Great Scott #586: Único futebolista na capa de um disco vinil a mandar todos para aquele sítio?

Great Scott Mais 07/18/2022
Tovar FC

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Great Scott #586: Único futebolista na capa de um disco vinil a mandar todos para aquele sítio?

Robin Friday

Hoje começamos com o Titanic. O supernavio é lançado ao mar em 1912, fala-se da maior obra até então feita pelo homem. Desenhado e construído em Belfast, o barco viaja da capital da Irlanda do Norte para Southampton (Inglaterra), daí para Cherburgho (França), depois Queenstown (República da Irlanda) e, finalmente, Nova Iorque (EUA).

Facto: há 3.327 pessoas a bordo entre passageiros (2435) e tripulação (892, dos quais 176 bombeiros).

A três semanas do início da viagem desde Belfast, o Titanic é abastecido de tudo e mais alguma coisa para a viagem de seis dias. Entra carvão e mais carvão, toneladas e toneladas. E; já se sabe, o carvão ali todo amontoado incendeia-se por si só, nem é preciso um fósforo – basta o seu calor. Imaginem carvão em cima de carvão. Imaginem três andares de carvão, tudo entalado numa antepara. Imaginem que desconhecem a palavra antepara? (como eu, por exemplo)

Facto: antepara é a estrutura em jeito de tabique para dividir o interior de um navio em compartimentos.

Já está? Imaginado, quero dizer? Ora então, o carvão incendeia-se e há um fogo imenso dentro do Titanic antes da largada ao mar. Antes, vejam bem. O que fazer? Os 12 bombeiros naquela antepara passam o tempo a encher as caldeiras do carvão incendiado para evitar males maiores. E os donos do Titanic? A palavra de ordem é silêncio, o silêncio é ouro, queremos ouvir silêncio. E eles, bombeiros, bons rapazes, voluntários e até bem pagos, cumprem a ordem.

Facto: só oito dos 176 bombeiros aceitam continuar a viagem desde Southampton.

Naturalmente, o calor faz mossa. O medo, então, nem se fala (lá está, o silêncio é de ouro). Seja como for, é impensável parar a viagem. Imagine lá os cabeçalhos dos jornais de época, estilo ‘Titanic: incêndio impede viagem do wonder ship’. Quem aceitaria continuar até Nova Iorque? E quem devolveria o dinheiro dos bilhetes? Pois é. A propósito, os bombeiros continuam a trabalhar a altas temperaturas. Dizem os entendidos, o carvão on fire larga entre 500 a 1000 graus Celsius. Caliente. Seja, o aço é mais forte e faz-lhe frente. Sim, o aço especial. Só que a White Star Line (companhia do Titanic) (em risco de falência, já agora) (daí a pressa em fazer a viagem cheio de milionários em primeira classe) opta pelo aço normal. Uma carta revela as intenções e aparece a palavra ‘ordinary’ em vez de ‘special’ associado ao aço.

Facto: o Olympic, irmão mais velho do Titanic, é lançado ao mar em 1911 e é brutalmente arrombado pelo cruiser inglês HSM Hawke; não há mortos nem feridos, há só uma expressiva abertura no casco e aço torcido como se fosse papel (lá está, ordinary em vez de special).

O Titanic avança destemido, a toda a velocidade. Pudera, com tanto carvão entrar sem parar nas caldeiras. No pares, sigue sigue, no pares. Quando o comandante recebe a informação da proximidade de uma zona de icebergues, fazer o quê? Ou poupa o carvão e reduz a velocidade ou continua a meter o carvão a mil à hora para evitar um incêndio e arrisca tudo na sorte?

Facto: um milhão de mineiros ingleses avançam para greve em Fevereiro 1912 e só voltam a trabalham 37 dias depois, a cinco dias da partida do Titanic (ou seja, o carvão encarece e nem é tácito que esteja em suficiente quantidades no navio para chegar a Nova Iorque)

Claro, a opção recai sobre continuar a dar no carvão como se não houvesse amanhã. E a verdade é que não há. Para o Titanic, dizemos. E os mais de 1500 mortos. O navio chega à velocidade absurda de 23 nós (43 km/h) e raspa num icebergue. E raspa onde? Precisamente na zona da antepara incendiada há dias, semanas. É a confusão total, o pânico, o caos. Quando a tal antepara cede à água, game over. Só se salvam uns quantos. Minoria.

Facto: só há 20 barcos salva-vidas, suficientes para 1.178 pessoas (há mais do dobro no navio).

Titanic, a maior obra do homem afunda-se num piscar de olhos. E então, qual a ligação com o nosso herói de hoje? Robin Friday nasce com um fogo interior nunca visto, Robin Friday afunda-se em quatro anos. Robin quem? Robin Friday, a maior relíquia inglesa. Robin Friday, o mais excêntrico de todos os jogadores ingleses.

