Heleno de Freitas

Here's Johnny Mais 03/09/2020
Tovar FC

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Heleno de Freitas

Heleno de Freitas é génio e figura, avançado fenomenal, homem descontrolado. A sua vida dá um filme. Pois dá, que o diga Rodrigo Santoro, o Heleno de um filme do século XXI a preto e branco (as cores do Botafogo, o clube do seu coração). Pronto, a vida de Heleno também dá um livro. Pois dá, “Nunca Houve um Homem como Heleno” de Marcos Eduardo Neves está nas bancas desde 2012 e já vai na segunda edição. Heleno é figura. Faz trinta por uma linha em todos os sectores da sociedade.

“Nunca Houve um Homem como Heleno”, Marcos Eduardo Neves (2006)

Formado em Direito, é de uma família abastada – o pai é dono de um cafezal e mantém negócios na indústria de papel e chapéus. Com amigos na alta sociedade, adora a noite e as drogas (além da bebida, o lança-perfume e o éter). No campo, é único. Óptimo cabeceador, é autor de 209 golos em 235 jogos pelo Botafogo (1939-48). Na selecção, falha o Mundial brasileiro de 1950 por decisão técnica de Flávio Costa mas o seu registo de 14 golos em 18 internacionalizações é impressionante, até porque marca nos oito primeiros jogos pelo Brasil.

Aos golos juntam-se-lhe confusões sem fim. É agressivo, temperamental, amante de mulheres mil. Casa-se só com uma (Ilma Lisboa) de quem tem o filho Luiz Eduardo, hoje com 65 anos e morador na zona fina do Rio de Janeiro (Leblon). “Nunca fui Luiz Eduardo, fui sempre o filho de Heleno. Os garotos na escola podiam falar ‘papai’, eu não. Nunca conheci o meu pai e a minha única recordação é vaga, com gritos de ‘arriba arriba’ num estádio colombiano [Heleno joga no Barranquilla entre 1949 e 1951].” Pois é, Heleno morre aos 39 anos, a 8 de Novembro de 1959, vítima de paralisia geral progressiva, numa casa de repouso em Barbacena, Minas Gerais, onde já se encontra em tratamento há quatro anos, dez meses e 25 dias. Eis as suas histórias mais caricatas, dignas de realismo fantástico.

O GOLO Em 1943, Heleno já é “o viadinho de Copacabana” para todos os adeptos e até adversários. É a palavra-chave para o tirarem do sério. No auge dessa fase, o Botafogo anda meio perdido no campeonato carioca. Perde muitos jogos, com adversários fortes e acessíveis. Num jogo com o Flamengo, o resultado está 4-0 quando Heleno ilumina o jogo com um golaço. A descrição é do escritor uruguaio Eduardo Galeano: “Heleno estava de costas para o arco. A bola chegou lá de cima. Ele parou-a com o peito e voltou-se sem a deixar cair. Com o corpo arqueado e a bola no peito, enfrentou a situação. Entre a baliza e ele, uma multidão. Na área do Flamengo, havia mais gente que em todo o Brasil. Se a bola caísse no chão, estava perdido. Então, Heleno pôs-se a caminhar, sempre curvado para trás, e com a bola no peito atravessou tranquilamente as linhas inimigas. Ninguém podia tirá-la sem fazer falta. Quando chegou às portas da baliza, Heleno endireitou o corpo. A bola deslizou até aos seus pés e rematou para o golo.”

BALIZA Conta Geninho, jogador do Botafogo daquele tempo. “Quando o Oswaldo Baliza sofria um golo, o Heleno fazia um gesto de reprovação. Era sempre assim, como se o Baliza quisesse sofrer o golo. A torcida acabava por tomar o partido de Heleno e o Baliza ficava mal. Um dia, no vestiário, o Baliza foi ter com Heleno e disse-lhe ‘a primeira vez que olhar para mim, ironizando qualquer merda que eu tenha feito, vou correr o campo inteiro para te encher de porrada e você, Heleno, nunca mais vai esquecer.’ Ai dele se duvidasse. No jogo seguinte, com o Fluminense, já o Botafogo ganhava 2-0 quando Baliza sofre um golo. Com a bola no meio-campo, Heleno vira-se para o lado e pergunta-me: – O Oswaldo está a olhar para aqui? – Está, sim. Acho melhor você ficar na sua, aquilo ali é 1,94 metro de ignorância, amigo. Você vai dar-se mal. [depois de reflectir, Heleno ajeita a bola com o pé] – Tá certo. Mas você não acha que foi um frangaço?”

