Tony Ramos. “Você até pode rir, mas o time que mais puxa por mim é a Académica”

You Talkin' To Me? 05/09/2020
Tovar FC

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Tony Ramos. “Você até pode rir, mas o time que mais puxa por mim é a Académica”

“Se não se importar, queria um café aba… ata…” Em Lisboa, sê lisboeta. Tony Ramos quer um abatanado, pois claro. O actor brasileiro de 66 anos de idade entra na Sala Renascença do Hotel Pestana na Lapa e espalha charme sem esforço com dois valentes apertos de mão. O seu ar é tranquilíssimo, do mais simples que há e começa a tratar-nos pelo nome próprio. “Rui, vamos sentar-nos aqui?” Challenge accepted.

Enquanto o fotógrafo do i desmarca-se para outras paragens, à procura do melhor local para a sessão que se segue dali a 36 minutos, o jornalista divide um sofá de couro vermelho com um daqueles actores memoráveis, das novelas brasileiras como “O Astro”, “Pai Herói”, “Rainha da Sucata”, “Torre de Babel”, “Laços de Família”, “Mulheres Apaixonadas”, “Belíssima”, “Caminho das Índias”, “Passione”… Bem, vamos ficar por aqui porque a lista é extensa, porque o homem tem mais entrevistas e porque o abatanado esfria. Vamos lá iniciar “isto”.

E o “isto” é provocado por uma visita relâmpago a Portugal (de segunda até amanhã) por ocasião da ante-estreia de Getúlio no São Jorge. É uma obra biográfica brasileira sobre Getúlio Vargas, duas vezes presidente do Brasil em épocas tão distintas como os anos 30 e 50. O filme de João Jardim percorre a intimidade dos últimos 19 dias da vida de Getúlio, período em que se isola no Palácio do Catete até ao suícidio com um tiro no coração. Quem dá vida a Getúlio é Tony Ramos. Ouçamo-lo.

O Getúlio Vargas morre em 1954 e o Tony Ramos já era nascido. Tem noção desse momento?

Claro que sim, é uma dessas grandes coincidências da vida. Era véspera do meu aniversário de seis anos, dia 24 de Agosto de 1954, e estava na casa da minha avó, a mãe da minha mãe, no interior de São Paulo, numa cidade chamada Avaré. Ela estava a fazer um daqueles bolos deliciosos quando se soltou a tigela em cima da mesa de madeira. Falando agora com você até parece que está acontecendo neste preciso instante.

E a sua avó disse…

“Nossa Senhora, morreu o Doutor Getúlio”. Eu só perguntei “que Doutor Getúlio?”, pensando que era amigo de família ou assim. Isso foi em 1954, a televisão tinha quatro anos de vida na América Latina mas nós não tínhamos uma lá em casa. Então, a notícia circulou pela rádio que estava lá ao fundo na cozinha. A minha avó virou-se para mim e começou a chorar enquanto dizia “o Doutor Getúlio, meu filho, o presidente do Brasil”. Aí, chegou a minha mãe e inicia-se um período de grande comoção. Todo o país acusa o toque, o sentimento de perda é enorme.

E o Tony Ramos?

Como qualquer pessoa com seis anos, os acontecimentos passam-me um pouco ao lado. Não tinha noção, não entendi bem tudo aquilo. Nem hoje, com toda a multimedia, uma criança de seis anos sabe bem o que está a acontecer à sua volta numa situação destas. A imagem mais forte da morte do Doutor Getúlio é essa mesmo, na casa da minha avó. Só anos mais tarde é que me apercebi da pessoa Getúlio, da sua trajectória política, da sua ditadura.

É uma personagem fascinante.

A sua história tem… história. E rica.

Por exemplo?

Foi presidente do Brasil até ser derrubado por militares. Autoexila-se então no sul do Brasil, numa fazenda – aqui vocês chamam herdade, não é? – no Rio Grande do Sul, onde passa cinco anos e engorda trinta e poucos quilos. Fica lá quieto na sua pequena fazenda, onde criava bois e tal. Até que o querem de novo no poder, convidado por pares políticos. E qual a surpresa dele? Regressa ao poder em 1951, eleito pelo povo e por maioria! Tem de convir que há aqui uma grande contradição nisso. Um homem que foi um grande ditador e sob o seu governo morreram muitas pessoas e sob o seu governo houve uma linha dura terrível promovida pelo Ministério da Segurança. E esse povo trá-lo de volta!

