RFA-Itália 1970, o hino ao futebol

Kali Ma Mais 06/16/2020
Tovar FC

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RFA-Itália 1970, o hino ao futebol

Jahrhundertspiel, Partita del secolo, Partido del Siglo, Jogo do Século. A 17 de Junho de 1970, uma quarta-feira, o mundo todo sem excepção não consegue parar de olhar para a televisão. Nem por um minuto. Não dá, simplesmente. Está a dar o RFA-Itália, o primeiro e único jogo em Mundiais com cinco golos no prolongamento e ainda mais duas reviravoltas no marcador. Épico, lendário, histórico e mais uns quantos adjectivos.

Campeã europeia em título, a azzurra chega ao Mundial do México com o seleccionador Ferruccio Valcareggi a ser obrigado a resolver um dilema entre Sandro Mazzola (Inter) e Gianni Rivera (Milan). Só um jogará de início e Mazzola é o eleito, embora Rivera seja o Bola de Ouro-69. O ambiente é assim para o turvo, mas a Itália não se deixa abater. Ganha 1-0 à Suécia, golo de Domenghini, e acumula dois 0-0, com Uruguai e Israel (estreante). Nos quartos-de-final, 4-1 ao México com um Rivera estratosférico, a substituir Mazzola para assinar o 3-1 e assistir Riva no 4-1.

E agora Valcareggi, quem joga as meias-finais com a RFA? Fiel aos seus princípios, o treinador elege Mazzola. Na RFA, o Mundial é do mais animado que se pode imaginar. É Müller e mais dez. Conhecido como gordito por apresentar uma barriguinha saliente, o avançado marca um golo ao México (2-1), três à Bulgária (5-2) e mais três ao Peru (3-1). Uau, dois hat-tricks seguidos. Estamos curiosos por saber o que se segue. Com a Inglaterra, é “só” um golo – o decisivo 3-2, aos 106 minutos, depois de os ingleses se adiantarem por Mullery (32’) e Peters (50’). Vale a reacção de Beckenbauer (69’) e Seeler (82’).

E cá estamos nós no Azteca a 17 de Junho de 1970. A outsider Itália marca aos 8’ por Boninsegna, numa combinação com Riva. Até ao fim dos 90’, o guarda-redes italiano Albertosi é o maior protagonista de todos, a adiar o empate. O árbitro peruano Yamasaki dá descontos, algo pouco normal naquela época – totalmente justificados pela paragem para saber da clavícula de Beckenbauer. O alemão sai de campo e reentra com o braço ao peito. É assim que joga o resto do tempo para evitar a superioridade numérica da Itália (Helmut Schön já efectuara as duas substituições). É Beckenbauer quem inicia a jogada do empate aos 90’+2, marcado pelo seu colega da defesa Karl-Heinz Schnellinger, curiosamente do Milan.

O golo poderia funcionar como golpe psicológico a favor dos alemães e contra os italianos, mas já veremos que isso não foi bem assim. Bom, vamos então para prolongamento, onde a lógica da ilógica prevalece no maior jogo de sempre em Mundiais. O aspecto táctico simplesmente não existe, o técnico também está longe dos melhores dias. O coração e o querer substituem a rotina do futebol e transformam a Cidade do México. E o mundo. Aos 94’, Müller pica o ponto ao aproveitar-se do desnorte da defesa contrária na sequência de um fraco cabeceamento de Seeler: 2-1 para a RFA. O lateral Burgnich empata aos 98’ e o endiabrado Riva dá a volta no último suspiro da primeira parte do tempo extra.

O público está mais entusiasmado que nunca e ainda faltam dois golos. O de Müller para o 3:3 aos 110’ e o 4:3 de Rivera, o tal Bola de Ouro-69 que substitui Mazzola ao intervalo, no instante quase imediato. Quando Yamasaki apita para o fim, a alegria dos italianos é evidente. Tal como a tristeza dos alemães. Falamos dos jogadores e também dos populares. Na Alemanha há registos de incidentes com italianos nas ruas e ainda alguns carros italianos incendiados (Fiat e Alfa Romeo, sobretudo).

A RFA vê adiado o seu primeiro jogo com o Brasil em Mundiais (só jogariam entre si na final de Yokohama em 2002) e a Itália avança para a decisão. Quem será a primeira selecção a sagrar-se tricampeã e a levar a Taça Jules Rimet para casa: Itália ou Brasil? Seria o Brasil, por esclarecedor 4-1, num outro jogo sensacional no Azteca. Mas não tão sensacional como este de 17 de Junho. Prova disso é a placa comemorativa desse jogo à entrada do estádio. Lê-se: “O Estádio Azteca rende homenagem às selecções de Itália (4) e Alemanha (3), protagonistas no Mundial-70 do Jogo do Século.” Partido Del Siglo, Partita del Secolo, Jahrhundertspiel.

