Daniel Gaspar. “Lemajic era um superman, Moreira um gladiador e Baía tem star quality”
Quinta-feira, 25 de Julho de 1392. O Irão é um país muito à frente. Se aí são 13 horas, aqui já são 15h30. É verdade, duas horas (e meia) adiantados em relação a Lisboa. Uma experiência inédita, sobretudo quando queremos acertar o despertador para o dia seguinte. É cá uma ginástica mental.
Continuamos no Hotel Azadi, 18.º andar. Quando se entra num quarto, seja no primeiro ou no último dia, há a tendência para ligar a televisão. Mais não seja para encontrar um canal de música, onde não abundem as notícias num alfabeto imperceptível com números do arco da velha, sempre a rodar da esquerda para a direita. Help, vamos ter um torcicolo. Música, maestro. Paramos num canal sui generis. De música? Isso é o que vamos ver…
Dois homens sentados falam com um terceiro, via-telefone. Em farsi, claro. O pivot tem a palavra, o outro do lado nem ai nem ui. Às tantas, é dado o que parece ser o tiro de partida e o terceiro elemento começa a cantar. Um minuto. Dois. Já chega não? Ele continua por ali fora a desbravar caminho. Canta a música toda até ao fim, mas sem música. É só a voz dele. Isto será a versão iraniana do Ídolos?
Expectativa. O pivot agradece a participação do cantor (hey, já sei falar farsi) e passa a palavra ao ex-mudo. Este não vai de modas e fala pelos cotovelos. De repente, começa ele a cantar. A corrigir o exercício do aluno? É bem capaz, porque o homem do telefone repete aquela parte da música, num outro tom. Aprovado. Venha o seguinte. Vemos o segundo ídolo e baixamos o som. Ligamos o computador para ouvir música através do youtube. Qual quê? Aqui não há youtube para ninguém, o sistema do hotel é alérgico ao site. Bom, o melhor é descer até ao hall do hotel. Lá, ao menos, ouve-se piano das 13h às 15h. É aí que nos encontramos com Daniel Gaspar. Ou melhor, é ele que nos encontra, com um sorriso aberto e já de mão esticada para um passou-bem.
Quem? Daniel Gaspar, Dan para os amigos. É o treinador de guarda-redes da selecção iraniana e o terceiro elemento português do Irão ao lado de Carlos Queiroz e António Simões. Assim como quem não quer a coisa, é dos poucos homens a “jogar” nos três grandes portugueses. Quando pensamos nisso, é óbvio pensarmos em Eurico, Romeu, Alhinho, Fernando Mendes, Futre, Peixe e Derlei (jogadores). Ou então Riera, Otto Glória, Fernando Santos e Jesualdo Ferreira (treinadores). Ou ainda Dan, Super-Dan. Uma surpresa em todos os sentidos, ouçamo-lo no seu divertido português americanizado. Isto sim, é música para os nossos ouvidos.
O seu currículo é impressionante. Jogou nos três grandes.
Comecei no Sporting, convidado pelo Carlos Queiroz em 1995. Na verdade, já trabalhara com ele na selecção portuguesa durante a qualificação para o Mundial-94. Dois anos depois, encontrámo-nos em Alvalade.
E ganha uma Taça de Portugal.
Dois golos do Iordanov ao Marítimo, grande festa no Jamor.
O guarda-redes do Sporting era o…
Lemajic.
Era bom?
Fisicamente, era um super-man, um atleta superior a todos os outros. Uma vez, estava eu, ele e o Costinha a jantar. Quando saímos do restaurante, o Lemajic diz-me ‘Gaspar, estás a ver aquele carro? Vou saltar por cima dele!’ Um segundo depois, ele salta mesmo. Era um atleta extraordinário, como lhe digo. O problema era o jogo de pés. Quando saiu a tal lei do atraso para o guarda-redes, ele passou um mau momento porque não teve essa formação de jogar com os pés. Lembro-me que os adeptos do Sporting começavam a assobiar um atraso para o Lemajic, ainda ele não tinha tocado na bola [risos].
Segue-se o Benfica do Camacho.
Convidado aqui pelo António Simões [é verdade, o Simões está ao nosso lado]. O guarda-redes era o Moreira, lembra-se dele?
Siiiim, muito novo.
19 anos. O Moreira tem uma história um pouco triste, porque o Camacho nunca ‘believe’, nunca acreditou nele. Aliás, o Benfica andava constantemente atrás de guarda-redes e até se falou no Barthez. Então, eu e o Moreira criámos uma partnership muito forte.
Como?
Ele era o capitão da selecção olímpica e jogava com muito mais confiança, porque o treinador dizia-lhe coisas como ‘és o maior’. O meu trabalho era fazer do Moreira dos olímpicos o Moreira do Benfica. E conseguimos. Tudo começou num jogo europeu, na Noruega…
Rosenborg, Molde?
Isso, Rosenborg. Foi o clique [Março de 2004, Taça UEFA: 2-1 para o Rosenborg com Nuno Gomes expulso aos 40 minutos, 2-2 na eliminatória, Benfica em frente pela regra dos golos fora], porque o Moreira saiu levado em ombros pelos companheiros. Esse jogo certificou o Moreira como capaz de defender a baliza do Benfica e até chegou à selecção nacional. Só faltava uma coisa.
O quê?
Ele tinha um problema nas bolas pelo ar. Como mudar isso? Comecei a chamá-lo de gladiador, uma pessoa que se prepara peça a peça para a batalha. Um dia, no autocarro do Benfica, ele chama-me ao segundo andar e mostra-me o dvd do Gladiador. Tinha-se agarrado àquela ideia e começou a sair-se melhor aos cruzamentos.