BRAGUINHA “Heleno era capaz de fazer as coisas mais horríveis a um companheiro de equipa”, lembra Otávio, outro integrante desse Botafogo. “Ele, por exemplo, esculhambava o Braguinha para caramba, desmoralizava os mais simplórios. O Braguinha era muito pacífico. Uma vez, em São Januário [Vasco da Gama], o Botafogo estava empatado. A bola sai pela lateral e Braguinha faz logo o lançamento para não perder mais tempo. O problema é que a bola em direcção a Heleno sai torta e este não perdoa. ‘Porra, nem com a mão!’ No mesmo jogo, aos 90 e tal minutos, Braguinha esforça-se por uma bola quase perdida pela linha de fundo. Ainda estava ele no pique, a correr alucinado, quando ouve de Heleno ‘aproveita e vai directo! Vai directo, não precisa voltar não!’ No jogo seguinte, Braguinha é novamente seleccionado como extremo-esquerdo e Heleno vocifera com o treinador: ‘Mas ele vai jogar?! Bem, bola para ele já sabe que não dou. Sabe porquê? Ele não devolve.’”

PIPI Contratado por seis meses pelo Botafogo, o extremo-esquerdo Rogério Pipi faz um passe errado logo no primeiro treino e Heleno solta o verbo: “Acho melhor você tirar as chuteiras e calçar tamancos.” Ávila pede calma, Heleno exagera: “Que nada! Esse sujeito veio para cá para jogar futebol, chega aqui e não sabe jogar? Que volte para a terra dele, então!” Em Outubro, o Botafogo ganha 2-0 ao Bangu mas isso não é suficiente. A meio da segunda parte, Heleno passa a Rogério mas este “erra feio” o cruzamento. Heleno corre para o português e, a puxar a sua camisola com fervor, grita: “Estás vendo esta camisa? Mesmas cores, mesmo escudo, tudo igual certo? Então, seu gringo imbecil, porque estás passando a bola para eles?”

CADILLAC Nem sempre Heleno é ingrato. É conhecido o seu respeito por jogadores de classe quase quase igual à sua. Num particular com o Cruzeiro, o jovem Tovar sai do meio-campo a fintar toda a gente. Heleno acompanha o lance bem de perto, mas Tovar quer brilhar e falha o golo na cara do guarda-redes por mero preciosismo. Heleno ataca-o. Verbalmente, claro. Tovar reage com diplomacia: “Está certo, perdi. Mas se fizesse, pode dizer Heleno, seria lindo, não?” Heleno sorri, dá-lhe uma amigável palmada nas costas e arrepia caminho. Outra: Luiz Paulo Neves Tovar, de família tradicional de Vitória de Espírito Santo e filho de um deputado, é futebolista por prazer. Não recebe um tusto para jogar no Botafogo, fá-lo à borla, inscrevendo-se como amador. Em 1946, com 24 anos, termina o curso de advocacia e, acto contínuo, abdica do futebol. O Botafogo agradece-lhe a dedicação e oferece-lhe um Austin. No dia seguinte à entrega do presente, Heleno pede explicações. “Eu também me formei como advogado e não ganhei nada, porquê?” O presidente Carlito Rocha nada diz mas o vice Nélson Cintra acusa-o de ser “um cara esquizofrénico”. Para mostrar o seu poder, Heleno compra um carro ainda melhor do que o seu anterior e passeia-se pela sede do Botafogo num Cadillac amarelo.

