Sócrates, o filósofo da nossa vida

Here's Johnny Mais 03/09/2020
Tovar FC

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Sócrates, o filósofo da nossa vida

“A primeira expulsão da carreira de Sócrates é caricata, no mínimo. Foi durante a tarde nos anos 70, um jogo de juniores, entre o Botafogo de Ribeirão de Preto, de onde é natural, e o Batatais. Estava a chover imenso e Sócrates, que nunca gostou de jogar à chuva, já tinha marcado dois golos. Assinaria o hat-trick de forma espectacular, numa jogada individual em que passou por um, dois, três, quatro e ainda o guarda-redes para parar a bola na linha de golo. Meteu-de de costas para a baliza e sorriu para os companheiros enquanto marcava de calcanhar. O árbitro chamado Leal, um ex-jogador do Coritiba, foi a correr para ele e mostrou-lhe o cartão vermelho”

Doctor Sócrates (2017)

“Raimundo, o pai de Socrátes, era um homem especial. Sem curso superior nem nada que se parecesse e vendedor de rapadura, era um devorador de livros e candidatou-se ao concurso para funcionário público, como inspector fiscal. Só 33 pessoas passaram no exame e o único sem curso universitário era Raimundo”

Sócrates, o futebolista-político

“Sócrates cresceu como adepto fervoroso do Santos. Uma das suas memórias mais antigas é um hat-trick de Pelé no 7-1 ao Botafogo Ribeirão Preto. Ligeiramente mais tarde, partiu a lâmpada de casa a festejar um golo do Santos ao Milan, na Taça Intercontinental. Embora gostasse de futebol, Raimundo colocou-o a praticar outros desportos, na tentativa de o desviar da tentação. Sócrates tentou judo e boxe. Nada feito, o seu negócio seria mesmo o futebol.”

“O primeiro clube de Sócrates foi o Raio de Ouro, uma equipa amadora. Quando Sócrates chegou lá, um treinador chamado João perguntou-lhe pelas chuteiras. Ele, que não tinha qualquer par, respondeu-lhe que podia jogar descalço e pediu para ser médio. Não foi atendido e jogou a lateral-direito. Nem 15 minutos depois já estava a ser convocado para o jogo do domingo seguinte”

“Rapidamente, Sócrates chegou aos juniores do Botafogo de Ribeirão Preto. Como estudava medicina, ele chegou a um acordo com o clube, bem ao seu jeito: estudaria durante a semana e só jogaria aos fins-de-semana. Ou seja, falhava os dois treinos durante a semana. Logo ele que achava as corridas à volta do campo e os exercícios físicos uma perda de tempo”

“O primeiro sinal de que Sócrates preferia futebol à medicina chegou por volta dos 16/17 anos. No dia em que o Botafogo joga a final do regional com o Comercial, também havia um teste para acabar o curso. Raimundo passou a semana a perguntar-lhe o que ele preferia e Sócrates dizia o curso, só para agradar ao pai. Quando este o deixou à porta da sala, Sócrates olhou para dentro da sala de aula e saiu a correr, na direcção do Campo de Santa Cruz, onde maravilhou todos os presentes com uma exibição memorável, culminada com os dois golos da vitória. Só que o pai acabou por descobrir a mentira e pregou-lhe uns valentes açoites”

Um golo democrata ao São Paulo

“Quando Sócrates assinou o primeiro contrato profssional com o Botafogo de Ribeirão Preto, o titular da sua posição era Maritaca. Um bom jogador, atenção. Que fazia uma dupla boa com Geraldão. Nas primeiras oito jornadas do Paulistão, Maritaca jogou sempre e Geraldão não marcou qualquer golo. Com Sócrates no onze, Geraldão tornou-se o melhor marcador da competição, com 35 golos. Ao todo, Sócrates fez 49 jogos e marcou 12 golos. Foi eleito o melhor jogador jovem do torneio”

“Em 1968, o Botafogo saiu do Vila Tibério e estabeleceu-se no Estádio Santa Cruz, onde havia uma bancada maior que a outra, garantia de sombra nos jogos à tarde. Sócrates, às vezes, protegia-se do sol abrasador e não saía da sombra. O público manifestava-se ruidosamente contra o número 8. O adepto mais irado era o pai. Uma vez, um grupo de adeptos quis mesmo bater em Raimundo, sem saber do grau de parentesco com a estrela da companhia”