E o suplente do Moreira, quem era?
Bossio, fantástico com os pés, um dos melhores que já vi. Mas os adeptos assobiavam-no muito e perdeu o lugar para o Moreira.
Finalmente o FC Porto. Vítor Baía?
Yep, o Baía tem uma classe inegável. Até quando sofre um golo, sai-se bem na fotografia. É muito calmo. Por exemplo: estamos aqui neste restaurante e há um incêndio. Todas as pessoas querem sair daqui, não é? O Vítor, não. Acabava o seu café, arrumava a cadeira e saía tranquilamente. Tem star quality, ele podia jogar ténis, basquetebol, podia ser até artista. Mas já o conhecia da selecção.
Ahhhh, e então?
Um diamante, por assim dizer. Nos penáltis, por exemplo. O Silvino ia para a baliza e os jogadores faziam golo. Depois era a vez do Neno e os jogadores voltavam a fazer golo. O Vítor lá ia calmamente para a baliza e os jogadores acusavam a sua presença. No seu íntimo, julgavam que era preciso fazer o remate perfeito para o bater e isso era o mais importante do Vítor. Esse estatuto psicológico só está ao alcance de alguns.
Na década seguinte, reencontra-o no Dragão. Que tal?
O mesmo Vítor de sempre, mais maduro ainda. Foi uma época atípica, com três treinadores: Del Neri, Fernández e Couceiro. O Fernández era um gentleman e um vencedor, só não conquistou o balneário.
Mas Fernández ganhou a Taça Intercontinental.
É verdade, em Tóquio [12 de Dezembro de 2004]. Apanhámos um susto nesse jogo.
Como assim?
O Vítor sentiu-se mal e caiu. Como a memória do que se passara com o Fehér ainda estava demasiado fresca [25 de Janeiro de 2004], aquele desmaio do Vítor alertou-nos. Entrou o Nuno Espírito Santo, uma pessoa sensacional e um guarda-redes com um conhecimento táctico muito profundo. Não por acaso é um treinador com bons resultados no Rio Ave. Dizia eu, o Nuno entrou e cumpriu. Ganhámos nos penáltis.
Uma das poucas alegrias da época.
É verdade, e isso demonstra a força do Porto. Quando lá cheguei, tanto jogadores como roupeiros e outros, apertaram-me a mão com um ‘bem-vindo ao melhor clube do mundo’. Eles acreditam mesmo naquilo que dizem e essa é a sua maior força. Fomos campeões mundiais mas perdemos o campeonato nacional: seria um bom ano, mas não para o Porto. A pressão dos adeptos é incrível, às vezes sofríamos no aeroporto depois de um mau resultado europeu. Lá, a pressão é muito maior que a do Sporting e a do Benfica.
Então?
Eles lá no Porto vivem mesmo aquilo. No Sporting, os adeptos pareceram-me igualmente entusiasmados no apoio à equipa mas não se envolvem tanto: acaba o jogo e eles vão para casa, para a sua vida. O Benfica é o maior clube português: onde quer que fossemos, em Portugal ou no estrangeiro, havia sempre um benfiquista. A paixão também é imensa e intensa mas não como no Porto.
Como era o Daniel Gaspar como guarda-redes?
Razoável. Desde pequeno me interessei pelo fenómeno, porque o meu pai também era guarda-redes: Marialvas e juniores do Benfica.
Ahhhh, como se chamava?
Manuel Gaspar Abreu, chamavam-no o Batata [risos]. Ele foi o meu melhor treinador, aprendi imenso: coisas técnicas e paixão pelo futebol. Uma vez, na praia, ele começou a treinar-me a atirar-me a bola para eu agarrá-la no ar. Aquele exercício durou minutos a fio, sem qualquer descanso. Eu estava exausto e queria beber água mas ele proíbia-me, ‘volta para o teu lugar’. Percebi então porquê: havia toda uma multidão à nossa volta a olhar para nós, talvez nunca tivessem visto um homem voar [risos].
…
Tive outro episódio com ele. Jamais o esquecerei porque permitiu-me crescer e moldou-me a personalidade dali em diante. Ele costumava levar-me ao Colt Park para treinar-me. Levámos um saco de bolas, ele começou a rematar à baliza e eu nem me fazia ao lance. O meu pai perguntou-me então o que se passava e eu adiei o assunto, ‘nada, nada’. Então, ele continuou a bater bolas e eu nada. Segunda paragem e aí disse-lhe ‘you can beat me anymore’, não podes marcar-me mais golos, já estou crescido. ‘Ai é?’, perguntou-me ele. Meteu as bolas no saco, entrou no carro e desapareceu. Fiquei sozinho e tive de ir para a casa a pé, durante uma hora. O meu pai nunca mais me treinou. Nesse dia, perdi o meu melhor treinador. Foi uma lição de vida: nunca desvalorizar o que os outros têm para te transmitir e o meu pai tinha tanto mais para oferecer.
Voltamos à pergunta, como era o Daniel Gaspar na baliza? Eu era baixo para ser guarda-redes. ‘Tás maluco’, dizia-me o meu pai, ‘claro que os pequenos também triunfam, olha o Bento e o José Henrique’. Mas isso eram outros tempos. Joguei na A-League, a 2.ª divisão da MLS, e abri uma escola de guarda-redes nos EUA para proporcionar aos mais baixos e aos mais altos todas as condições para serem guarda-redes. Eu sou quem sou por causa do meu pai, Manuel Gaspar.