Gullit. “Todos os jogadores queriam Cruijff a treinar a Holanda no Mundial-90”
Gullit mania. Ainda hoje é possível ver adeptos do Milan a entrarem no Giuseppe Meazza com o chapéu vermelho e preto do clube com as tranças incorporadas. É ele, o primeiro rastafari. O pai de todos os que se lhe seguiram, como Henrik Larsson, Vágner Love (CSKA Moscovo), Drenthe (Hércules), Rio Ferdinand (Manchester United) e até Belluschi (FC Porto). Ruud Gullit jogou pelo Milan entre 1987 e 1993. Foi um ícone, não só futebolístico mas também cultural, sobretudo por ter dedicado a Bola de Ouro a Nelson Mandela. Arrumadas as chuteiras, dedicou-se ao banco como treinador. Primeiro treinador estrangeiro a levantar a Taça de Inglaterra, pelo Chelsea, em 1997, Gullit está agora na longínqua Chechénia, à frente do Terek Grozny, que amanhã começa o campeonato russo com o Zenit de Meira, Bruno Alves e Danny em São Petersburgo.
Haverá algum rastafari por lá?
Vou ver e depois digo-te ok? [risos abafados]
Lembra-se de quando a Gullit mania começou em Milão?
São momentos inesquecíveis, porque vês toda uma multidão parecida contigo. Era como ir àqueles museus em que ficas quieto entre dois espelhos e dá para ver dezenas e dezenas de ti, até perder de vista. No Giuseppe Meazza, era assim. Quando entrava ou saía de campo, via-me ao espelho. Só ficava a salvo quando entrava no balneário e via os outros como Rijkaard, Van Basten, Baresi…
Baresi, bem visto. O capitão do Milan. Como era ele?
Sempre se escreveu que eu e ele não nos dávamos bem. Até escreveram, em Itália e na Holanda, que foi ele quem me tirou do Milan. Que rumores, hein?! Eu nada tenho contra ele e espero que ele nada tenha contra mim. Acontece que o Franco é introvertido e eu sou extrovertido. Por isso, nunca nos demos unha com carne. Mas Franco, grande Franco. Um líder. Quando falava, todos o escutavam.
E quando o Berlusconi falava?
Silvio, Silvio. Não conheço muitas pessoas que sejam tão ambiciosas como ele. Parece que estou a ouvir o helicóptero dele a aterrar em Milanello. Tchu, tchu, tchu, o barulho das hélices e depois lá saía ele. Compunha o casaco, o penteado e cumprimentava-nos. Sempre sorridente. Depois, as palavras. Para ele, aquilo era tudo muito simples: ‘Ok, temos Inter neste domingo, depois quarta-feira europeia, a seguir Pescara, depois da segunda mão das meias-finais da Taça dos Campeões e finalmente Inter mais Roma. Se conseguirmos ganhar estes jogos, vamos ficar bem.’ E nós todos, jogadores, ficávamos a olhar para ele. Para ele, uma vitória era só uma vitória. Não nos deixava desfrutá-la. Tínhamos de ganhar, ganhar e ganhar para ficar à frente de todos.
Mas li algures que houve problemas entre vocês. É verdade?
Já foi há muito tempo. Em 1993, na final da Taça dos Campeões, com o Marselha [golo de Boli e derrota do Milan em Munique por 1-0], eu fiquei de fora. Vi o jogo das bancadas e ele deu-me dois beijos na cara. À frente de toda a gente! Na Holanda, chamaram-lhe o beijo de Judas. Disse-lhe o que pensava dele. Foi o meu último ano no Milan.
E agora?
Respeito-o. Continuo a pensar o mesmo, que disse o que tinha de ser dito naquela altura, mas isso não invalida que não o respeite. É um homem de convicções, ambicioso e que transformou o Milan numa máquina imparável.
Sim, é verdade. E nessa altura, o futebol italiano não era só o Milan. Também o Nápoles de Maradona. Como conviviam os dois números 10 em campo?
Maradona, digam o que quiserem, foi o melhor que vi. Impressionante. Ele podia fazer tudo. Foi perfeito naquele tempo. Por isso, os dois campeonatos do Milan ganhos ao Nápoles foram tão saborosos. Maradona era o craque, a estrela. E o problema dele era que queria receber toda a atenção do mundo que lhe rodeava. Ainda hoje é assim. Mas há pessoas que se tornam amigas por interesse e podem abalar um ícone. O que aconteceu com ele foi triste, mas é usual acontecer isso com as estrelas. Tem tudo a ver com o background. Maradona veio de um bairro pobre de Buenos Aires. A minha família também nunca foi rica. Aliás, dormi numa casa só com um quarto até aos 10 anos, mas os meus pais fizeram sempre questão de me dar tudo o que precisava.
Já conhecia o Rijkaard?
Nããã. Foi quando me mudei de casa [em Amesterdão] que o conheci. Jogávamos futebol de rua. Grandes tempos, em que os dias não eram dias se não houvesse bola.
Já aí todos sonhavam ser Cruijff, Neeskens, Krol, Rensenbrink?
Sim. Eu tenho 12 anos quando a Holanda chega à final do Mundial-74. Uma experiência alucinante. Bom futebol, grandes golos. Isso abre-nos os horizontes e alerta-nos para o tipo de futebol que ainda hoje praticamos: aberto e sem complexos. Por causa deles, dos heróis de 1974.
Que perderam a final para a Alemanha.
Sim, perdemos. Por isso mesmo, prefiro lembrar a vitória por 2-1 na meia-final do Euro-88.