“Sócrates começou a beber aos 13 anos. Sem o álcool, ele era tímido e pouco interveniente nas conversas. Batava beber e ficava como uma pilha, cheio de energia, com uma conversa sem parar, muito filósofico. Como todo o habitante de Ribeirão Preto, ele começaria a beber de dia até à noite. Atenção, nunca bebeu em dia de jogo. Nunca, mesmo. Acontece que bebia na véspera. Não tanto a cerveja mas sim a famosa batidinha, feita de cachaça ou vodca, fruta concentrada e leite condesado, consumida gelada, directamente do congelador. Se alguém dissesse que ele bebia, ningué,m acreditaria. A sua taxa de eficácia nos jogos sera altamente respeitável, superior ao comum mortal, abstémio qb”

O Doutor, mais palavras para quê?

“Aos 22 anos, Sócrates tornou-se conhecido fora de Ribeirão Preto. Foi graças a uma exibição mágica, com sete golos nos 11-0 à Portuguesa Santista. Os jornais de São Paulo e Rio de Janeiro começaram a falar do jovem craque do Botafogo e as propostas apareceram de um momento para o outro. O Internacional de Poerto Alegre ofereceu dois milhões de cruzeiros, qualquer coisa como 300 mil dólares. O Botafogo recusou a oferta”

“Certo dia, a faculdade de medicina de Ribeirão Preto precisou de Sócrates para jogar com a Escola Paulista de Medicina, em Santos. Para tal, o plantel chamou Zé Bernardes, outro integrante de luxo da equipa, e perguntou-lhe se podia chamar Sócrates para o jogo dessa noite. Sócrates nem pestanejou, claro que sim. E ambos foram informar o treinador do Botafogo. Tiri disse que não., ao que Sócrates mandou-o para aquele sítio, pegou no seu saco e entrou na carrinha para fazer a viagem. À noite, a faculdade de medicina de Ribeirão Preto ganhou 4-0. Sócrates fetejou a vitória com uma noitada em Santos e só voltou a Ribeirão Preto na manhã seguinte, após uma jornada de carro de cinco horas. Quando se apresentou no treino da tarde, todos esperavam uma reprimenda. Zé Bernardes conta na primeira pessoa: ‘Ninguém disse uma palavra, era o Sócrates’”

“A partir do momento em que Sócrates entrou no último ano de medicina e já precisava de acompanhar os médicos nas suas rondas, os turnos dificultaram-lhe a vida de futebolista. Mas, verdade seja dita, nunca faltou a um jogo. Certa vez, em 1976, o Botafogo nomeou um motorista e foi apanhá-lo à faculdade a quatro horas e meia do início de um importante jogo com o Corinthians, no Pacaembu. A viagem durou precisamente quatro horas e ele cheghou à porta do estádio, sem saber onde era o balneário. Perguntou a um segurança, depois a outro e a mais um. Sou jogador do Botafogo, disse ele. O segurança riu-se na cara dele. E agora? Entrou como adepto e chegou ao relvado através da bancada. Atirou o equipamento para dentro do campo e entrou ao mesmo tempo que a equipa”

“Os primeiros seis meses de 1976 foram os mais fantásticos na carreira de Sócrates. Numa visita ao Santos, ele marcou os dois golos da vitória em jogadas inidividuais. O jogo foi televisionado e Pelé falou com ele no final do jogo. Uma semana depois, já havia um adepto no Morumbi com um cartaz a dizer ‘Sócrates é o novo Pelé’”

Craque da oratória

“O Botafogo foi o primeiro clube da província, digamos assim, a ganhar o primeiro turno do Paulistão em 75 anos. O craque era Sócrates, só que o selecionador Coutinho não o via assim. Tantto asim é que não o convocou para o Mundial-78. Sócrates percebeu aí que teria de se transferir para um grande, caso quisesse jogar pela selecção brasileira”

“Para jogar num grande, Sócrates teria de abdicar da medicina. Assinou pelo Coritnhians e afirmou, com a maior cara de pau, que era torcedor do Santos na sua infância. Essa frontalidade assustadora cativava mais adeptos ainda, ao invés de os afastar. A sinceridade nunca fez mal a ninguém. Muito menos a Sócrates, que era um filósofo à sua maneira: jogar pelo Corinthians é respeitar a cultura, o povo, a nação; jogar pelo Corinthians é como ser chamado para uma guerra irracional e nunca duvidar da sua importância; jogar pelo Corinthians é como pensar como Marx, lutar como Napoleão, rezar como Dalai Lama, dar a vida por uma causa como Mandela e chorar como um bebé”

