Joaquim Campos. “O Pelé chamou-me ladrão e foi expulso, claro”
Joaquim Campos é uma figura. Aos 88 anos de idade (5 de Setembro de 1924, natural de Tábuas, Miranda do Corvo), é dono de um currículo invejável com 22 anos de 1.ª divisão (21 com a insígnia da FIFA).
Primeiro árbitro português em Wembley (Inglaterra-Escócia, 1959), num total de 10 jogos internacionais por selecções, mais 19 nas competições europeias e ainda 20 no Paulistão-69, quando expulsa Pelé, apita as finais da Taça Latina-55 (Real Madrid-Stade Reims), da Taça das Cidades com Feira-63 (Valencia-Saragoça) e a da Taça de Portugal-68 (FC Porto-Vitória de Setúbal). Além disso, é fiscal-de-linha da finalíssima do Euro-68 entre Itália e Jugoslávia.
Como se isso fosse pouco, Joaquim Campos é ainda o juiz do primeiro desempate de penáltis da história, entre Barcelona e Saragoça, no emblemático Ramón Carranza, um torneio de Verão em Cádiz. Histórico. É Joaquim Campos na primeira pessoa.
Boa tarde, é o Joaquim Campos?
Sou sim.
Daqui é Rui Miguel Tovar, do jornal i.
Conheço perfeitamente, é o jornal da vogal: aeiou. Diga lá ao que vem.
Fui dar a uma história sobre o primeiro desempate de penáltis da história e o Joaquim Campos era o árbitro.
A sério, quando?… Ah, espere aí, é um Barcelona-Saragoça lá em Cadiz, o Ramón Carranza, não é?
Pois, isso mesmo, em 1962.
Sim, sim, lembro-me disso. Engraçado, não sabia que tinha sido o primeiro desempate por penáltis. Quer dizer, lembro-me de uma história numa edição passada, 1958 ou 1959, em que o prolongamento de 15 minutos era impensável porque era desgastante para todas as equipas. Está a ver, eles jogavam no sábado e depois domingo, não havia condições para um tempo suplementar. Num outro ano, em caso de empate, o vencedor de um jogo decidia-se pelo menor número de cantos cedidos nos 90 minutos. Pouco prático. Até que um director do Cádiz lembrou-se dos penáltis
E?
Fui eu o contemplado. Final do torneio, 1-1 entre Saragoça e Barcelona e vamos para penáltis mas atenção.
Então?
Penáltis muito diferentes dos de agora. Cinco seguidos para o Saragoça e outros cinco para o Barcelona.
Como?
É como lhe digo, moeda ao ar para decidir quem marcava primeiro e o guarda-redes do Barcelona vai para a baliza. O Saragoça avança, um dois três quatro cinco.
Quantos golos?
Ah, não me lembro
[só três: Duca golo, Seminario golo, Lapetra ao poste, Santamaría fora e Yalza, o guarda-redes, golo].
Depois cinco penáltis do Barcelona [Benítez golo, Re golo, Camps defesa de Yarza, Cubillas defesa de Yarza e Rodri golo]. Resultado, acaba empatado. E agora?
E agora?
Pois é, e agora? O presidente do Saragoça pede moeda ao ar, o do Barcelona uma segunda série de penáltis. O alcaide de Carranza lança moeda ao ar para ver quem ganha. É o Barça, mais penáltis. E agora o primeiro a marcar é o Barça.
Mais cinco penáltis?
Isso mesmo. E o Barça marca-os todos [Goyvaerts, Benítez, Re, Gracia e Vergés].
Vem aí o Saragoça?
O mínimo deslize é fatal. À primeira, poste [por Duca]. Ganha o Barça, fim da história.
Calma lá, isto é só o início da história.
Ah sim? Então pergunte lá mais coisas.
Lembra-se da estreia na 1.ª divisão?
Claro que sim, 13 Janeiro 1952, nas Salésias, um Belenenenses-Estoril. Um-um.
Estava nervoso?
Nesse ano, apitei a final da Taça Rio de Janeiro, entre Fluminense e Corinthians [2-2], no Maracanã, com 120 mil pessoas, e, aí sim, fiquei nervoso. Nas Salésias, foi tudo tranquilo e correu tudo muito bem. Lembro-me que o Andrade foi o autor do primeiro golo [é verdade, o Estoril adianta-se aos 59’, o Belenenses empata por André aos 88’].
Como era a vida de um árbitro naquele tempo?
Se fosse apitar no Norte, tinha de sair de Lisboa na noite de sábado, num comboio a carvão, para chegar ao Porto na manhã seguinte. A viagem de volta era igualmente demorada. Chegava às 7 e pouco da manhã de segunda-feira, ia tomar banho a casa e seguia logo para a CUF, onde trabalhava toda a semana.
Isso é que era cá uma trabalheira.
Nem lhe conto. Mas tudo feito com prazer, com alguns precalços pelo meio, claro. Afinal, era árbitro.
Desenvolva, sff.
Olhe, uma vez fui agredido na Covilhã durante um jogo com o Braga. Acho que o jogo estava empatado e eu andava ali perto da linha lateral. Um adepto do peão atirou-me uma garrafa de cerveja e partiu-me a cabeça. Fui para o balneário e os médicos lá me coseram a cabeça.
Mas?
Enfaixaram-me a cabeça e entrei para fazer os 15 minutos que faltava. Nesse período, o Covilhã ainda marcou um golo e ganhou.
Mas?
O adepto que me agrediu foi preso. Era do Braga.
E mais?
Um dia, apitei um CUF-Almada. Ganhou a CUF e o Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol recebeu uma carta dos dois clubes a darem-me os parabéns pela exibição. Outros tempos, sabe? Também a nível internacional isso acontecia.
Fantástico.