Xiiiiii.

Bom, entretanto cresço e já estou na faculdade quando decorre a Ditadura Militar. Estamos em 1964 e o povo dizia “se fosse no tempo de Getúlio, isso não acontecia”. Ninguém pode negar, ele foi um grande estadista, um grande estrategista político e criou as leis que até hoje perduram, a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, o período de férias e o salário de bonificação do trabalhador. Além disso, criou a Petrobrás, uma das cinco maiores empresas do mundo de petróleo. É um homem contraditório e a preparação para este filme foi… (e chega o abatanado à mesa) Posso beber o café enquanto falo com você?

Claro que sim, força.

Obrigado. Preciso mesmo disto. Dizia que a preparação para o filme foi-me benéfica porque “Getúlio” exerce uma grande reflexão política sobre todos os tempos, inclusive agora.

Quer isso dizer…

A democracia é o bem maior que um povo pode ter, porque uma tirania, por mais branda que seja – se é que esse conceito possa existir – causa sempre uma depedência do povo e isso não é nada bom. Por exemplo, agora está a decorrer o segundo turno – a segunda volta como vocês dizem aqui – das eleições presidenciais do Brasil e há debates televisivos entre a nossa presidente Dilma Roussef, a dona Marina Silva e o Aécio Neves, neto do Tancredo Neves [presidente do Brasil por três meses em 1985]. Isso é saudável.

E é uma mudança em relação ao Brasil dos seus tempos de faculdade.

Pois, é isso. Nunca fui de fazer política mas tenho a minha opinião, claro. Só participei de uma grande campanha no Brasil, o Directas Já [em 1984]. Foi um movimento supra partidário em que nós batalhámos por eleições livres. Isso só veio a acontecer em 1989 [vitória de Fernando Collor de Mello sobre Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno]. Mas estávamos lá e isso é um orgulho enorme. Fora isso, não declaro o meu voto e não apoio partidos. Sou apenas um cidadão que paga os meus impostos e só quero educação no meu país. O que é fundamental para o povo é a educação. É aí que começa uma grande nação.

É o seu sonho?

É esse basicamente o meu sonho, que a criança ocupe o dia inteiro nos liceus e nas escolas, que se criem as disciplinas de desporto e artes o mais vincado possível. É isso que faz mexer a mente de qualquer indíviduo.

No Brasil, o horário escolar é muitas vezes dividido ao meio, não é?

Pois é. Quem entra às 7, sai às 13; quem entra às 14, sai às 18h. Já há algumas escolas a adoptar o período integral, de manhã até à tarde, mas é muuuuito insufuciente. Tem de haver esse incentivo para os alunos crescerem. A educação, insisto, é a base de tudo. Das pessoas e, por consequência, de uma nação

Tenho de mudar a agulha, porque o tempo aperta e o Tony Ramos tem uma carreira cheíssima.

Vamos a isso.

Na novela “O Astro” (1977) o Tony Ramos protagoniza o primeiro nu masculino nas telenovelas brasileiras.

Eheheheh [parte-se a rir]. Você tinha um aninho ou dois quando isso aconteceu.

Não me lembro, claro, mas é um momento histórico. Como é que foi recebido o momento?

Foi tão bem preparada a cena que em nenhum momento houve algum incómodo, num período de censura dura pela ditadura reinante no Brasil. A cena está tão bem escrita pela sensacional, extraordinária Janete Clair que o primeiro nu na televisão brasileira é mais comovente que outra coisa qualquer.

Então?

É o momento que me dispo à frente do meu pai com a seguinte frase a proclamar: “nem essa roupa que o seu dinheiro compra eu preciso mais, não compactuo com algumas coisas dos seus negócios e vou-me embora” num acto à lá São Francisco de Assis de quem o personagem era admirador. Esse contexto era tão precioso que o público se emocionou. Nas revistas de época, você não vê nada de notícias bombásticas como “nasce um sedutor de plantão” ou então essa cena foi de absoluto voyeurismo. Nada de nada. E nada é mesmo nada. As manifestações foram curiosas, quase todas a falar sobre a religião do personagem, do desapego ao dinheiro, de São Francisco de Assis.

