Carlos Gomes, o político
Muito se fala do equipamento preto do russo Lev Yashine. Pois bem, o pioneiro nesse aspecto é o português Carlos Gomes, guarda-redes do lendário Sporting tetracampeão nacional, entre 1951 e 1954.
A sua qualidade é extraordinária, mas o mais desconcertante de Carlos Gomes
é a irreverência na saída dos postes para socar a bola, algo pouco habitual nos guarda-redes daquela época. Estreia-se pelo Sporting há 60 anos, num 8-1
ao Estoril, no Lumiar, para o campeonato nacional, como substituto do histórico Azevedo, cuja exibição na derrota (3-4) e estreia de Matateu (Belenenses), nas Salésias, deixa muito a desejar. Aos 36 anos de idade, já é tempo de Azevedo abdicar do posto e é o jovem Carlos Gomes (19) quem aparece em grande estilo, lançado pelo inglês Randolph Galloway.
Fixa-se como guarda-redes titular do Sporting (e também da selecção nacional) até 1958, altura em que Carlos Gomes arrisca uma aventura no estrangeiro, levado pelo treinador argentino Alejandro Scopelli para o Granada, de Espanha, numa transferência que envolve um milhão de pesetas para o Sporting.
Lá, monta um número de circo bem ao seu estilo. Confrontado com a imprensa pela falta de pagamento de salários, Carlos Gomes sai-se com esta: “No hay
diñero, no hay portero [guarda-redes].” À pergunta seguinte do jornalista, do
porquê de jogar vestido de preto, mais uma resposta ‘daquelas’: “Enquanto o
futebol português estiver entregue aos doutores, estou de luto.” Que doutor, chi-ça.
“A CUF empregava milhares de barreirenses e tinha – pois não! – a sua própria polícia. Só aqueles que aceitavam denunciar tudo quando viam e ouviam aos quadros superiores é que tinham uma vida desafogada. Os outros tinham uma situação económica e social catastrófica”
“Cresci a ver gente boa e trabalhadora a dobrar-se em vénias à pssagem de algum senhorito. Que triste palhaçada. E pobre trabalhador que não quisesse cumprimentar respeitosamente aqueles fantoches. Era trabalhador… desempregado”
“Tinha 14 anos quando começou a época dos desafios silenciosos. Època de enorme agitação social, a malta esperava os domingos com impaciência, sobretudo quando vinha o Sporting. Era hora e meia de desabafos sobre as injustiças semanais. O ambiente chegou a ser tal que o regime decretou que ninguém podia gritar durante os desafios. Para cada jogo, um destacamento da GNR instalava-se dentro do estádio, com as metralhadoras nas mãos e de frente para o público. Ai de quem falasse”
“O futebol sempre foi um jogo de pobres e para pobres, até que os fascistas descobriram que poderia servir os seus interesses. E ainda que no começo não deixassem os seus filhos praticar, o certo é que a elite foi-se apoderando do desporto-rei a pouco e pouco. Começou a ver-se com frequência uma excelência fazer-se fotografar com um jogador e, inclusive, abraçá-lo. Se fosse negro e das colóinias, ainda melhor”
“Jogador que fosse como eu, maluco, que contrariasse os patrões, era suspenso ou multado, segundo o interesse do clube; e os que tivessem menos categoria futebolística eram irradiados para exemplo da futura juventude. Chegava tarde ao treino? Multa. Não jogava bem? Multa. Não afzia uma vénia ao senhor presidente? Multa”
“Acabara de me estrear pelo Barreirense e um senhor veio ter comigo a felicitar-me por ter assinado pelo Sporting. Mas como assim Vossa Exma? Era mesmo assim, os clubes decidiam pelos jogadores, não havia respeito nenhum. Estava claríssimo que o meu futuro seria mais negro que o fumo de todas as chaminés da CUF”