“O seu comportamento inicial no Corinthians foi distante e reservado. Andava sempre de havaianas, t-shirt e calções sujos. Os companheiros achavam-no estranho e discordavam do seu vestiário. Por isso, meteram as havaianas no lixo e queimaram os calções. O guarda-fredes Jairo recorda-se bem: ‘O Sócrates percebeu o desaparecimento do seu material e pediu ao roupeiro Paulo que lhe encontrasse um velho par de havaianas. E voltou a andar de havaianas”

“A bebida continuava a ser um ritual permanente de Sócrates. O veterano Basílio dizia que ‘ele simplesmente não treinava, metia-se na marquesa para a sessão de massagem e não aparecia no treino’. Ao que parece, bastava olhar para a cara dele e perceber o que ia ser o resto do dia, desportivamente falando”

“Sócrates vivia agarrado à verdade, não era malandro como a esmagadora maioria dos jogadores. Num dos primeiros jogos pelo Botafogo, ele surpreendeu tudo e todos quando disse aos jornalistas que o árbitro se tinha enganado a assinalar um penálti a seu favor. No Corinthians, fez o mesmo uma série de vezes, sobretudo nos treinos. O pessoal passava-se constantemente e ele reagia sempre da mesma forma ‘vocês pediram a minha opinião, só estou a dá-la’”

Best of

“Quando Zico e Sócrates se cruzaram pela primeira vez, em 1977, num Brasil vs Selecção paulista no Morumbi, a química foi imediata. Falaram antes do jogo e depois. Pelo meio., meteram-se um com o outro. Sócrates chamava-o baixinho, Zico picava-o com Frankenstein. Quando jogavam no mesmo relvado, havia um intenso debate nacional. Não só na imprensa. O povo também dava as as suas bicadas. E que bicadas. Uma noite, no Morumbi, em São Paulo, um jogo entre Ajax e um misto de paulistas e cariocas acabou 5-0. Zico marcou o 4-0 e o 5-0. Pormenor: o marcador não se mexeu, continuou 3-0.”

“Em 1979, o debate popular entre Sócrates e Zico chegou à revista Placard, através de um inqúerito. Nas cinco maiores cidades brasileiras, Zico ganhava o concurso com 54% da preferência. Na semana seguinte, a mesma revista telefonou a dois mil adeptos de futebol das 17 equipas do campeonato brasileiro. A pergunta era saber qual o jogador que preferiam ver na sua equipa. Ganhou Sócrates”

“A visão de Sócrates sobre o futuro era mais lírica que nunca. Para os adeptos, bem entendidos. E até alguns companheiros. Para Sócrates, o futeboil era jogado com a cabeça, à base da inteligência, e não com os pés,. Qujem iria embarcar nesta aventura? Ninguém. Dos 22 jogadores do Corinthians, só Sócrates acreditava nisso. E também acreditava nos festejos solitários sem demasiada euforia nem correria. Era marcar e voltar para o meio-campo, à espera do reinício. Pos seus companheiros, sobretudo Palhinha, pediam-lhe mais compromiso. Mais garra. Mais raça. Sócrates argumentava que ele não era assim e os outros chocavam de frente com ele, chamando-lhe de menino da alta sociedade. Sócrates afinava e respondia à maneira: ‘sou Sorg e não McEnroe; não preciso de gritar para ganhar, preciso de ter cabeça fria’”

“A caminho do Mundial-82, respirava-se confiança total. ‘Somos o nosso pior adversário, ninguém joga tão bem como nós’, disse Sócrates à imprensa, depois de ganhar à RFA em Estugarda. Na ressaca dessa vitória, ele levou alguns jogadores a sair à noite para beber umas cervejas. Uma reportagem da televisão brasileira viu-os e pediu permissão para filmar. Sócrates, já então o capitão, autorizou e o cameraman começou a tirar as garrafas da mesa. Sócrates fez cara feia, ao que o repórter justificou com um ‘não queremos prejudicar a sua imagem’. Sócrates foi arames. Nas calmas, claro. ‘Sou pai de filhos e bebo quando quero. Não tenho de dar satisfações a ninguém na minha hora de lazer”

“Sócrates nunca entendeu a intelectualização do futebol. Se bem que era paciente depois dos jogos, no que toca a falar com os adeptos, nunca foi de rever jogos, ler crónicas sobre o jogo da véspera ou comentar futebol por aí além. Ele era um animal social e político, com opiniões políticas acutilantes e assertivas”

