Nuno Martins. ‘Eusébio parecia um bailarino. Marcava golos e fazia todo o tipo de diagonais’

Kali Ma Mais 01/25/2022
Tovar FC

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Nuno Martins. ‘Eusébio parecia um bailarino. Marcava golos e fazia todo o tipo de diagonais’

Entre 473 golos em 440 jogos, onze campeonatos nacionais, cinco Taças de Portugal e uma Taça dos Campeões. Não é ficção. É o currículo de Eusébio pelo Benfica. Absolutamente fantástico.

E tudo começa a 1 Junho 1961. Enquanto o plantel principal do Benfica aterra na Portela para a consagração popular, um dia depois de ganhar a final da Taça dos Campeões pela primeira vez (3:2 vs Barcelona, em Berna), a equipa B joga em Setúbal, no Campo dos Arcos, com o Vitória, para a 2.ª mão dos oitavos da Taça de Portugal.

Entre muitos desconhecidos, está lá um Eusébio. Como não podia deixar de ser, dá que falar. Um golo e um penálti falhado — ou melhor, defendido por Félix Mourinho. Começa aí a lenda? Nem por isso, Eusébio já é lenda em Moçambique, onde se formara no Sporting de Lourenço Marques, lançado por Nuno Martins, o seu primeiro treinador nos seniores.

E o que é feito dele? Vive em Setúbal. Onde Eusébio se estreou há 50 anos. E foi lá que o i o encontrou, à saída da estação de comboios, como combinado. “O Rui vai perceber que sou eu, tenho um pin da Académica na lapela do casaco.” Que seja, então. E a verdade é que não há mais ninguém da Académica naquela estação. Só um senhor elegantemente vestido, com um ar distinto e jovial. É Nuno Martins, claro.

Porquê Académica?

Ò meu amigo, eu joguei na Académica.

[já não está cá quem falou; baldei-me ao TPC e agora é isto]

Mas não se preocupe. Vai saber tudo sobre mim. Trouxe aqui recortes de jornais que fundamentam a minha existência. E sim, joguei na Académica, entre 1953 e 1957, sempre na 1.ª divisão.

E qual é a sua melhor recordação?

Um jogo inesquecível em Braga, na época 1955-56. A Académica arriscava a descida de divisão e o Braga apresentava uma equipa melhor que a nossa mas o trajecto de autocarro para o estádio foi decisivo. O treinador, que era um homem formidável chamado Cândido de Oliveira, disse-nos que era o tudo ou nada e disse-nos para jogarmos homem a homem. Eu, como lateral-direito, apanhei com um argentino Garófalo pela frente. Um extremo fortíssimo no um para um, com atributos técnicos acima da média. Só não o acompanhei ao balneário, de resto…

E ganharam?

Sim senhor, 3-1. E sabe o que aconteceu depois?

Não. Se eu nem sabia que tinha jogado na Académica, quanto mais…

O Cândido de Oliveira disse-nos que o prémio de jogo era umas camisolas de jogo com gola redonda, sabe? Naquela altura, era um luxo. Não se viam por aí. Eram todas em forma de v, sabe?

E isso foi o prémio de jogo?

Sim senhor. Eram outros tempos, está a ver?

Está bom de ver que sim, que eram outros tempos. Mas e mais recordações?

[Nuno Martins abre uma paste bege e tira de lá uma foto] Está a ver isto? Foi tirada depois de um Benfica, 1 – Académica, 2 [no dia 3 de Janeiro de 1954]. Ganhámos no Campo Grande com um golo do André a dois minutos do fim. Este aqui sou eu mais o André, imediatamente depois do jogo, ainda vestidos à Académica, sem banho tomado.

Então, e depois da Académica?

Fui jogar para Moçambique. Fiquei encantado com aquela terra e quis ficar. De 1958 a 1964, fui jogador, capitão e treinador do Sporting de Lourenço Marques.

Ah, então foi assim que se cruzou com Eusébio?

Sim, vamos lá começar a conversa a sério [risos]. Num determinado dia, ou melhor noite. Naquela altura, os treinos eram das 19 horas até às 22, 22 e tal. Estava eu a trabalhar com os três guarda-redes com bolas medicinais quando me aparece um seccionista do Sporting, de seu nome Vigorosa, a dizer “Estão ali cinco rapazes que querem treinar e vir à experiência. Um deles, já o vi jogar e é muito bom, um miúdo com uma habilidade nata, um fora de série”. Àquela hora, não dava muito jeito mas eram miúdos e devemos sempre dar-lhes uma oportunidade. Ok, disse eu, que calcem umas sapatilhas e vamos observá-los. Aparece então um miúdo magrinho, de 16 anos, e espantou-me a sua voz de líder. Perguntei-lhe o porquê ter aparecido só àquela hora e ele responde-me: “Bem, fomos ali ao campo do Desportivo [conotado com o Benfica de Lisboa, devidamente simbolizado com a águia] e não nos deixaram entrar.”

Porquê?
O treinador de juniores do Desportivo era um senhor chamado Mário Romeu, funcionário da embaixada italiana em Lourenço Marques, e certamente já tinha acabado o treino. Ter-lhes-á dito “não, hoje já não há mais nada para ninguém.” E o Eusébio, juntamente com os seus quatro amigos, saiu do Desportivo e entrou pelo portão do Sporting, onde estava eu a treinar os guarda-redes.

