Guardiola, Herr Pep

Here's Johnny Mais 06/01/2019
Tovar FC

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Guardiola, Herr Pep

Campeão alemão, vencedor da Taça da Alemanha e campeão europeu: Jupp Heynckes não deixa nem as migalhas em 2012-13. E agora? O Bayern desfaz-se do alemão e apresenta o catalão Pep Guardiola. A explicação é simples e explicada pelo fenomenal Paul Breitner, pentacampeão alemão pelo Bayern e agora uma espécie de Herr Direktor. “Ganhávamos a esmagadora maioria dos jogos, dominávamos tudo e todos, às vezes com mais de 80% de posse de bola, mas os 71 mil espectadores sabiam sempre o que íamos fazer. Era um jogo correcto mas muito previsível. E éramos lentos, sem ritmo.” Jupp out, Pep in. Uau, grande mudança. Como assim, Guardiola? Onde anda o homem? Em Nova Iorque, a tirar um ano sabático. A vida corre-lhe bem. À mulher Cristina também. Sentem-se bem no dolce far niente. Ao contrário dos três filhos, Maria (12 anos de idade), Màrius (10) e Valentina (5), deslocados e ainda sem atinar com o inglês na escola. Nesse ramerrame, Guardiola conhece o mestre Kasparov. Jantam duas vezes e a amizade constrói-se no tabuleiro da vida. Com a maior das facilidades. E é assim o início da obra do catalão Martí Perarnau. Chama-se Herr Pep e é uma crónica de dentro do primeiro ano de Guardiola no Bayern. Ao longo das 430 páginas, divididas em 67 momentos, o dia-a-dia de uma figura imperdível num clube grande, enorme.

Herr Pep, Martí Pearnau (2014)

KASPAROV

“Não falam de futebol nem de xadrez, mas sim de inventos e tecnologia. Para Kasparov, a invenção da internet não pode comparar-se coma da electricidade, que implicou uma autêntica mudança na economia mundial: permitiu o acesso da mulher ao trabalho e multiplicou por dois o volume da economia mundial. Um exemplo? Kasparov nem pestaneja. “Os computadores do Apollo 11, os AGC [Apollo Guidance Computer], tinham cem mil vezes menos memória RAM que um iPhone actual. Os AGC serviram para levar o homem à Lua e agora servimo-nos da potência do telemóvel para matar pássaros”, numa alusão ao popular jogo Angry Birds.”

CONCENTRAÇÃO

Calma, há mais, muito mais. Tudo porque Pep não entende o “impossível” de Kasparov a propósito de competir com Carlsen, o líder do ranking mundial de xadrez. Daria, a mulher do russo, responde aos anseios de Pep. “Se fosse um só jogo com duas horas de duração, Garry podia vencer Carlsen. Mas não é assim: o jogo alarga-se por cinco ou seis horas e Garry já não está na disposição de passar outra vez por tantas horas seguidas com o cérebro a maturar todas as possibilidades, sem descanso. Carlsen é jovem e não é consciente desse desgaste. Garry tem essa consciência e não quer voltar a passar pelo mesmo durante dias e dias. Um estaria concentrado umas duas horas, o outro cinco. Daí ser impossível ganhar-lhe.” Guardiola não dorme bem essa noite.

PREPARA-TE MANEL

O City oferece-lhe o mundo, o Chelsea, pela pessoa de Abramovich, com quem se encontra em Paris, dá-lhe um plantel cinco estrelas com Oscar, Hazard e Mata. Só então aparece o Bayern em cena. Nada lhe oferece. Basta uma conversa e negócio fechado. Em Outubro de 2012, Pep telefona ao amigo e adjunto Manuel Estiarte e… “Preparate, Manel, escolhi o Bayern.”

THIAGO ODER NICHTS

A primeira decisão em conjunto com a direcção do Bayern é não se desfazer de Kroos. E reforços? Só um: Thiago oder nichts (Thiago ou nada feito). O presidente Rummenigge nem questiona e negoceia com o Barça. Paga o preço da cláusula e o espanhol, ainda de férias, assina sem pestanejar. Só há um senão: de Barcelona, a voz da discórdia é permanente. Todos contra Pep. E este desfaz equívocos. “Durante o meu ano sabático pedi ao presidente Sandro Rosell que me deixasse em paz e tranquilo, que ia descansar a 6 mil quilómetros de Barcelona. Ele disse que sim mas não cumpriu a palavra, não a cumpriu. Que joguem o seu futebol, que desfrutem dos seus jogadores.”