Já reviu essa cena?

Às vezes, vejo numa reprise [repetição].

E?

Para mim, foi feito com bom gosto, através do Daniel Filho. Já achava isso na altura. Agora também o acho. Tive de ficar nu, claro, mas havia limites para essa cena, até porque a censura estava em cima de nós. Eles diziam “entendemos tudo isso mas cuidado lá como vai mostrar isso”. Então às oito e meia da noite lá apareceu um homem de pêlo desfilando pelas casas dos brasileiros [mais risos]. E, além disso, nem fiquei tão nu assim porque estava coberto de pêlos [outra gargalhada animada].

Por falar nisso, é o Tony Ramos o actor mais peludo da história?

[com naturalidade] Não sei disso não… Tenho muitos pêlos, é verdade.

Mas o Chewbacca da Guerra das Estrelas…

Ahhhh [risos], mas ele é artificial, ele é meramente um monstrinho simpático.

Sabe uma coisa, há outros actores bem mais peludos hein! Olha, o Elias Gleizer, por exemplo. Grande amigo meu, tem uns 80 anos, muita gente o conhece, muitos leitores vossos devem reconhecê-lo pelo nome porque ele tem tantas tantas tantas novelas, muitas delas comigo… e ele deve ter mais pêlos que eu. Ti garanto, ò Rui. Eu fiquei com a fama, isso sim. Ahh, deixa para lá [é rir a bom rir]. Mas, ò Rui, você até pode nem acreditar nisto mas nunca me preocupei, é uma coisa que encaixo com naturalidade. Convivi com isso, sem problema algum, mesmo hoje com os pêlos brancos e tudo. Eu peço à minha mulher para passar aquela máquina de barbearia, de cabeleireiro…

Aquelas de fazer a barba?

Essas.

Eu faço a barba e o Tony…

Isso mesmo. De dois em dois meses [e o Chewbacca, será de quanto em quanto tempo? fica a pergunta no ar]. A minha mulher dá uma desbastada e fico como novo. Quando sofro mais é no Verão ou então quando os pêlos sobem pelo peito e já não dá para fechar muito bem a camisa [e aponta para o peito]. As anedotas criadas, até na própria TV Globo, são levadas com humor por mim. Não há outro jeito. Não me levo a sério mas faço tudo com seriedade. É como eu digo: vivo com muita simplicidade mas com simplicidade matemática.

Outro papel muito falado é de Nikos em “Belíssima”. Interpreta um grego e fala grego mesmo. É de doidos.

Eheheheh, foi bem divertido e talvez o maior desafio da minha carreira. Vivi uns 20 dias na Grécia.

Quase um mês…

Fui antes de todo o mundo para poder preparar-me convenientemente. Se eu colocar um estrangeiro no Brasil, ele vai querer ouvir como os brasileiros falam, riem e gesticulam. A Globo alugou uma casa e ficámos lá a viver tudo aquilo, a estudar sons e a falar macarronicamente com pessoas em actos tão simbólicos como ir às compras, ir aos restaurantes. Assim nasceu o Nikos, um trabalho meu e também da minha professora de grego, a Julia, que esteve o ano inteiro connosco a ensinar, aconselhar e rectificar.

Foi um trabalho elogiado?

Ah sim, deu prémios, muitos prémios. E, às vezes, era interpelado por gregos nos aeroportos ou na rua a dizerem-me que o meu personagem Nikos era parecido com os tios deles. Foi bom, muito bom, tal como quando fiz de italiano em “Passione”. Também aí recebemos elogios das comunidades italianas.

Nos cinemas, os seus papéis também são elogiadíssimos. Como no “Se Eu Fosse Você” com Glória Pires.

Que memórias boas. E, olha, o 2 é ainda melhor que o 1. É um aperfeiçoamento do 1. Levámos onze milhões de pessoas ao cinema e ganhei o prémio de melhor actor de cinema com uma comédia. Isso é raro, muito raro.

O Tony Ramos não pára?