NO CAPRICHO Apresentação no Vasco da Gama, Heleno é saudado com intermináveis aplausos por vascaínos uniformizados e botafogueses civis. No fim da primeira parte do treino, uns jogadores bebem águas e outros lavam a cara. Heleno, não. Despe o equipamento, toma banho e muda de roupa. Quando o treinador Flávio Costa lhe diz que o treino vai a meio, leva o primeiro susto. – Para mim terminou!  – Porquê? – Esses dois ali [apontando para Maneca e Ipojucan] não me passam a bola porque não querem; aqueles dois ali [Nestor e Mário], porque não sabem. Não tenho nada a fazer aqui. Flávio Costa nega-se a levá-lo a sério e, com um pouco de filosofia e psicologia, convence-o a voltar ao treino. Sem resistir à tentação, experimenta um quinteto atacante com Nestor, Maneca, Heleno, Ipojucan e Ademir Menezes. No primeiro lance, Ademir corre pela esquerda, dribla um defesa e cruza para a área. Bola um pouco comprida, sim, mas Heleno nem se esforça. Vira-se para o lado e… “Olha aqui Ademir, não adianta passar-me essas bolas horrorosas que eu não vou correr para pegar não. É melhor caprichar. Estou acostumado a receber a bola no pé, ouviu?”

ACIDENTE O Boca Juniors só contabiliza uma vitória em oito jornadas do campeonato argentino e perde há quatro jogos seguidos. Vem aí o Banfield. O Boca estreia Heleno e ganha 3-0 com dois golos você-sabe-muito-bem-de-quem. No balneário, o tesoureiro do Boca oferece boleia a Heleno mais aos dois jornalistas brasileiros enviados-especiais. “No seu Oldsmobile”, escreve um deles, “o tesoureiro distraiu-se e bateu num carro que travara repentinamente. O dono do carro abalroado saltou do carro e, indignado, pôs-se a discutir com o tesoureiro. Cheio de palavrões, voz áspera. Heleno, então, abriu a porta do carro e saiu doido para brigar. O cidadão, que parecia embalado para agredir o tesoureiro, reconheceu Heleno imediatamente e, numa transformação incrível, esboçou um sorriso enorme. Após abraçar o craque, disse que nada de grave acontecera. ‘Não houve nada, Heleno. E obrigado pelos seus golos. Está tudo bem, Heleno, tudo bem.’”

DINHEIRO Na concentração da selecção brasileira, não come com os companheiros nem o mesmo que eles. Para Heleno, a comida é diferente e o lugar numa mesa à parte. Quando não lhe atendem o pedido (feijão, carne-seca, sopa de legumes, bife à francesa, tomates recheados, melão e queijo), é capaz de se alimentar só de frutas. Seja como for, Heleno é homem de “bater papo” horas a fio com os dirigentes da federação brasileira sobre qualquer assunto: literatura, política, música e pintura. Quando joga cartas pela noite dentro, até nem se importa de perder. Na hora de honrar a dívida, chega a confundir o parceiro: “Queres em quê? Cruzeiro, libra, dólar ou peso?” (Heleno faz colecção de notas e moedas de todo o mundo). Uma outra vez, já em final de carreira, perguntam-lhe o que é feito do dinheiro que já ganhou ao longo da carreira. A resposta é “o gato comeu”.

GILDA É comum haver jogos de fim de ano entre as selecções de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em Dezembro de 1944, em São Paulo, o Rio perde 4-3 num ambiente demasiado hostil. Quando os cariocas entram em campo, os adeptos atacam-nos com ovos e garrafas. Uma delas aterra nos pés de Heleno e um jornalista apressa-se a entrevistá-lo, ainda antes do início do jogo. – De que você mais gosta de São Paulo? – Do aeroporto. – Porquê? – O lugar mais próximo para ir embora. Bom, a rádio transmite o diálogo em directo e os paulistanos passam a hora e meia seguinte a insultar Heleno. Como? Chamando-lhe Gilda, numa alusão à personagem de Rita Hayworth no filme de Charles Vidor. Não há apelido melhor. Gilda é uma mulher linda, exuberante e temperamental. Como Heleno.

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