OUTROS GRANDES JOGOS DE MUNDIAIS PARA COMPLETAR O TOP 3

BRASIL 2:3 ITÁLIA (1982)

O Brasil-82 de Telé Santana é um fenómeno mundial. Invencível na fase de qualificação, com quatro vitórias em quatro jogos (Bolívia, 2:1 e 3:1; Venezuela, 1:0 e 5:0), a selecção tem uma constelação de estrelas com Óscar, Júnior, Sócrates, Falcão e Zico. Não se pode desconfiar da equipa, muito menos do seleccionador, campeão brasileiro pelo Atlético Mineiro em 1971. No olho do furacão, o Brasil é um sucesso futebolístico e até comercial. A música “Povo Feliz”, gravada pelo lateral Júnior, vira símbolo da campanha da selecção, com centenas de milhares de vendas nas discotecas. É o clima do obaoba.

O pessoal está todo animado e os resultados não o desmentem: 2:1 à URSS, 4:1 à Escócia e 4:0 à Nova Zelândia. A segunda fase está marcada para Barcelona, mas não é no Camp Nou (esse grupo é o de Polónia, Bélgica e URSS) e sim no Sarriá, a casa do Espanyol. No primeiro dia, Itália 2 Argentina 1. No segundo, Brasil 3 Argentina 1. Quer isso dizer que o Brasil tem a vantagem de um golo para o jogo decisivo com a Itália, no dia 5 de Julho. É dizer, basta-lhe o empate para atingir as meias-finais. Qual empate, qual quê! O sentimento generalizado é de vitória brasileira sem discussão. Ainda por cima, a Itália está mergulhada numa crise de resultados sem precedentes (três empates na fase de grupos) e os jogadores não falam com a imprensa desde o estágio em Portugal, onde ganham por magro 1-0 ao Braga, no 1.º de Maio.

Naquela caixa de fósforos do Sarriá, a Itália entra melhor com um golo de cabeça de Paolo Rossi aos 5’, após cruzamento de Cabrini a rasgar a defesa brasileira. O doutor Sócrates empata aos 12’, com um remate rasteiro entre Zoff e o poste (a bola até levanta pó na linha de golo), e o Brasil volta a estar apurado. O problema é que Rossi ganha asas e faz o 2-1 a aproveitar um deslize de Cerezo na sua defesa. Pelo meio, Gentile rasga a camisola de Zico num lance em que o árbitro israelita apita fora-de-jogo em vez de penálti. “Quem me marcou foi o Gentile, que já tinha forçado a expulsão do Maradona no jogo anterior e dissera que o futebol não era para bailarinas. Portanto já sabia ao que ia, mas aquilo foi duro. E o apelido dele, onde já se viu? Gentile. Pura enganação. Ele rasgou-me a camisola e o árbitro nada. Era penálti mas tudo bem. Já passou. E até já me encontrei com ele anos depois e falámo-nos na boa.”

Ao intervalo é a squadra azzurra que comemora. Obrigado a reagir, o Brasil vai atrás do empate e consegue-o através de Falcão, aos 68’, numa sensacional jogada individual em que simula a desmarcação para Sócrates (que arrasta três italianos) e abre uma brecha na defesa para aplicar um pontapé indefensável para Zoff. Dois-dois à falta de pouco mais de 20 minutos, é tempo de o Brasil defender a qualificação. Telé Santana não dá ordens para abrandar o ritmo. Júnior continua a atacar como se não houvesse amanhã, Sócrates e Zico mantêm o ritmo frenético de jogar para a frente, onde se encontra o ineficaz Serginho (quatro golos em cinco jogos no Marítimo em 1987).

Lá atrás, o quarteto defensivo é liderado por um tal Luisinho, que brilharia no Sporting na década seguinte, e sofre com o 3:2 aos 74’: hat-trick de Rossi, na sequência de um canto. O futebol-arte do Brasil pára por ali. Para eles, é a famosa tragédia do Sarriá. Para os italianos, é o conto de fadas do Sarriá. A Itália segue em frente e sagrar-se-ia campeã mundial, com mais três golos de Rossi (dois à Polónia nas meias e um na final à RFA). Para Falcão, “o futebol perdeu com essa derrota, mas atenção que a Itália era formidável. Zoff era um dos melhores a fechar o golo. O líbero Scirea era um dos três maiores da Europa. O Cabrini marcava com uma eficiência incrível. O Tardelli tinha um rendimento muito bom. E ainda havia Antognoni e Bruno Conti, que jogava comigo na Roma. O Brasil perdeu e o futebol também perdeu porque a partir daí todos passaram a valorizar muito mais a marcação individual”

RFA 3:2 HUNGRIA (1954)

Se o Mundial-50 provoca o Maracanazo, com o 2:1 do Uruguai ao Brasil no jogo decisivo, o Mundial-54 não lhe fica atrás em matéria de surpresas, com o triunfo da desconhecida RFA sobre a invencível Hungria, em Berna (3:2).