Aquele copo maroto de cerveja aos 2’29”

“Sócrates ocupava o tempo a dar alcunhas aos companheiros de equipa. Júnior, por exemplo, era o capacete pela cabeleira afro. Elzo era o Carequinha. Wladimir era o Saci. Mas a melhor de Sócrates terá sido nos tempos da Fiorentina, quando detectou um jovem com um cabelo esquisito e apelidou-o de Boy George. O seu nome de verdade? Roberto Baggio”

“Em 1977, quando o Botafogo entra numa serie de vitórias seguidas, Sócrates propõe aos companheiros a divisão dos prémios de jogo com a senhora da limpeza, Dona Palmira. Os colegas aceitam e a direcção aprova o gesto. Ganha esta batalha, Sócrates avança para uma outra, de barra mais pesada. Tem a ver com o patrocínio do Corinthians, a Topper. Cada jogador tem direito a duas camisolas por mês. Quem pede mais, a Topper recusa. Muito bem, pensa Sócrates, ‘vamos treinar e jogar com as camisolas do avesso’. A Topper recusa nos seus intentos e chega-se a um acordo o mais breve posível: 10 camisolas para cada jogador por mês”

“A maior luta de Sócrates tem a ver com a concentração. Ele simplesmente detestava estar fechado num hotel, como se fosse um prisioneiro, sem possibilidade de estar com a mulher e os filhos. A ideia da Democracia Corintiana começa a ganhar forma. Todos o sabem, é uma questão de tempo”

“Sócrates chegou à concentração da selecção brasileira para o Mundial-82 com a certeza inequívoca de que iriam ser campeões. E jogaria à baliza, caso fosse preciso. Para chegar em forma à competição mais importante da sua vida, Sócrates parou de fumar e, imagine-se, de beber. Cortou com os dois maços de Minister por dia e abdicou do álcool. As novidades foram dadas em primeira mão ao seleccionador Telê Santana e ao adjunto Gilberto Tim. ‘Se Sócrates deixar os maus hábitos, vai ser melhor que o Zico’, observou Telê. De resto, todos os convocados brasileiros bebiam a sua cerveja, nada de mais. O único caso curioso era o de Toninho Cerezo, que bebia sempre um copo de cachaça depois do duche para evitar uma constipação”

“As mudanças de Sócrates começaram em Janeiro e prolongaram-se por cinco meses. Os resultados eram admiráveis, Sócrates perdera peso, ganhara agilidade e velocidade. Ninguém era mais rápido que ele nas corridas de 30 metros, saltava mais alto que todos os outros e só Edinho, o pontapé-canhão, rematava com mais força com o pé direito. A sua dedicação nos treinos era mais que evidente. Até Zico estava espantado: ‘O que é isto? Magrão mna cabeça do pelotão, a dar voltas ao campo? O que é que se passa?’”

Golaço atrás de golaço

“Na estreia do Mundial-82, o Brasil ganhou à Escócia. O capitão Sócrates foi convocado para o anti-doping. Totalmente desidratado, precisava de beber para urinar. Quando o senhor da FIFA abriu o frigorífico, os seus olhos brilharam. Havia de tudo: vinho, cerveja, champanhe mais águas e sumos. ‘Comecei por beber cerveja. E nada. Todos os outros jogadores já tinham feito o controlo e eu nada. Passei para o champanhe. Depois vinho. Nada de nada. Água. Sumos. Demorei três horas para urinar. Quando sai do estádio, já todo o Brasil estava no hotel, quase a dormir. Foi um dos melhores dias da minha vida’”

“Sócrates escreve para a revista Placar durante o Mundial-82. O isolamento faz-lhe mal. A tal concentração. ‘Estou um bocado depressivo. Toda a minha vida quis jogar um Mundial. Agora que aqui estou, sinto-me frustrado. O Mundial não é aquilo que pensava, não nos permite interagir com as pessoas dos outros países. È cada um por sim e já está. Fechados no seu próprio mundo, dias a fio. Por isso, não tenho a mais pequena dúvida: nenhuma mais participarei num outro Mundial. Quem sabe, até posso ver o próximo Mundial em casa com a minha família. Seria muito mais divertido”