Robin Friday nasce em 1952, no dia 27 Julho. A partir daí, é sempre a abrir. Aos dois anos, estreia-se a ir à bola, levado pelo pai ao campo do Brentford, onde jogara o seu avô materno antes da 2.ª Guerra Mundial. Aos quatro, já vai todos os dias ao parque para jogar futebol, seja com o irmão gémeo Tony, com o pai ou ilustres desconhecidos. Aos dez, faz malabarismos com uma laranja: levanta-a, mete-a no pescoço e deixa-a escorregar pelo corpo até recomeçar a dar toques com os pés. Aos onze, também dá espectáculo a jogar ténis, críquete e boxe. Aos 12, entra nas escolinhas do Crystal Palace. Aos 13, entra nas do QPR. Aos 14, chega às do Chelsea. Aos 15, abandona a escola.

Prefere o trabalho, é pedreiro, condutor de carrinha numa empresa de construção civil e limpador de janelas. Faz tudo sem o mínimo interesse. Como diz o pai, ‘he didn’t care’. Aos 16, é preso e remetido para um centro de detenção juvenil durante 14 meses. Nesse período, aplica-se no físico e sai todo fit. Além disso, é eleito para a equipa ideal do futebol da sua prisão.

Quando regressa ao seu bairro de sempre (Acton, oeste de Londres), junta-se à namorada de sempre (Maxine Doughan) e casa-se aos 17 anos – o pai de Robin chama-se Alf e é do outro mundo, a sua opinião sobre o casamento; daí a ausência propositada. Como Maxine é mestiça, Robin passa dificuldades e é obrigado a isolar-se com a mulher para evitar problemas em público.

No meio disto tudo, Robin enfrasca-se à grande dia sim, dia sim. E droga-se. E continua um womaniser do pior. Certo dia, em Janeiro 1971, um amigo leva-o aos treinos no Walthamstow, da liga semi-profissional. Bastam uns minutos, assina um contrato semanal de 10 libras. Marca um golo de cabeça na estreia, como suplente. E marca muitos mais, um bis vs Hayes incluído.

Em Dezembro desse ano 1971, Robin já é do Hayes por 30 libras semanais. Todos os disparates lhe são permitidos. Um dia, chega oito minutos depois do pontapé de saída de um jogo, oficialmente bêbado, e marca o golo decisivo. O sorteio da Taça de Inglaterra coloca Hayes vs Reading. O jogo acaba 0:0 e vai a desempate, em Hayes (1:0 para o Reading). O então treinador Charlie Hurley fixa-se em Robin e desloca-se várias vezes a Hayes para o ver em acção. Há de tudo, entre sete expulsões e 46 golos em 67 jogos. Decide-se por uma oferta de contrato como amador em Janeiro 1974.

Robin treina com o plantel sénior e joga nas reservas. Na estreia com a equipa principal, vs Northampton, é aplaudido pela imprensa num 3:3. Três dias depois, marca de cabeça em Barnsley e oferece-lhe contrato como profissional. No jogo seguinte, os jornais só falam de Robin como mágico da bola. Um dos dois golos vs Exeter City é de antologia: domínio da bola pela esquerda, corrida na diagonal a ultrapassar quatro adversários e remate mais jeito do que em força ao poste mais longínquo.

No mês seguinte, vs Doncaster, faz golo de chapéu junto à linha de fundo, com a parte interior do pé e a bola entra no poste mais distante de um atónito guarda-redes. Fora do campo, Robin continua desalinhado com a realidade. Bebe até mais não (sobretudo a cerveja norte-americana Colt 45) e até é proibido de entrar em bares, como o Caversham Crown ou o Sindlesham Mill.

Na época seguinte, a primeira a full time no Reading, marca 20 golos em 49 jogos. É o melhor marcador da equipa e é eleito o melhor jogador da equipa. A situação repete-se em 1975-76, aí com 22 golos em 46 jogos numa época em que o Reading sobe à 3.ª divisão (ya, esquecemo-nos do detalhe, o Reading joga na 4.ª). Pelo meio, há aventuras memoráveis como o beijo a um polícia em forma de festejo do golo vs Rochdale (Abril 1975). Ou o golo da sua vida vs Tranmere Rovers (Março 1976) com uma paragem de bola no peito e um vólei de primeira a 25 metros da baliza.

O árbitro do jogo é o internacional Clive Thomas, famoso por anular aquele golo a meio de uma jogada no Brasil vs Suécia para o Mundial-78 – apita para o intervalo entre a marcação do canto e o cabeceamento de Zico. Até ele leva as mãos à cabeça. E diz a Robin que nunca vira nada assim. O excêntrico responde à sua maneira. ‘A sério? Tem de vir cá mais vezes, faço isto todas as semanas.’ No dia da consagração, o da subida à 3.ª divisão, Robin rouba uns quantos copos de vinho durante o jantar.

