Carlos Valente. “Até estrangeiros do Erasmus fazem-me perguntas sobre a foto com o Maradona”

You Talkin' To Me? 06/25/2020
Tovar FC

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Carlos Valente. “Até estrangeiros do Erasmus fazem-me perguntas sobre a foto com o Maradona”

Junho, dia 25. É um dia memorável. Em 1988, Marco van Basten marca aquele golo irrepetível, na final do Euro, vs URSS, vs Dasaev. Dois anos antes, em 1986, é Maradona quem sela o apuramento para a final do Mundial, com aqueles dois golos impressionantes à Bélgica, na Cidade do México. O 1:0 é um toque subtil à saída atarantada do guarda-redes Pfaff, o 2:0 é uma jogada à Maradona, concluída com classe.

Esse dia 25 é um mimo na RTP 1. Às 1900, começa a primeira meia-final, entre RFA e França. Um frango de Bats num livre de Brehme abre o caminho. Völler, completamente isolado e com a baliza aberta, depois de um chapéu sobre Bats, fixa o 2:0 já perto do fim. A RTP vai para comerciais. Depois o telejornal às 2100. Meia-hora é bom para noticiar o mundo. Segue-se a novela Corpo a Corpo, 77.º episódio. Às 2215, o Telemundo. E, às 2300, toma o Argentina vs Bélgica. O árbitro é o mexicano Sánchez. Os fiscais de linha chamam-se Méndez (Guatemala) e Valente (Portugal). Ah valente.

Carlos Alberto Silva Valente, 37 anos de idade, 42 jogos na 1.ª divisão. É ele o nosso representante do apito. É fiscal-de-linha de México-Bélgica, no dia 3 Junho, e RFA-Uruguai, 24 horas depois. “Do primeiro jogo, lembro-me dos três golos de cabeça, acabou 2-1 para o México. No outro.” E começa a rir-se. “Lembra-se do Briegel?” O defesa alemão? “Esse mesmo, jogava à esquerda. O gajo era um tronco de árvore, sabe? Um daqueles sobreiros que não conseguimos abraçar. Aos cinco minutos, levou cá uma pantufada, aquilo foi uma entrada para acabar com ele, uma violência atroz. O Uruguai desse Mundial era assim, demasiado faltoso. Quando vi esse lance do Briegel, lembrei-me automaticamente do Câmpora, um médio ofensivo uruguaio do Barreirense. Tinha cá um cabedal, o Câmpora. E um temperamento, vai lá vai. Era canela até ao pescoço.”

Adiante. No dia 9, arbitra o França-Hungria. Acaba-se a fase de grupos. Portugal arrepia caminho para casa, Valente continua em prova. É o fiscal-de-linha do Argentina-Uruguai, oitavos-de-final. “O árbitro foi o italiano Agnolin, presidente da SAD do Olhanense. Os uruguaios continuavam diabólicos, foi um jogo terrível, até pela rivalidade com a Argentina, mas o Agnolin impôs-se com categoria. Muito bem mesmo. Todos os árbitros são escolhidos a dedo, mas o Agnolin casou mesmo bem com argentinos e uruguaios. Segurou-os o tempo todo.”

Passam-se uns dias e aí está Carlos Valente na meia-final entre Argentina e Bélgica. Antes do baile de Maradona, há tempo para uma fotografia? “A ocasião só se proporcionou ali no corredor entre os balneários e o relvado porque o árbitro era mexicano e o delegado da FIFA era um chileno. Falaram com o Maradona e ele concordou em tirar uma fotografia muito rápida. A minha está exposta na loja. Sempre que alguém entra lá, é motivo de conversa. Até estrangeiros do Erasmus ficam a olhar e fazem-me perguntas várias. Nunca pensei que a fotografia pudesse ser foco de tanta atenção. Nunca, mesmo.”

Falta agora a dedicatória. Isso agora é tramado. Ou não. Maradona assume o cargo de seleccionador da Argentina para o Mundial-2010 e vai ver Di María à Luz. È a oportunidade ideal. Dia de Benfica-Olhanense para a Taça da Liga, em Janeiro 2009. O burburinho à volta de Maradona é o de sempre, colossal. “Entrámos à socapa, a confusão era muita. Ele não me reconheceu no momento, mas olhou para a fotografia, percebeu as parecenças, sorriu e assinou com uma caneta preta levada por mim.” Curiosidade do jogo dessa noite, Di María é suplente. “Entrou na segunda parte e marcou um golo do outro mundo.” Acaba 4:1, vitória do Benfica de Quique Flores.

E Maradona? Continua presente na memória. “Quatro anos depois do México-86, fui convocado para o Itália-90 e apitei o Argentina-Roménia em Nápoles. Que loucura. Nesse dia, a Argentina jogou em casa. É autêntico.” A conversa desvia-se ligeiramente. De Nápoles para o Barreiro, onde Carlos Valente convive com o futebol industrial dos anos 50. “Costumava ir ver o jogo atrás das balizas. Quando era o Carlos Gomes, o espetáculo estava mais que assegurado. Nunca vi ninguém igual. Nem antes nem depois. E vi-o fazer uma defesa. Mesmo ali à minha frente, uma defesa impossível num Cuf-Sporting. Ele defendeu um golo, digo isso com toda a sinceridade. Ainda hoje, por muito que faça contas de cabeça à velocidade da bola e ao posicionamento, estou por entender como é que ele defendeu aquilo. Era um fenómeno, sem igual. Conheci-o numa tasquinha ali perto da Rua das Pretas, em Lisboa, na companhia da sua namorada austríaca. Era um homem formidável. E um guarda-redes exemplar, defendia tudo.”

E lá vem outra memória saída do baú. “Um dia, vi-o defender tudo, tudo, tudo mas tudo. Foi um Barreirense-Sporting, importante para a decisão do título de campeão em 1958, salvo erro. O Sporting ganhou 1:0, golo de Joaquim José muito perto do fim. A malta protesta, diz que foi com mão. Digo-lhe, não sei se foi mão ou não e estava ali tão perto do lance. Sei que os jogadores do Barreirense protestaram imenso com o árbitro e, antes, o Carlos Gomes tinha defendido tudo. O José Augusto fez trinta por uma linha, o Faia também. Nada, nada, o Carlos Gomes encaixou tudo. Quando acabou o jogo, lembro-me perfeitamente de ver o Carlos Gomes correr para o abraço com o treinador de então, um uruguaio chamado [Enrique] Fernández. O Carlos Gomes ganhou esse jogo e o Sporting foi campeão.” Tal como a Argentina de Maradona em 1986.

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