As duas selecções chegam à final em condições totalmente opostas: os húngaros atropelam os quatro rivais com um total de 25 golos; a RFA é mais em força, sem requintes técnicos, embora goleie Turquia (7:1) e Áustria (6:1). Pelo meio, 8:3 da Hungria. É verdade, os finalistas vêm do mesmo grupo, o B. Como a superioridade húngara é por demais evidente, pela invencibilidade desde 1950, o seleccionador alemão Sepp Herberger poupa cinco titulares com a Hungria, no dia 20, já de olho no jogo, esse sim decisivo, com a Turquia. Além dessa perspicácia, a RFA ganha uma bola extra com a lesão do capitão Puskas numa entrada a varrer de Liebrich. Catorze dias depois, RFA e Hungria cruzam-se novamente. É o dia 4 de Julho, o da final. Adeptos do futebol rápido, de passe curto e jogadas de efeito, os jogadores húngaros acordam desanimados com a chuva de Berna: o relvado está empapado e dificulta-lhes o futebol-arte. Como se isso fosse pouco, todo o estádio é alemão – 30 mil alemães partem na véspera do jogo para Berna. Então e os húngaros? Pela força do bloqueio imposto pelo rigor em vigor, ninguém está autorizado a sair do país.

Mesmo assim, num ambiente hostil e com Puskas a pouco mais de 50% ainda pela pancada de Liebrich, a Hungria entra com autoridade. O 1:0 é de Puskas, aos seis minutos, num pontapé rasteiro após cruzamento de Kocsis. Nem 180 segundos depois, uma trapalhada entre o defesa Kohlmeier e o guarda-redes Turek é devidamente aproveitada por Czibor. Com 2:0, poucos acreditam na reviravolta. O facto é que os alemães iniciam aqui aquele estilo muito peculiar de nunca desistir. O milagre de Berna, que até é título de um filme (alemão, pois claro), começa a desenhar-se imediatamente a seguir ao 2:0, quando o distraído Zakariás faz um mau passe para o guarda-redes Grosics e o alemão Morlock intromete-se, com sucesso, de carrinho.

Aos 18’, é canto para a RFA: o capitão Fritz Walter atira para fora da área, onde aparece Rahn a atirar para o empate, quase sem ângulo. Espanto em Berna, a Hungria deixara-se empatar. Já sem o andamento dos primeiros minutos, os húngaros começam a ser dominados pelos alemães, beneficiados pela estreia das chuteiras com travões de parafuso na sola produzidas por Adolf “Adi” Dassler, fundador da Adidas. Na segunda parte, a Hungria entra com tudo na tentativa de resolver o assunto bem cedo, antes que o relvado começasse a dar novamente de si.

Uma bola de Puskas é salva na linha de golo por Kohlmeier e Kocsis acerta um cabeceamento na trave. É o canto do cisne. A partir dos 70 minutos, a RFA toma conta do jogo com uma desenvoltura física impressionante. Aos 84’, o impensável: Schäfer rouba a bola no meio-campo alemão e cruza com força, quatro jogadores saltam mas não a apanham e esta sobra para Rahn, que domina, dribla Lantos e atira rasteiro, sem hipótese para Grosics. É o 3:2 mas ainda faltam seis minutos. A Hungria parte então para o desespero e aproxima-se do empate em duas ocasiões. Na primeira, Turek faz uma sensacional defesa ao remate à queima-roupa de Czibor. Na segunda, Puskas até festeja o 3:3 mas o árbitro inglês William Ling anula por fora-de-jogo.

Quando acaba, é uma festa imensa em Berna e os heróis alemães são carregados em ombros pelos frenéticos adeptos. Durante anos e anos, há quem sugira golpes baixos dos alemães por conta do relatório de um empregado do estádio da final que encontra os canos entupidos por cápsulas. Será doping? Nada é provado – nem pode, numa época sem controlo ao sangue e à urina. No início do século XXI, Franz Logan, médico da selecção alemã naquele Mundial, admite tão-só a injecção de vitamina C e glicose. Nada de ilegal, embora a verdade diga que seis dos campeões mundiais passam seis meses sem jogar futebol por lesão. Seja lá o que isso for.

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