Great Scott #448: Quem janta um churrasco de cabrito em Viseu no ano de 1983?
Maradona
Diego assina pelo Barcelona em 1982 e vai morar em Pedralbes, numa casa com três andares, dez quartos e um campo de ténis. A renda é de 450 contos. O início é inglório. Apanha uma febre alta e falha metade da pré-época, até à final do Teresa Herrera, na Corunha, onde o Dínamo Kiev dá um baile de todo o tamanho ao Barcelona com quatro golos em 38 minutos. Acaba 4:1, o festival.
A estreia oficiosa é em Meppen, na Alemanha, a 20 km da fronteira holandesa, a 3 Agosto. O primeiro golo da pré-época é precisamente de Diego, de penálti. O argentino elogia o espírito de grupo. ‘Os marcadores de penáltis são, por norma, Quini e Simonsen. No entanto, eles insistiram para que fosse eu o rematador, uma atitude que me emocionou.’
Três semanas depois, no dia 21, a estreia oficiosa em Espanha. Que não continental, e sim na ilha de Maiorca. Os lugares mais caros estão todos cheios, as clareiras do estádio notam-se é no peão. Diego joga de início e atira ao poste. Só isso. Quatro dias depois, a estreia em Camp Nou, por ocasião do Joan Gamper, então um torneio quadrangular. Na ½ final, 0:0 vs Internacional e desempate por penáltis. Quini falha, Alexanco idem, Diego é o único do Barcelona a enganar o guarda-redes Benítez. Como consolação, o terceiro lugar? Nem isso, outra derrota nos penáltis, agora vs Colónia. Diego volta a acertar o seu remate — e já fora dele o 1:1 a Schumacher aos 39 minutos.
Ainda a Liga está por arrancar e já o presidente Núñez desce ao balneário para o tradicional puxão de orelhas. Més que uma confusão. Sobre Diego, chovem críticas. ‘Não vos compreendo, juro; vocês podem criticar-me, porque valho oito milhões de dólares e tenho de fazer mais, muito mais, mas não critiquem constantemente os meus companheiros como se eles fossem os maus da fita’, diz o 10.
Na sua cabeça, os maus da fita nem jogam. Um é o presidente Núñez, ‘um tarado social, que se atira de cabeça para entrar em todas as fotografias e que nos oferece sempre mais dinheiro no intervalo dos jogos como se a vitória ou a derrota dependesse da guita. O outro é o treinador alemão Udo Lattek. O seu registo de treino é monocórdico, quase pré-histórico. A lenga-lenga de sempre, correr à volta do campo e levar bolas medicinais de oito quilos de uma baliza à outra. Uma vez, Diego atira-lhe a bola ao peito e diz-lhe ‘ouça mister, porque não faz isto uma vez para ver como se sente amanhã?’
Arranca a Liga, em Valencia. O Luis Casanova até estala. No meio-campo, Kempes abraça Diego para a fotografia. Aos 20 minutos, Diego marca o primeiro da noite numa jogada bonita de combinação com Marcos pela esquerda. O Valencia dá a volta, 2:1. O Barcelona cai, com estrondo. Diego é apupado por tudo e todos, imprensa incluída. ‘Maradona é um bluff, uma invenção dos argentinos.’ A meio da semana, o Barcelona desloca-se a Florença para ganhar oito milhões de pesetas pela presença de Diego. É o preço da fama, já exercido sobre outras figuras do passado, como Pelé e Eusébio.
Há que esmifrar a galinha dos ovos de ouro. Com Diego, idem idem aspas aspas. Jogam dez suplentes mais Diego, acaba 0:0. No regresso a casa, a delegação do Barcelona passa o dia todo em aeroportos. Organizações limão é o que é. Diego começa a impacientar-se. Tal como Núñez, farto de ouvir falar das noitadas do argentino, ora em discotecas, ora em concertos. Diego nem sequer se esconde. Pregunta-lhe sobre Nuñéz. ‘Não quero saber, ele não pode controlar a minha vida privada.’
Numa dessas escapadas, Diego é visto em Viseu. Ya, na capital das rotundas em Portugal. Uauuuuuuu. Nem mais. Repetimo-nos, uauuuuuuu. É a cerimónia da entrega dos prémios Gandula, organizada pelo jornalista Wilson Brasil, radicado em Portugal há anos e jornalista da Gazeta dos Desportos. Há vários convidados de gabarito, como José Maria Pedroto, João Rocha, António Garrido, Fernando Gomes, Octávio Machado, Reinaldo, Mário Jorge e por aí fora.