LAHM ES LA HISTORIA

Em Munique chove 134 dias por ano. Ligeiramente diferente do clima mediterrânico de Barcelona. Os dois primeiros jogos de pré-época não são meros particulares do toma lá dá cá. A primeira inovação é Lahm no meio. Como médio interior, para oxigenar o jogo e fazer transições ofensivas. Pep está espantado com o resultado. “Lahm é um escândalo! Inteligentíssimo, entende o jogo à maravilha. Sabe jogar por dentro e por fora. Es la hostia, este tío…”

NUTRICIONISTA

Faltam 80 minutos para o começo do segundo particular da pré-época, com o TSV Regen, e Pep vê os seus jogadores a comerem bolos. É uma tradição alemã, dizem-lhe. No autocarro de regresso a casa, quatro horas depois, dirá a Matthias Sammer: “Precisamos de um nutricionista.” Uma semana depois, eis Mona Nemmer. Adeus aos bolos e aos pastéis.

ROBBEN E RIBÉRY

Inimigos em 2012, ao ponto de se terem pegado no balneário, o holandês Robben e o francês Ribéry são agora os melhores dos amigos. Batem bola no final de todos os treinos, sorriem e abraçam-se. Pep alegra-se com esta união. Há só um senão: não podem jogar tão atrás. “Não podem correr 80 metros em cada jogada. Nós temos é de jogar com a linha defensiva adiantada, só assim se rentabilizam os ataques. Se o desequílibrio no Barça é feito por Messi e por dentro, aqui tem de ser por Ribéry mais Robben por fora. Nem um nem outro devem passar da linha do meio-campo para trás.”

LADO A LADO

Perdida a Supertaça alemã para o Dortmund, na estreia oficial, Pep descobre que os treinadores avançam juntos para a conferência de imprensa do pós-jogo. É de lei. Feliz e radiante Klopp, aturdido Pep. Como não compreende bem uma pergunta, pede ao jornalista que fale mais devagar. Nem assim, a cabeça dele não está lá. Nesse dia a sua pergunta mais recorrente é: porque é que não meti o Lahm no meio-campo, como nos jogos da pré-época?

ENFERMARIA

A derrota com o Dortmund continua a martelar-lhe a cabeça. Então quando vê Neuer e Ribéry a treinarem-se com o resto do grupo, 40 horas depois da Supertaça, cai o Carmo e a Trindade? Se são dados como indisponíveis para sábado, como se treinam na segunda ao meio-dia? Em Barcelona convoca-se o jogador lesionado e há uma prova de esforço na manhã do jogo. Em Munique não é bem assim. Se está mais para lá que para cá, não se joga. O Bayern não tem médico. Em caso de lesão há um fisioterapeuta no centro (de estágio). Se for grave, marca-se uma consulta com o Dr. Hans-Wilhelm MüllerWohlfarth no centro (de Munique). É uma eminência mundial e trabalha assim com o Bayern há 30 anos. Outra cultura. Pep, acostuma-te.

OPTIMALER STARTA, ABER

Por falar na cultura de um país (e de um clube), o que dizer do título da revista oficial do Bayern sobre o arranque da era Pep? “Optimaler start, aber…” (início óptimo, mas…) Brrrrrrrr, critica-se o domínio avassalador sem golo nem exibições de encher o olho. Duro mais duro não há. Guardiola sente o golpe e entende-o. “É surpreendente, é a cultura. No outro dia passei por Munique sem ser incomodado uma única vez. E costumo jantar em restaurantes da cidade nas calmas. Aqui a gente respeita-te. Além disso eu é que devo adaptar-me ao Bayern. A Munique. E à Alemanha. E não o contrário.”

A ZONA

Javi Martínez é feito central de marcação por Bielsa no Athletic Bilbao. No Bayern só se defende à zona. Pobre Javi. Sofre até. E vomita. Muito. Como se a paciência fosse infinita, o plantel repete até à exaustão o exercício: abre Kirchhoff para a linha, ataca Lahm em profundidade, defende Alaba agressivamente, cobre Dante as costas do lateral e… nada. Javi perde-se no meio daquilo tudo. Pep corrige-o uma, duas, cinco, dez, 20 vezes. Ao todo, 45 minutos nisto. Quando acaba a aula, há jogadores alemães, como Schweinsteiger, que pedem autorização a Pep para correr uns 15 minutos pelo monte acima. O treinador olha-os estupefacto. Acto contínuo, diz ao seu adjunto. “Deixa-os, é o efeito placebo. Eles pensam que não trabalharam nada durante os exercícios de posição.”