“’É um gosto enorme receber cartas e mais cartas de fãs de todo o Brasil, mas a melhor de todas é a do meu pai. Diz ele que ainda não atingi o pico de forma a que o habituou, acha que não estou a jogar bem. Que devia rematar mais vezes à baliza. É engraçado, porque um jornal espanhol considerou-me o cérebro do Brasil. Acho que eles são cegos. O mauj pai consegue ver muito melhor em casa pela televisão do que eles ao vivo, no estádio”

“A questão dos prémios de jogo sempre atormentou Sócrates. As negociações com a federação brasileira começaram antes do Mundial, antes mesmo da chegada a Espanha. A ideia apresentada por Sócrates aos restantes companheiros era simples: ou nos pagam 100 mil dólares ou nada feito. A coisa arrastou-se até ao jogo decisivo com a Itália´. Aí, a federação recomeçou a negociação e ofereceu 35 mil dólares. Alguns jogadores toparam na hora. Sócrates e Zico ficaram siderados com a falta de tacto da federação e absolutamente desencantados com a falta de categoria de alguns companheiros. O grupo aparentemente homogéneo e animado perdeu toda a força por culpa da ganância de alguns”

“Sócrates só reviu o Itália-Brasil de 1982 em meados dos anos 90, num bar chamado Amazónia no bairro Roppongi, em Tóquio, ao lado do amigo Ruy Ramos. ‘Olhei pelo canto do olho e pareceu-me ver as camisolas amarelas e azuis. Concentrei-me para ver o início e acabei por ver todo o jogo. Estava completamente absorto. Que jogo, o melhor que vi em toda a vida.’ Nas considerações técnico-tácticas, o pormenor delicioso da desigualdade no número de defesas entre o guarda-redes italiano Dino Zoff (18) e o brasileiro Waldir Peres (4)”

“Sócrates nunca teve problemas em lidar com pessoas sem a mesma opinião que ele. Era até um bálsamo, implicava debates intermináveis. Fosse sobre sociedade, medicina, política, geografia. Mas o choque com Emerson Leão foi do pior. Sócrates não sabia conviver com a personalidade do guarda-redes, seu companheiro de equipa no Corinthians. Chegou mesmo a dizer ‘se Deus criou o homem, então o Diabo inventou o Emerson Leão’”

A aventura italiana em Florença

“Ranieri Pontello era o presidente da Fiorentina e asistiu encantado ao Mundial-82. Queria contratar um nome de peso para juntar ao de Passarella e fez uma lista de três jogadores. O primeiro era o argentino Bertoni, o segundo o alemão Rummenigge e o terceiro Sócrates. Os dois primeiros não couberam nos planos de Pontello, por um motivo ou outro, e a opção Sócrates cedo entusiasmou o homem-forte da Fiorentina. Houve reuniões em São Paulo, discutiram-se muitos valores. À terceira noite de negociações, um furioso Sócrates saiu porta fora, lavado em lágrimas: ‘Sou um ser humano, tenham respeito’ O negócio fez-se na manhã seguinte, por 2,7 milhões de dólares”

“No primeiro dia na Fiorentina, Sócrates aparece no departamento médico para os habituais testes e puxa de um cigarro. Fuma-o nas calmas. O médico vê-o e pergunta-lhe o que raio está a fazer. A resposta, de acordo com os jogadores da Fiorentina: ‘Doutor, estou a preparar os pulmões para o teste’”

“No primeiro treino da pré-época, só corrida pela montanha acima e nada de bola. Sócrates demorou 10 minutos até parar. “Porque é que eu tenho de subir e descer montes? Quero é jogar à bola’. Os companheiros começaram a olhar de lado para aquele excêntrico personagem e rapidamente o treinador Onesti também o evitava”

É Carnaval, alguém leva a mal?

“Diz Giovanni Galli, guarda-redes da Fiorentina e companheiro de quarto de Sócrates: ‘O Onesti ligava muito aos detalhes. Num deles, obrigava-nos, por assim dizer, a almoçar em 20 minutos e depois tínhamos dar volta ao campo para fazer a digestão. Um belo dia, o Sócrates levanta-se da mesa e faz o mesmo exercício que nós, com o prato na mão, a comer.”