Ainda ontem me perguntaram isso, se sou um workaholic e não, não sou. Gosto é muito de representar, de trabalhar em projectos fascinantes como o “Getúlio”. Ou como o meu próximo filme, o “Quase Memória”, de Ruy Guerra, um realizador português que vive no Brasil desde os anos 50. Posto isto, sei muito bem quando parar, quando preciso de ter o meu momento de ócio. Em Janeiro de 2015, vou acalmar. Será o meu momento de ócio.

Ócio lembra férias. Quando veio a Portugal pela primeira vez?

Pouco depois do 25 de Abril. Não te quero enganar mas acho que foi em Março de 1975. Eu e a minha esposa saímos de São Paulo para Roma e ainda visitámos Inglaterra, França e Madrid.

E Lisboa?

Em Madrid, os brasileiros tanto me diziam para ir a Portugal como me afastavam de lá, pedindo-me para ter cuidado com a revolução mas a revolução já tinha sido e eu tinha de visitar Portugal, tenho aqui as minhas raízes, o meu avô é de Guimarães.

E que tal?

Ainda vi agitação, ainda peguei algumas altercações.

Entre forças da autoridades com populares?

Entre populares mesmo, ali no Rossio. Um dizia uma coisa, o outro respondia que não e aquilo desenvolvia-se mas mantinha-me longe da confusão nem queria participar naquilo, ainda por cima como turista.

E voltou?

Tantas vezes. Já trouxe a minha mãe, a minha sogra. Uma vez, em 2001, elas vieram juntas comigo e com a minha mulher. Fomos a Fátima e foi tão bonito, a emoção que elas nos passaram foi tão legítima e espontânea ao ponto de nos contagiar. Tenho a emoção dentro de mim sempre que volto cá. A emoção de rever Óbidos, a emoção de rever Évora, a emoção de entrar nas casas de fado, a emoção de subir Alfama, a emoção de ver os amigos, a emoção…

E a emoção do futebol?

Também, sou do São Paulo FC, tricampeão mundial em cima de Liverpool [2005], Barcelona [1992] e Milan [1991].

E vai ao estádio?

Só se não puder. Agora moro no Rio mas vou sempre ao Morumbi quando estou em São Paulo e convivo com os torcedores nas bancadas. Um deles é o Lima Duarte.

O Sinhôzinho Malta, que honra.

Grande amigo meu, grande são-paulino. Estamos de bem com a vida por isso mesmo: somos do São Paulo.

E cá em Portugal?

Olha, não tenho um clube fixo. Se o Porto for bem na Europa, puxo por eles é claro. Fui do Benfica nas últimas duas finais europeias, com Chelsea e Sevilha, Sei que o Sporting é aquele time das camisolas bonita às riscas verdes e brancas e ia muito jogar boliche [bowling] àquele centro comercial dentro do estádio, em 2003, 2004. Agora, você até se pode rir, sem problema nenhum, mas o time que mais puxa por mim, e isto falo mais do passado do que agora, é a Académica. O time dos estudantes, o time de preto. Julgava que só o árbitro é que vestia preto e eis que aparece a Académica. Foi bonito de ver [e recomeça a rir-se]. Gostava tanto deles que ficava à espera de ver os seus resultados nas crónicas desportivas dos jornais brasileiros daquelas épocas. falo dos anos 70, 80. Ah, e há outro time, o Braga que tem aquele estádio de pedra, fantástico.

E viu o Pelé a jogar?

Se vi o Pelé? Ele só tem mais oito anos que eu, claro que vi [lá vem o sorriso acompanhado de uma gargalhada]. Uma vez, vi-o a jogar na baliza. O Gilmar lesionou-se e ele vestiu a camisola de guarda-redes. Fez cá uma defesa [e faz o gesto]. Foi um livre, a bola ia ao ângulo, onde a coruja dorme, como se diz no Brasil, e ele espalmou a bola com uma categoria. Depois disso, ainda o vi em Nova Iorque, no Cosmos. Vi tudo isso, tenho essa sorte. E lembro-me perfeitamente de o ver com 17 anos apenas a ganhar o Mundial da Suécia, em 1958. Um fenómeno. [como Tony Ramos]

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