Eusébio. Do golo ao Sporting às notas de 20 escudos

Kali Ma Mais 01/25/2022
Tovar FC

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Eusébio. Do golo ao Sporting às notas de 20 escudos

Respeito e admiração. É a base de tudo. Sem excepção. Da amizade à família e por aí fora. A um dia da última homenagem nacional a Eusébio, a caminho do Panteão por unanimidade parlamentar (até “Os Verdes”, vejam lá), o i sai de Queijas para Lisboa e visita os locais de eleição.

De quem? Ora essa. Do Eusébio, claro. O homem comete a proeza de ter mais golos que jogos no campeonato (317-301), na Taça de Portugal (97-61), pelo Benfica, e até no Mundial (9-6), pela selecção. É Rei, só pode. E é mesmo – os golos provam-no, os títulos idem idem (11 campeonatos é um recorde em vigor).

Fora dos relvados, Eusébio é (também) o maior. Respeito e admiração. Sem excepção. A viagem começa na Tia Matilde, boa casa de pasto ali para os lados da Rua da Beneficência. Percorre-nos uma sensação de déjà vu. É lá que o entrevistamos em Dezembro 2010. Eusébio fala com calma. Avança como se fosse um extremo, às vezes recua, que é como quem diz rectifica, depois avança novamente e fala sem parar, ziguezagueia pelo vocabulário à procura da melhor palavra para qualificar este ou aquele ou para definir um ou outro momento, seja glorioso ou simplesmente anedótico, entre uma garfada e outra de arroz de peixe. A sua memória tem não sei quantos megas de ram.

Ao balcão, está sentado um senhor a ver um álbum. De quem? Eusébio, pois claro. E o senhor tem esse maiúsculo. É o Senhor Emílio, de 94 anos, dono da Tia Matilde. E de uma invejável memória. Sentamo-nos e lá vem história. Inédita, aos nossos ouvidos. “O Eusébio chegou cá em Dezembro de 1960. Foi esperá-lo ao Aeroporto de Lisboa o jornalista Cruz dos Santos, d’A Bola.” E aponta para uma fotografia na parede. Olha olha, os três da vida airada. “Por ocasião do 71.º aniversário do Eusébio, telefonei ao Cruz dos Santos e fizemos aqui um jantar divertido.”

Emílio continua o dono da bola. “O Eusébio chegou meio às escondidas, como se sabe. E assim se manteve até à estreia oficial pelo Benfica, em Junho 1961. Quem estava sempre com ele era o Domingos Claudino, director do Benfica. Um dia, levou-o a Alvalade para ver o Sporting-Académica do campeonato.” O jogo diz respeito à 16.ª jornada, a 22 Janeiro 1961. Decide Geo. “Quando é esse golo, o Eusébio levanta-se do lugar e festeja-o. O Domingos Claudino olha-o com desconfiança e leva-o dali para fora. De Alvalade para o Algarve, onde Eusébio passará uma temporada sem ninguém lhe pôr a vista em cima.”

Assim, sem escalas? Ah-ha, aí é que está. “O Domingos Claudino já aí é cliente habitual da Tia Matilde e pára aqui com o Eusébio para um lanche antes da viagem ao Algarve. É a primeira vez que vejo o Eusébio. Daí para a frente, será sempre um companheiro, um amigo, uma referência, um irmão. Só para ver bem, ele chamava-me de Pai Branco.”

E qual o melhor golo que o vê marcar? “Um golo ao Real Madrid naquela noite em que o Benfica dá cinco-um.” Emílio responde sem hesitação. E relembra. “Ele pegou na bola naquele jeito dele e foi por ali fora a passar adversários atrás de adversários. De repente, puuuuum, um pontapé do meio do nada.”

A conversa anima e agora é uma das filhas de Emílio quem nos mostra umas fotografias emolduradas ainda guardadas dentro de gavetas e armários. Uma delas, vê-se Eusébio com Hilário, equipados a rigor (Benfica e Sporting), e uma dedicatória ao Pai Branco. Um amigo de Emílio espera-o no bar, é hora do adeus. Antes, tempo ainda para ver uma fotografia de Eusébio vestido à Sporting (de Lourenço Marques), durante uma visita a Moçambique, a 8 Agosto 1986, dia do aniversário de uma das filhas de Emílio. Lindo.

Daí para a Avenida Columbano Bordalo Pinheiro nem sequer é um quilómetro. Num ápice, empurramos a porta do Sete Mares, onde Eusébio janta. “Sempre peixe”, garantem-nos. “E ele sabia o que comia, só pela posta. Às vezes, dizíamos que era isto e ele, do lado de lá do vidro, metia o olho no olho como quem diz ‘estás a querer enganar-me?’. Isto é mas é aquilo. E acertava sempre.”

A sua mesa está lá, imaculada. Ao lado do prato e dos talheres, um poster do Rei, um cachecol dos Diabos Vermelhos, uma bandeira de Portugal e duas caixas de charutos. “Aqui ninguém toca nem ninguém se senta, é a mesa de Eusébio”, conta-nos Gabriel, o homem atrás do balcão. “Os primeiros meses foram difíceis. Estávamos tão acostumados a vê-lo a entrar por ali e a confraternizar connosco.”

Da saudade para as histórias hilariantes é um passo. Junta-se Nunes. O “afilhado do Eusébio”, diz-nos Gabriel a piscar o olho. “Quando lhe ligavam para o telemóvel, ele pedia-nos para dizer os últimos quatro números. Sabia logo quem era: fulano, beltrano ou sicrano. E aquilo era uma lista telefónica com centenas de números na cabeça.” O pessoal empolga-se, o i também. “Ele contava-nos muito esta história: nos primeiros tempos de Benfica, o treinador Bela Guttmann pedia à direcção para pagar o salário ao Eusébio em notas de 20 escudos. Quando lhe entregava a ordenado, dizia-lhe ‘para ti, envelope gordo’.”

Só mais uma, só mais uma. “É dia de Benfica-Belenenses, na Luz [1963-64]. O Manuel Rodrigues, um defesa do Belenenses, insulta a mãe do Eusébio uma e outra vez. Beeeem, ele ficava doido com isso. Às tantas, Eusébio queixa-se ao Sr. Coluna, com ele o chamava, e este diz-lhe para não ligar nenhuma. O problema é que o Manuel Rodrigues insiste nos insultos. O Eusébio volta a queixar-se ao Sr. Coluna e a resposta é a mesma. De repente, há um livre, o Eusébio pede ao Sr. Coluna para batê-lo e acerta em cheio no Manuel Rodrigues. Sabe o que lhe aconteceu? Foi parar ao hospital e passou lá dois dias. Passados esses, ele continuava com a marca da bola. E o Eusébio pagou-lhe as contas. E também explicou à mãe do Manuel Rodrigues o que se passara.” Pronto, tudo em pratos limpos.

Só mais uma, só mais uma. Agora sim, pessoal, é a última. “Certo dia, ele estava aqui no balcão e um grupo de turistas viu-o. Aproximou-se em grupo, sorrateiramente. Às tantas, só um deles é que tomou a dianteira. O Eusébio vira a cabeça para trás, olha na sua direcção e depois volta-se para o prato. O senhor, um holandês, diz-lhe ‘eu conheço-o’. E ele, mais tranquilo que nunca, ‘eu também, foste o meu marcador naquele jogo x no ano y’. Ele conhecia-o de um só jogo! E um amigável!! Beeem, o holandês estava de boca aberta, sem acreditar em nada daquilo. Tinha cá uma memória.” Que perdure a nossa em relação a Eusébio.

in jornal i, Jun 2014

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