. Vi um gajo bater no árbitro com um capacete de mota. Lembro-me mesmo bem desta imagem. Fomos todos para os balneários e, já reposta a ordem, a polícia queria reatar o jogo. Só que nós tínhamos um treinador experimentado, matreiro e não voltámos ao campo. Tivemos de arranjar uns três ou quatro gajos muito feridos.
Como?
O nosso massagista teve de meter adesivos em três ou quatro jogadores nossos para evitar o reatamento do jogo, senão estava o caldo entornado. O ambiente lá fora era mau, muito mau. Não podíamos voltar ao jogo e não voltámos. A federação deu-nos uma vitória por 3-0.
Como eram os árbitros de então?
Sempre a favor dos grandes, desequilibravam ainda mais a balança. Nem tínhamos qualquer hipótese.
Lembra-se jogadores fora de série?
O Eusébio a marcar golos sem ângulo, o Yazalde era uma máquina, impressionou-me bastante. E o Cubillas. Nos jogos com o Porto, já eu era jogador, só queria que lhe passassem a bola para vê-lo jogar. Uma vez, num Porto-Leixões, ele pegou na bola no meio-campo e driblou uns quatro ou quinto até entrar com ela pela baliza dentro. Genial, o Cubillas.
(o autocarro para Lisboa está quase quase a partir, Vítor Oliveira leva-nos ao terminal; na viagem curta, só mais dois apontamentos de reportagem: ‘uma vez, para a Taça Ribeiro dos Reis no início dos anos 70, há um Chaves-Leixões e apanho o Matateu. Que jogador, nem lhe digo nada. Anos depois, treino o Belenenses e apanho o irmão Vicente. Até assustava a sua simplicidade’)
(à despedida, um passou-bem e, pelo canto do olho, vejo umas chuteiras pretas no banco de trás:
Ò Vítor, isto é de que século?
Eheheheh, início dos anos 80. Eram do Manuel José.
G’anda classe. Todas pretas, não se fazem assim.
Ò Rui, isto agora é tudo uma pieguice pegada. Tanto as modas como o próprio futebol’)