E depois?

Eles os cinco treinaram comigo e com os três guarda-redes. Fizemos um campo improvisado e jogámos uma peladinha, onde percebi que o Eusébio tinha uma habilidade acima da média. Disse-lhe logo ‘tu ficas no Sporting, podes ser inscrito’ ao que ele respondeu imediatamente ‘inscrevo-me eu não, ou nos inscrevemos todos ou não se inscreve ninguém’. A tal firmeza na voz aos 16 anos. Isto é muito importante. Não é para todos. Eu então disse ao Vigorosa para os inscrever a todos.

Desculpa lá mas vou repetir-me: e depois?

Aos 17 anos, o Eusébio já era um jogador feito. Chamei-o ao meu gabinete e perguntei-lhe se queria mais uma época nos juniores ou se queria saltar já para s honras, que era como se chamavam os seniores. Ele respondeu-me na hora: ‘Quero ir para as Honras.’ Pronto, o resto é história.

Não, não. Conte lá algumas histórias do Eusébio.

Os primeiros jogos foram verdadeiramente empolgantes. Ele tocava na bola e levava tudo à frente. Era um fenómeno. Marcava golos, assistia os companheiros, fazia todo o tipo de diagonais.

Jogava a que posição?

Interior-esquerdo. Sempre. E sempre com o número 10. Tinha cá um pé esquerdo. Mais habilidoso e potente que o direito. Com o passar do tempo, habituou-se a jogar mais com o direito do que com o esquerdo e isso permitia-lhe fazer todas as diagonais possíveis e imaginárias. Agora estou a lembrar-me…

De quê?

De uma viagem às Maurícias, pela selecção. Em Lourenço Marques, só havia pelados. E nas Maurícias, o clima é marítimo, pelo que a relva era húmida. O Eusébio calçou uma chuteiras com pitons rasos e fez jogos extraordinários, sem cair uma única vez. Os locais estavam verdadeiramente espantados porque alguns deles ainda tropeçavam, escorregavam, caíam. O Eusébio não. Parecia um bailarino. E marcava golos. Na estreia pelo Sporting, ganhámos 4-1 e ele marcou logo um ou dois. A partir daí, começou a ser conhecido. E a lenda foi crescendo, crescendo…

É aí que aparece o Sporting e o Benfica?

Não, não. Antes disso, há o Belenenses. Lembro-me perfeitamente que o Belenenses fez uma digressão por Moçambique e jogou com a selecção dos naturais. Quando chegou a Portugal, o mestre Otto Glória, treinador do Belenenses [e seleccionador de Portugal no Mundial-66], foi questionado pelos jornalistas portugueses sobre Eusébio, porque já se falava dele. Mas Otto Glória respondeu que “não, como Eusébio havia lá muitos.” Sinceramente, não percebi.

Terá Eusébio jogado mal nesse dia com o Belenenses?

Sim, não terá sido o Eusébio de sempre mas dizer que há muitos como ele… Essas reticências do Otto Glória fizeram com que o Sporting não apostasse logo no rapaz. Aliás, eu próprio, como treinador do Sporting de Lourenço Marques, recebi dois telefonemas do Sr. Fernando da Costa, chefe de departamento do Sporting Clube de Portugal, a perguntar-me se o Eusébio era, de facto, aquilo que se dizia na imprensa. Eu respondi sempre que sim, que o rapaz não enganava ninguém, mas do lado de lá disseram-me que ele não ia para o Sporting.

É aí que aparece o Benfica?

Antes de responder a isso, vou dizer-lhe uma coisa: um certo dia, estava eu a preparar-me para sair de casa em direcção ao Campo João da Silva Pereira para mais um treino no Sporting, quando o Eusébio bate-me à porta. Foi lá despedir-se de mim, que já não iria treinar nessa quinta-feira. Até me lembro da frase dele: ‘Eu vou para o Puto’, como era conhecido Portugal. Eu questionei-o: ‘Mas então já assinaste, já falaste com a Direcção” e ele respondeu-me ‘já, já’. E estava correcto. A Direcção estava ao corrente de tudo e o Eusébio desapareceu de cena. Antes disso, pedi-lhe uns minutos, fui a casa e ofereci-lhe um casaco-blazer que tinha comprado na África do Sul. Ele agradeceu e adeus.

Mas e a teoria do rapto?

O que eu sei é que o Eusébio pernoitou na casa de um senhor chamado Vasco Machado, juntamente com o Major Rodrigues de Carvalho, que mais tarde acabou por ser Brigadeiro e Presidente da Assembleia Geral do Benfica. Ora o que se passou? Conta-se que esse Major foi à estação central dos Correios, Telégrafos e Telefones de Lourenço Marques, ao lado do Café Scala, na parte baixa da cidade, e emitiu dois telegramas. Um para o Sporting Clube de Portugal, a dizer “Eusébio segue navio motor, Príncipe Perfeito”. E outro para o Benfica. “Rute, segue avião hoje”. O que aconteceu? Enquanto o Sporting fez contas de cabeça sobre a viagem de barco, que atracava em Chelas, o Benfica foi buscar o Eusébio à Portela naquela noite de Dezembro de 1960.

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