“Pese a minha condição de júnior, nunca joguei com os juniores e treinava com os craques. De todos, salvo do Azevedo, guardo a melhor recordação. Era o primeiro a chegar aos treinos e o último a abandoná-lo. Apesar do meu ordenado ser insignificante – dava para as viagens de barco e o almoço –, sonhava ser tão grande como o Azevedo, meu ídolo de então, apesar de jamais me ter dirigido a palavra”
“Em dez anos de alegrias e tristezas e de leais serviços, nunca recebi um ordenado completo. Na maioria dos casos, não passava da metade e, inclusive, houve ocasiões em que, ao ir cobrar, verificava que o montante das multas era superior ao ordenado”
“Representei a selecção militar e fomos terceiros no Europeu, disputado na Bélgica. Obtive a mais alta condecoração a um soldado do tempo de paz: Serviços Distintos pela Pátria. Eu e os outros jogadores. Fomos então recebidos pelo Santos Costa, o Ministro da Defesa Nacional. Recebemos ordem para estarmos todos fardados e falarmos o menos possível. Foi uma triste jantarada. No final, todos em rigoroso sentido, ouvimos o discurso da praxe. Falava como se fossemos para a guerra no dia seguinte e, depois, ao dar-se conta da pesada atmosfera existente, decidiu brincar e contou-nos uma história futebolística idiota, qualquer coisa como um golo de penálti com a cabeça. Naquele silêncio impressionante, desatei a rir às gargalahadas. Os meus colegas auguravam o pior para mim, um Tarrafal ou coisa parecia. Mas o chefe da delegação dessa selecção era o director d’A Bola e ele assegurou-me protecção”
“A minha primeira grande viagem foi ao Brasil, salvo erro em 1952. Que país de contrastes e de belezas naturais. Ao lado do Maracanã, o maior estádio jamais construído no mundo, estavam as favelas cheias de caipiras, assassinos que matavam por encomenda a troco de mil cruzeiros. Nunca joguei no Maracanã com menos de 150 mil pessoas. Na minha terceira ou quarta visita ao Brasil, para participar numa Taça do Mundo entre clubes, a imprensa brasileira consagrou-me o melhor goleiro a pisar o país pela exibição no 0-0 com o Vasco da Gama”
“Devo ter sido o primeiro português a ir à URSS, quando os dois países não se falavam. Pouco se sabia se a URSS: era uma maravilha ou um inferno? Passava naquela altura por Lisboa a equipa brasileira do Vasco da Gama, a caminho de Moscovo. Como o guarda-redes deles teve de regressar de urgência ao Brasil e o campeonato português estava parado, convidaram-me para integrar a comitiva. Por razões que ainda hoje desconheço, tanto o Sporting como o Governo autorizaram-me, inscrito num passapoirte colectivo. Vi na URSS coisas maravilhosas, como o metro, o Kremlin por dentro e por fora e um povo amigável, simpático. Desgraçadamente também vi muita miséria, com milhares de pessoas mal vestidas e que usavam trapos em vez de sapatos. Poucos automóveis e velhos. Só do Kremlin é que saíam as belas carroçarias, estilo americanas. Uns vivem em barracas, outros em palácios. Para mim, a liberdade do povo soviético era uma enorme farsa e se é verdade que o capitalismo é metade a explorar a outra metade, ali uns tantos exploravam os demais. Fiquei convencido do que só uma nova fórmula de comunismo salvaria o comunismo”
“Em poucas horas, o aparelho propagandístico e fascista nacional pôs-se em marcha e punha na minha boca todos os horrores possíveis e imagináveis. Nem uma frase amável para os russos. Se voltasse à URSS, teria ido certamente para a Sibéria. Compreendi então o porquê da minha viagem. Se, diziam, ser eu comunista do Barreiro e falava assim, como seria aquilo na URSS?”