Nem imagina. Em pleno Mundial-58, em Malmö, apitei o RFA-Irlanda do Norte. os alemães, campeões em título, eram superiores mas só empataram 2-2. No final do jogo, uns dirigentes entraram no meu balneário e deram-me os parabéns pela arbitragem, além de me prometerem convidar para apitar um jogo internacional. Pensei, ‘ah, promessas, isto não vai acontecer.’ Anos mais tarde, qual não é o meu espanto, quando a federação portuguesa recebe um convite da Alemanha para dirigir o primeiro jogo com a Polónia após a 2.ª Guerra Mundial?
Que honra. Bem recebido?
Sempre. Nesse aspecto, tenho uma história curiosa. Como lhe disse, fui ao Mundial da Suécia em 1958 e aquilo lá foi um espectáculo. As pessoas eram gentis, animadas e convidavam-nos para visitar museus da cerveja, jardins, monumentos. No Mundial-66, os ingleses eram frios, distantes. Veja lá bem, a organização convidava-nos para ver os jogos em Wembley, davam-nos umas sandes e íamos de metro para o estádio. Um dia, chegámos ao hotel às 2203 e nem tivemos direito a jantar.
Porquê?
Já passava das 22h.
Francamente.
Outra vez, organizaram-nos uma viagem para o Tamisa. Fomos de autocarro, voltámos a pé [e começa a rir-se]. Tudo estranho, bizarro.
Nesse Mundial-66, apitou algum jogo ou foi só fiscal-de-linha?
Aguente aí um pouco. Antes de lhe responder, e já que falou de fiscais-de-linha, pergunto-lhe eu: sabe quem foi meu fiscal-de-linha?
Nem ideia.
Anselmo Fernández, diz-lhe alguma coisa?
O arquitecto?
Esse mesmo, aquele que ganhou a Taça das Taças pelo Sporting em 1964. Foi meu fiscal-de-linha durante uns tempos, era danado para a brincadeira mas competente. Depois dedicou-se a outros assuntos. Como construir o Estádio José Alvalade, o Hotel Tivoli, a Faculdade de Letras e ganhar a Taça das Taças-64. Bom, retomamos agora o fio à meada com a sua pergunta original, se apitei algum jogo nesse Mundial-66? Apitei um Argentina-Suíça.
Ui, argentinos?
Eheheh, eles eram mesmo complicados. Naquela altura, uma das regras da FIFA era ir aos balneários das equipas ver as chuteiras de todos os jogadores. Nesse dia, fui ao balneário da Argentina e eles estavam alterados. Diziam-me que em vez de ver as chuteiras, devia era ver os joelhos e tornozelos deles, todos rasgados por entradas dos adversários. Enfim… Ainda por cima os argentinos, aquilo era canela até ao pescoço.
Apanhou algum assim em Portugal?
Havia aqui um famoso, o Serafim Baptista do Boavista. Já ouviu falar?
Não.
Era danado, terrível, sempre atrás dos outros, mas nunca tive problemas com ele. Falava-lhe antes de cada jogo e dizia-lhe o que era legal e ilegal, ele nunca passou dos limites. Às vezes, quando havia falta de outro jogador do Boavista, afastava os colegas mais os adversários e dizia ‘o árbitro é que sabe’.
…
Outra história. Nas Salésias, assinalei penálti para o Benfica. O Belenenses protestou, claro. No meio dos protestos, os jogadores viraram-se para o capitão, o Vicente, irmão do Matateu, e disseram-lhe para falar comigo. Ele, muito humildemente, disse-me ‘disseram-me para vir cá, o que se passa?’ A partir daí, o Vicente nunca mais foi capitão de equipa [mais gargalhadas]
…
Outra, outra. Num Atlético-FC Porto, apanhei foi um defesa, não me lembro agora quem, que só se agarrava ao Carlos Duarte, aquele internacional português pelo Porto. Cada jogada era uma falta. Chamei-lhe à atenção, sabe o que me respondeu? ‘Se fosse para jogar à bola, o meu treinador nunca me punha’. Fiquei a olhar para ele.
Há pouco, falou-me da Taça Rio. Ia muito ao Brasil?
Às vezes, convidavam-me para apitar jogos. Uma vez até expulsei o Pelé.
A sério?
Apitei o Pelé algumas vezes, a primeira delas aqui.
Em Portugal?
No Estádio José Alvalade, 1960. Um Sporting-Brasil [0-4]. Ele não marcou nenhum golo. Nem foi expulso [e ri-se].
Então quando se deu esse caso?
Em 1969, a federação paulista convidou-me. Queriam que apitássemos os jogos à europeia para habituar os jogadores da selecção no próximo Mundial-70. A 15 de Março, dia do Juventus-Santos, o Pelé fazia-se à falta constantemente. Ia sempre contra eles [adversários] e eu nunca assinalava nada. Numa dessas vezes, ele levantou-se muito depressa e chamou-me ladrão. Foi expulso, claro. Bem, nem imagina, o caso tomou proporções mediáticas. Os jornais falaram que virei as costas ao Rei e ele foi chamado à justiça desportiva. Argumentou que tinha chamado ladrão ao jogador que lhe roubara a bola, não a mim [gargalhadas sonoras]. Reencontrámo-nos na final do Estadual [21 de Junho de 1969]. O Santos só precisava de um empate para se sagrar campeão e foi o que conseguiu no Morumbi, casa do São Paulo (0-0). Antes do jogo, o Pelé dirigiu-se a mim, chamou-me ‘e aí, portuga?’, e pediu-me desculpa pelos nomes que me tinha chamado no outro jogo. Sinceramente, só me lembrava de ‘ladrão’, mas tudo bem. Aceitei, claro.”
E depois?
Nunca mais o vi à minha frente. Só na televisão.