Uns dias mais tarde, casa-se com Liza Deimel (já se divorciara de Maxine) e a cerimónia é transmitida em directo pela Southern Television. O noivo aparece de fato castanho claro, botas com pele de crocodilo e enrola-se um charro nas escadas da igreja. Dito o sim, inicia-se o copo de água. Que acaba com tudo à pancada. No meio da confusão, os amigos de Robin roubam uns quantos presentes (quase todos cannabis).

A subida de divisão faz mal a Robin. O rapaz perde velocidade e continua vertiginoso no abuso de álcool mais drogas. Em Novembro 1976, em Mansfield, a marcação impediosa irrita-o solenemente e passa ao lado do jogo. É substituído na segunda parte e, diz-se sem se provar, Robin passa pelo balneário do Mansfield, baixa os calções e deixa lá uma prenda. É posto na lista de transferências, a troco de 50 mil libras. O Cardiff oferece 28 mil. Who cares, o Reading aceita e o Cardiff esfrega as mãos de felicidade. ‘Na absolute steal’, delira o treinador Jimmy Andrews.

A chegada de Robin a Cardiff é um ponto. Quando chega à estação de comboios da capital galesa, na véspera de Ano Novo, é preso por bilhete inválido. O treinador paga-lhe a caução e só então se dá a assinatura do contrato. Na estreia, vs Fulham em Janeiro 1977, o Cardiff ganha 3:0 com dois golos de Robin. A exibição ainda é marcada por um puxão aos testículos do lendário Bobby Moore, capitão da selecção inglesa na conquista do Mundial-66 e então no Fulham em fim de carreira.

Há quem rejubile em Cardiff. Sol de pouca dura, Robin volta à cepa torta e, agora sim, nunca mais se endireita. Treinos durante a semana é mentira. Até jogos ele falta. Dizem os colegas. ‘Quando ia a jogo, trocava-se no balneário e nem tomava banho. Pegava nas suas coisas, com o seu dry Martini na mão e só o víamos dai a uma semana.’

Insatisfeito em Cardiff, sem respeito nem ligação ao treinador, Robin começa a passar os fins-de-semana em Londres. Bem longe de Gales. Sempre sem bilhete de comboio. O seu truque é fingir-se de ‘pica’ durante as viagens e pedir os bilhetes a quem está na casa de banho. A pessoa em questão entrega o bilhete por debaixo da porta e Robin passa a estar legal. É brincadeira.

Em Abril 1977, vs Luton Town, o Cardiff precisa desesperadamente de ganhar para evitar a descida à 3.ª divisão (ya, esquecemo-nos de dizer, o Cardiff joga na 2.ª). Robin está em campo para levantar o ânimo de uma equipa sem vitórias há sete jogos seguidos. O efeito é tremendo, Robin dá show de bola e o Cardiff ganha 4:2. Um dos golos de Robin é um ícone à música.

O lance começa num arrufo com o guarda-redes Milija Aleksic. O árbitro marca livre, chama-os à parte e diz de sua justiça, Robin estende a mão, Aleksic recusa com um ar zangado. Quando o livre é marcado, Robin corre atrás da bola e rouba-a a John Faulkner. O que se segue é uma série de ziguezagues até ao golo, com finta sobre Aleksic. Na celebração, Robin faz o gesto de V com a mão direita.

O v é de vitória, se formos o Richard Nixon. O v é de paz, se formos o Steve McQueen. O v é de fuck you, se estivermos chateados – como Robin. Há uma fotografia belíssima, com o V bem visível e o guarda-redes ainda no chão a olhar para o goleador.

Ora bem, quase 20 anos depois, em 1996, a banda galesa dos Super Furry Animals faz capa com a tal fotografia no single ‘The Man Don’t Give a Fuck’. Por essa altura (1996), já Robin não faz parte do mundo dos vivos. A sua carreira acaba em Dezembro 1977, o último jogo é em Bolton, após cumprir uma suspensão de três jogos pela enésima expulsão, esta em retaliação à marcação individual de Mark Lawrenson, cujo saco de ginásio é assaltado por Robin com a tática de costume: calções para baixo e toma lá disto.

Sem futebol a correr-lhe pelas veias, volta ao de sempre: pedreiro e, imaginem, decorador de interiores. É encontrado morto no seu apartamento em Acton em Dezembro 1990, com 38 anos, vítima de um ataque fulminante de coração provocado por overdose de heroína. O funeral é um acontecimento, com pessoas a perder de vista. Incrível para quem joga só quatro épocas nas divisões inferiores (60 golos em 160 jogos).

Facto: Robin Friday, o Titanic do futebol inglês e mundial.

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