Sem Cruijff.
Pois, era outra geração: eu, Van Basten, Rijkaard, os irmãos Koeman, Van Breukelen, Van Aerle, Van Tiggelen, Mühren, Wouters, Vanenburg, Bosman, Kieft e tantos outros.
E porquê o falhanço dois anos depois, no Mundial-90?
Novamente com a Alemanha [1-2 nos oitavos-de-final], naquela momentum entre Völler e Rijkaard [cuspidela]. Mas aí houve problemas.
Com quem?
Todos os jogadores queriam Cruijff como seleccionador e eu, como capitão, fiz ver isso à federação holandesa mas eles decidiram apontar outro qualquer [Leo Beenhakker]. Com Cruijff, poderíamos ter sido campeões mundiais, porque a nossa equipa era a mesma de 1988.
Cruijff tinha sido seu companheiro no Feyenoord, certo?
Sim, quando me transferi do Haarlem para o Feyenoord. A minha primeira época foi a última dele. Ganhámos campeonato e Taça da Holanda.
E que tal jogar com ele?
Magnífico. É das poucas pessoas que se pode gabar de ser brilhante como jogador e treinador. Mas ele é mais do que isso. É uma óptima pessoa, com quem se pode contar. Muito mais simpática do que as pessoas possam pensar. Mas, atenção, que ele pode ser esquisito nalgumas ocasiões. Quando quer as coisas à sua maneira… Mas ele é tão esquisito que me faz rir.
Por falar nisso, foi o Gullit quem abriu um sorriso a Mandela num momento conturbado da vida dele. Lembra-se?
Como esquecer? Isso vale todos os golos que marquei, todos os títulos que ganhei…
Mas a imprensa italiana estranhou o Gullit dedicar o prémio a Mandela e até perguntou ‘Nelson quem?’
Yeah. E o pior foi quando expliquei, eles reagiram como se dissessem ‘olha, olha, um futebolista com ideais políticos.’
E a reacção de quem importa realmente?
Cresci em Amesterdão no início dos anos 80 a ouvir música reggae sobre Mandela e Steve Biko. Mandela sempre foi uma inspiração para mim. Quando ganhei a Bola de Ouro-87, dediquei-lhe o troféu. Mas só conheci o Nelson Mandela depois de ele ter sido libertado. O que ele me disse comoveu-me: ‘Ruud, agora tenho muitos amigos. Quando estava dentro, tu eras um dos poucos’. Por ocasião do Mundial da África do Sul, visitei Robben Islanda e conhecitrês tipos que tinham sido colegas de cela de Nelson Mandela. Eles lembravam-se de eu dedicar o meu prémio em 1987 a Nelson Mandela e disserem que não conseguiam acreditar no que eu tinha feito, e que tinham a certeza de que as autoridades do futebol me iriam retirar o prémio. Foi isso que o apartheid lhes fez, fê-los acreditar que a injustiça era uma parte normal da vida.
No campo futebolístico, também já li que o Gullit sentiu-se prisioneiro do seu jogo. Confirma-se?
Há aqui uma nuance a realçar. Um herói em Itália é diferente de um herói em Inglaterra.
Então?
Em Itália, os adeptos querem tocar-te, sentir-te. É engraçado e até te comove. Mas cansa. E aprisiona-te. Em Itália, passei os melhores anos da minha vida. Fui duas vezes Bola de Ouro, ganhei três scudetti e duas Champions. Mas era uma paixão desenfreada, e não correspondida. Uma vez, estava a jantar num restaurante e o dono perguntou-me se lhe podia fazer um favor. ‘Pode vir lá fora por um segundo?’ Eu respondi que era preferível continuar sentado à mesa, a comer. Ele insistiu. E então lá fui à porta do restaurante, só para acenar aos adeptos. Sorri, acenei e voltei lá para dentro. Isso não aconteceu uma vez. Era repetitivo.
E em Inglaterra?
Calma aí. Entre Milan e Chelsea, há Sampdoria, onde me divirto a jogar. Com Eriksson, um gentleman. No stress, e as vitórias continuam a chegar. Uma Taça de Itália na única época em Génova. Agora sim, Inglaterra.
E?
Lá, eu podia ir ao cinema, ir aos restaurantes, passear sozinho ou com os meus amigos. Era uma paz fantástica. O Chelsea deu-me hotel e carro, um Toyota Hatchback. No primeiro dia, aventurei-me por Londres. E segui as tabuletas até chegar ao centro. Quando cheguei a Picadilly Circus, nem queria acreditar. Que emoção!! Fui uma pessoa normal, sem automatismos nem regras. Estava entregue a mim mesmo. E assim foi no futebol. Acabava um jogo e rebobinava-o vezes sem conta. ‘Grande estádio, grandes adeptos, grande ambiente. Sou um homem feliz.’
Mas o mundo desmoronou-se pouco depois.
Sim, no Chelsea. A forma de lidar com a minha demissão foi o que de mais incómodo senti em toda a vida. Durante três meses nem me apetecia sair de casa. Nunca acreditei que as pessoas com quem trabalhei todos os dias pudessem fazer aquilo. Bates despediu-me, estava no seu direito, mas a informação na qual baseou o despedimento veio de outras pessoas. Ele não sabia o que se estava a passar porque estava sempre ocupado com a Chelsea Village, por isso, eu nem o culpabilizei a ele. Mas as pessoas com quem trabalhava todos os dias, pessoas com quem jogava golfe, pessoas com quem trocava presentes, essas pessoas estavam a fazer coisas nas minhas costas. Isso foi o pior.