De repente, perto da meia-noite, surge um carro. Abre-se a porta e sai Diego. Insistimos, uauuuuuuuuuu. È seguramente o mais ilustre visitante dessa Feira de São Mateus. Às três da manhã, dá entrada no Hotel Grão-Vasco, onde diz à revista ‘Olá Viseu’
– O que fez deslocar-se a Viseu quando outros se recusam a vir?
– É meu costume contribuir com a minha presença para o êxito de todas as realizações do género, pois considero que, através dela, posso dar uma achega para a sua continuidade. Espero voltar em breve para conhecer melhor a cidade, porque hoje não deu tempo nenhum.
– Aceitaria um convite para jogar em Portugal?
– Sim, já existem clubes de bom cartel, só que tenho contrato com o Barcelona por seis anos.
– Acredita na Argentina para o próximo Mundial?
– A Argentina tem uma equipa tão boa como as melhores, o que lhe dá as mesmas possibilidades. Acredito que será campeã mundial em 1986.
– É do conhecimento geral que adiou a data do seu casamento pelo facto da imprensa ter tomado conhecimento antecipado da sua realização. É possível saber para que data está marcado?
– Neste momento, ainda não tenho data. Logo que seja acordada com a minha noiva, comunicá-lo-ei à imprensa.
– O que sente quando marca um golo?
– Considero-o como se fosse o melhor de toda a minha carreira. É como se fosse o meu primeiro golo.’
Só para ajudar à festra, eis o testemunho de Fernando Emílio ao Maisfutebol sobre essa movida viseense. ‘Havia na altura os Troféu Gandula, que tinham sido criados pelo grande jornalista Wilson Brasil, que atribuiu em 1983 o prémio de jogador internacional ao Maradona, que era um miúdo de 23 anos e jogava no Barcelona. Mas ele nunca na vida imaginou que ele vinha a Viseu receber o prémio. A verdade é que o Maradona aparece ainda antes do início da gala. Veio de avião para Lisboa, alugou um carro e apresentou-se em Viseu. Sozinho, sem mais ninguém. Perguntou como ia para Viseu e apresentou-se lá. Agora imagine os perigos que aquele homem correu, a conduzir sozinho, a fazer a estrada nacional de Coimbra para Viseu. Até veio clandestinamente, porque não teve autorização do Barcelona. No fim da gala regressou a Lisboa, dormiu e no dia a seguir viajou para Barcelona. Inclusivamente ainda tenho a fotografia dele a receber o prémio. Bem, mas ele chega a Viseu e chega cheio de fome, a dizer que precisava de jantar. O Wilson Brasil pediu ao Neves de Sousa para o levar a um restaurante, mas o Neves de Sousa não conduzia e pediu-me a mim para os levar. Fomos os três comer um churrasco de cabrito ao restaurante Casablanca, que ainda hoje existe. Naquela altura eu era um aprendiz de feiticeiro, a grande figura do jornalismo era o Neves de Sousa. E ele é que foi o tempo todo a falar com ele, inclusivamente depois contou a história de como conheceu o Dieguito, no Diário de Lisboa. O Neves de Sousa tinha uma paixão muito grande por futebol e falaram de futebol. O Maradona era um miúdo cheio de vitalidade e foi o tempo todo a falar. Mas ele acima de tudo, ele queria comer qualquer coisa. Fomos àquele restaurante, que fica no centro de Viseu, e o chefe de mesa, que se chamava Octávio, propôs-nos o churrasco de cabrito. Ele adorou. Bebemos um vinho do Dão e ficou maravilhado com aquilo tudo. Adorou o jantar. Passados muitos anos, em 2016, estava eu a fazer a cobertura da Volta ao Dubai, a acompanhar o Tavira, quando vejo entrar na tribuna o Maradona, com uma namorada loira, a fumar um charuto. O Maradona aproxima-se de mim e diz-me: ‘Es portugués? No te recuerdas de mi? Comi um chibito maravilloso en tu terra’. Sinal de que ele gostou mesmo do cabrito, porque não se esqueceu.