“Os hábitos de Sócrates começavam a incomodar a Fiorentina. Alguns jogadores até o toleravam, como o Galli, mas eram cada vez menos os apoiantes da causa do brasileiro. Só os jornalistas é que se divertiam, a contar as suas históirias. Quando alguém lhe pergunta sobre o tabaco e o álcool, Sócrates atira ao ângulo superior: ‘Eu fumo, eu bebo, eu penso’”

“Para criar ambiente, Sócrates organizou um churrasco em casa, bem ao estilo brasileiro, e convidou todo o plantel. Só foi um jogador da Fiorentina. Um. Sócrates percebeu o movimento e começou a desinteressar-se pela Fiorentina. Uma série de nove jogos sem vitórias dividiu o balneário ao meio e foi preciso Passarella abandonar um treino a meio para endireitar a crise. ‘Estou de acordo com o Sócrates, há aqui muitos grupos e vocês só passam a bola aos amigos. Se eu vir isso a acontecer amanhã, abandono o jogo a meio e estou à viossa espera à entrada do balneário.’ A reacção foi imediata, vitória clara por 3-0. A palestra aproximou Passarella de Sócrates, amigos a partir daí”

“A saída de Sócrates da Fiorentina é um momento alto. Ele próprio marca uma reunião com o presidente Pontello, na casa deste. Sentados numa casa enorme, Pontello pergunta o que se passa e há um silêncio constrangedor. Ninguém se atreve a falar, todos os jogadores olham para o chão. Entra Sócrates em acção. ‘Eu vou explicar: um jogador desta equipa começou a andar com a mulher de outro jogador desta equipa e o grupo dividiu-se. Por isso, ninguém passa a bola a ninguém. A única solução é livrarmo-nos do capitão.” Pontello recusa. ‘Ninguém sai da equipa.’ Sócrates levanta-se da mesa e sai da casa. A partir daí, começa a fazer a sua própria contagem decrescente. Sempre que entra no balneário, com um sorriso de orelha a orelha, diz ‘olá pessoal, faltam 250 dias para sair daqui’. No dia seguinte, a mesma cena, o mesmo sorriso e 249 dias. E por aí fora”

“Tal como no Mundial-82, Sócrates marca o primeiro golo do Brasil no Mundial-86. É o da vitória sobre a Espanha, um jogo marcado pelo golo mal invalidado a Michel. No final do jogo, Sócrates dá espectáculo: ‘O árbitro e o fiscal-de-linha estavam bem colocados, não tem como anular um golo legítimo. Corinthians, Flamengo, Juventus e outros clubes são campeões porque os árbitros ajudam em momentos cruciais. Aconteceu-nos agora com a Espanha. E tem acontecido neste Mundial com o México, por culpa do factor casa. E isso não pode acontecer’. A FIFA desespera, a federação brasileira também”

Frescura

“Empatado o jogo com a França, decidem os penáltis. O seleccionador Telê vira-se para Sócrates e diz-lhe para marcar o primeiro. Sócrates pede-lhe que seja o último. Nada feito, é o primeiro. Sócrates gostava de ser o quinto por duas razões: a) permitia-lhe estudar o movimento do guarda-fredes nos primeiros quatro pontapés; b) gostava de sentir a pressão do remate decisivo. Foi o primeiro e Joel Bats adivilhou-lhe os intentos. Falhariam ainda Platini e Júlio César, o Brasil estava fora do Mundial-86 nos quartos-de-final”

“A carreira televisiva de Sócrates acabou antes de começar. A SportTV contratou-o para acompanhar a final do Paulistão, entre Palmeiras e Corinthians. No primeiro dia, chegou em cima da hora, a cheirar a álcool e churrasco e totalmente zero preparado para o jogo. Cada vez que o Corinthians tinha a bola, uma empolgação nunca vista. Cada vez do Palmeiras,a  voz mudava de tom e parecia um robot. Os adeptos do Palmeiras telefonaram vezes sem conta para a emissora a criticar a desigualdade de critério. Para a segunda mão, a SportTV não conseguiu contratar ninguém em cima da hora e voltou a apostar em Sócrates. Que, desta vez, chegou a tempo e horas. O problema foi que desceu para o relvado, deu uma volta olímpica para ser aplaudido pelos adeptos do Corinthians e gritou até mais não o golo da vitória da sua equipa. Os irados adeptos do Palmeiras voltaram a entupir as linhas telefónicas da emissora. Foi o fim” “Sócrates continuou a fumar e a beber álcool como nunca. Uma vez, para definir o número do telemóvel, ele escolheu o 51. Porquê?, questionou o amigo Mortari. ‘Porque é o da marca de cachaça mais vendida no Brasil’. Uma outra vez, estava a negociar um acordo com a Topper e assinou o contrato na hora porque gostou do nome do gerente da marca: Fernando Beer””

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