43,5 METROS

O triplete de Heynckes é conquistado com a linha defensiva a 36,1 metros da baliza defendida por Neuer. No primeiro mês de competição, o Bayern começa a defender a 43,5 metros. E será assim até Maio. É um recorde alemão, bem à frente dos 41,2 do Wolfsburgo. Só isso não chega, óbvio. “Tudo começa na defesa, não se pode dar um milímetro de espaço aos avançados. Se um central salta com o avançado à bola, o outro central ocupa o lugar do primeiro e o médio recua para o posto deste.” Só mais esta: “Se não há uma sequência de 15 passes, não é possível fazer bem a transição entre a defesa e o ataque.”

A MAIOR ALEGRIA NO BARÇA

Conta Lorenzo Buenaventura, preparador físico de Pep desde sempre. “Certa noite, às 22h, Guardiola imagina Messi a correr pelo meio nas costas dos médios do Real Madrid e a encarar Cannavaro mais Metzelder? Liga directamente a Messi. ‘Leo, sou Pep. Tenho algo importante, muito importante. Vem. Agora. Já.’ Meia hora depois, Messi abre a porta e Pep dá-lhe a receita para o 9 falso no Bernabéu. ‘Vais começar encostado à linha, como sempre, mas aos 10’ saltas para o meio. Vou dar instruções ao Xavi e ao Iniesta. Quando eles passarem a linha do meio-campo, tu vais para o meio.’ O dia 2 de Maio de 2009 é o da passadeira vermelha para o Barça: 6-2 ao Real Madrid. Messi converte-se em falso 9 e Pep sorri, feliz.”

O MAIOR ERRO NO BARÇA

Ainda em Nova Iorque, há dias em que Pep dorme mal a pensar na meia-final perdida com o Chelsea em 2012. O Barça remata 46 vezes contra Petr Cech (23 na primeira mão e outras 23 na segunda) mas é eliminado. “Naquele dia enganei-me. Disse aos meus jogadores que procurassem a área mas não lhes expliquei bem: não queria o golo no primeiro remate, mas sim ganhar um ressalto e, pam, fazer o golo. Não me fiz entender e eles não entenderam. Se me tivesse explicado bem a cena do ressalto, teríamos passado à final.”

TIKI-TAKA É UMA PORCARIA

A primeira parte com o Nuremberga é horrível. Má de mais para ser verdade. Pep janta uma taça de puré de batata enquanto diz de sua justiça. “Odeio o tiki-taka, ainda não se percebeu isso? É uma porcaria, não serve para nada. Há que passar a bola com uma intenção, com a intenção de fazer golo na baliza adversária, não é passar por passar.” Na ressaca dessa vitória, Pep fala duro com os jogadores. “Odeio o tiki-taka. Odeio-o. Não acreditem naquilo que lêem, que o Barça jogava ao tiki-taka. Isso é uma invenção. A ideia do nosso futebol é convidar o adversário para o nosso lado e logo meter-lhes uma bola nas costas. Isso é que é, e não o tiki-taka.”

O RESTAURANTE VAZIO

A vitória sobre o Nuremberga tem outra desagradável nuance. Às oito da manhã do pós-jogo, Guardiola recebe o relatório da nutricionista e, espanto, só quatro dos 14 utilizados jantam no restaurante do Allianz Arena, equipado com duas variedades de sopa, dois pratos de pasta mais queijo parmesão, arroz, salada e tomate, um prato de carne, outro de peixe, fruta e Apfelstrudel (a típica tarde de maçã). Ui, vai dar bronca. Um dia depois, no suposto treino de relax. “Já vos expliquei duas vezes a importância de jantar no máximo uma hora depois dos jogos mas vocês continuam sem o fazer. Compreendo que queiram sair do estádio para jantar com a vossa companheira num restaurante, mas se jogamos de três em três dias a única forma de recuperarmos fisiologicamente é esta. Quando jogamos fora do Allianz, aí sim, duche, autocarro e pasta. Nos jogos em casa é para jantar no restaurante e antes de passar uma hora sobre o jogo. Como são profissionais do mais alto nível, acredito que não deixarão de o fazer a partir de agora.”

VITÓRIA SOBRE MOURINHO

A primeira grande vitória de Guardiola no Bayern é a Supertaça europeia, com o Chelsea, em Praga. Acaba 1-1 no final dos 90’. E 2-2 aos 120’. Vamos para penáltis. Todos os jogadores, treinadores e dirigentes se reúnem na linha lateral. O ambiente é silencioso e tenso. Pep diz alto e bom som: “Rapazes, não sei marcar penáltis, nunca marquei um na vida. Mas este senhor aqui ao meu lado é o mestre dos penáltis.” Aponta para a sua esquerda, é Manuel Estiarte. “Manel foi o melhor do mundo no pólo aquático. Marcava os penáltis como ninguém. E marcou centenas deles. Pensem bem: o pólo aquático é como o futebol – marcam-se quatro golos em cada cinco lançamentos.” O ambiente é agora silencioso e descontraído. Os jogadores sorriem. “De Manel e de penáltis aprendi duas coisas. Escutem-me bem. A primeira: decidem já para onde vão atirar e não mudem por nada deste mundo. A segunda: repitam mil vezes que vão marcar. Não deixem de repetir daqui até ao ponto do penálti.” Para rematar, a lista dos atiradores. “Rapazes, vocês é que sabem. Quem quer marcar?” Alaba é o primeiro, Kroos levanta a mão esquerda imediatamente e, acto contínuo, Lahm. Seguem-se Ribéry e Shaqiri. Na véspera o Bayern treina 42 penáltis e não falha nenhum. No jogo com o Chelsea, cinco em cinco. Neuer defende o de Lukaku e Pep é campeão.

EUREKA

O Bayern ganha 2-0 ao Hannover mas Pep não se sente bem. No dia seguinte continua silencioso, tristón. Mal acaba o treino come rapidamente e vai para casa – nada habitual, ele gosta de ficar e falar com os adjuntos. Diz à mulher que não o incomode. Ela e os filhos acatam a ordem. Até que… “Maria, Màrius, venham cá. Todos. Já tenho.” É o eureka de Pep. O desânimo já lá vai. E então, o que é? “Mantemos Lahm no meio, ele é inamovível. A apoiá-lo, [os centrais] Boateng e Dante para que Lahm possa sair agressivamente. Kroos e Schweinsteiger como interiores ofensivos e então fazemos dos laterais Rafinha e Alaba médios de ataque a combinar por dentro com Robben e Ribéry. Se temos a bola, somos verticais a partir da posição criada por Rafinha e Alaba. Se a perdermos, todos esses jogadores estão no meio e muito à frente, daí que seja mais fácil recuperar a bola.” Está desenhado o 3-4-2-1. Ganharia Mundial de clubes, campeonato alemão mais a Taça da Alemanha, além da já referida Supertaça Europeia. Só falta a Liga dos Campeões. Mas como?

QUE CAGADA

A campanha europeia do Bayern até às meias-finais é brutal. Elimina duas equipas inglesas (Arsenal e United) e ganha ainda a uma outra em Manchester (City), numa noite em que os jogadores trocam 94 passes seguidos em três minutos e 27 segundos. Acaba 3-1. Perguntam-lhe se é o Barça 2.0. “Nós não temos Xavi nem Messi.” Na meia-final, o Real Madrid é rei e senhor. Ao 1-0 no Bernabéu segue-se o 4-0 em Munique. Catastrófico. O dia 29 de Abril de 2014 está gravado na sua cabeça como o mais terrível da carreira. “Que cagada, que cagada. Passei o ano a resistir ao 4-2-4 e ponho-o no dia mais importante da época.” Que cagada, não se cansa de repetir. Pep coça a cabeça dias a fio. Quando isso acontece é mau sinal. Demora vários dias a recompor-se. Até ao momento em que lê o twitter da filha de Martí Perarnau, autor de “Herr Pep”: “A derrota traz sempre algo de bom, nunca é definitiva. Pelo contrário, a vitória tem sempre algo de negativo, nunca é definitiva.” Entre parêntesis, José Saramago. “Gostei muito e é muito acertada a frase. Tudo é sempre muito provisório.” A partir daqui, Pep como que se recompõe e começa a preparar a época seguinte.

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