“Ir à capital de França e não dormir ou tentar dormir, pelo menos uma noite, com uma parisiense era inaceitável. Todos, desde o moralista do Exmo Senhor Chefe da Delegação até ao imoral do seu guarda-fredes procuravam, com maior ou menor descaro, levarmos alguma francesa para a cama”
“Uma das maiores multas que conquistei foi em Roma, depois de um jogo. Informaram-nos que iríamos ver o Papa no dia seguinte. Neguei-me a assistir e fiquei no quarto. Naquele tempo, só um caminho se oferecia aos pobres: servir a Igreja, que mandava nas escolas, na política, nos negócios, em tudo. Não, mais teimoso que um burro, fiquei no hotel. Apenas pelos companheiros soube dos detalhes da visita, dos beijinhos ao anel e do enorme esplendor e riqueza dos interiores. Que contraste com os bairros de lata deste mundo de Deus”
“Uma das mais longas viagens que fiz levou-me a Angola, Moçambique, África do Sul, Congo Belga, etc. Daqueles inesquecíveis dois meses, verifiquei por terras africanas problemas tão polémicos de dominação branaca que desgraçadamente ainda hoje são actuais. Em alguns pontos, uma pandilha de brancos sem escrúpulos comanda milhões de negros, pela lei do mais forte. Uma das impressões mais desagradáveis foi ver com os meus olhos, e não com os do fascismo, como os colonos brancos tratavam a raça negra. Para um país católico como o nosso…”
“Contra tudo e contra todos, regressi à selecção nacional e o moçambicano Costa Pereira teve de se contentar com a reserva. Eu e o Costa Pereira tinhamos uma grande rivalidade e não muita estima pessoal. E; para ajudar, recordo uma vez, a caminho do Jamor, levantei-me do assento e apanhei o microfone. Perguntei aos companheiros: ‘Quem é o melhor guarda-fredes português?’ A pergunta era embaraçosa e o silêncio era total. Dei a resposta ‘é o Costa Pereira’. Novo silêncio. E rematei: ‘Depois de mim, claro está’. Só o moçambicano não achou graça”
“Um dos treinadores mais conceituados que passaram pelo Sporting foi o Alejandro Scopelli. Mas como o Sporting ia em segundo lugar, atrás do Benfica, os patrões arranjaram forma de o despedir. Era impossível um clube tão digno como o Sporting ir atrás de um clube popular como o Benfica. Então convocou-se uma assembleia entre a direcção e os jogadores. Lcaro, alguns jogadores já tinham sido contactados pelo presidente a fim de preparar democraticamente a saída de Scopelli. A pergunta era sempre a mesma: ‘Não achas mais conveniente demitir o treinador?’ Quando chegou a minha vez, disse ‘Não, não, senhores; para mim, o treinador é dos melhores que conheci, O que sucede é que está rodeado de alguns directores-técnicos que o querem dirigir e fazer à sua maneira’. A reacção foi imediata. O presidente, mais corado que um tomate, num dos seus famoso arrebatamentos de cólera de menino mimado, levantou-se e gritou-me ‘rua’”
“Saí do Sporting, finalmente, e assinei pelo Granada, da 1.ª divisão espanhola. Quem me levou foi o Scopelli. Recebi rapidamente algumas alcunhas. Por exemplo, quando atirava a bola de baliza a baliza era a Renfe (a CP espanhola). Como escrevia para o jornal A Bola, aproveitava para tear fogo e exercer a minha pequena vingança nos directores do Sporting. Era a guerra à distância, valia tudo. «Porque te vestes de preto? Era uma pergunta frequente. E a resposta, como tantas outras, causava enorme alegria nos meus oprimidos compatriotas: ‘Visto-me de preto porque enquanto o futebol nacional estiver nas mãos dos doutores está de luto”
“Era o jogo do tudo ou nada entre Granada e Sporting Gijón. Quem perdesse, descia à 2.ª divisão. Quem ganhasse, ainda ia ao play-off. Já não jogava há um mês e pedi ao treinador Kalmar para reentar na equipa. Ele aceitou logo, mas não pintava grande coisa. Tive de convencer também o presidente. Fui aceite. Para alegrar o ambiente, fiz uma aposta com o tesoureiro: pagaria 5000 pesetas por cada golo sofrido e receberia 20 mil pela baliza a zeros. Aquilo reanimou-nos e acabámos por tomar uns copos no ‘Manueles’. Num encontro memorável, que apelidei de ‘O Milagre de Gijón’, ganhámos 1-0”
“Quando jogava no Oviedo, o Sporting quis negociar o meu passe e convidei o clube espanhol para jogar em Lisboa, de forma a acelerar as negociações. Disse ao Oviedo que não, só jogaria em Lisboa se fosse com o Benfica. Assim foi. Na Luz, perdemos 1-0. Para não perder mais tempo, regressei de imediato às Astúrias, onde me informaram quer a minha companheira tinha sido levada a uma clínica, com um aborto natural e inexplicável (sou contrário ao aborto, ainda que compreenda que, numa sociedade tão desigual e injusta, muitas vezes não há remédio)” “Foram dois bons anos no Oviedo, só que apercebi-me que os meus dias estavam contados com a crescente realização dos jogos nocturnos. A miopia, já por mim constatada, ia aumentando e era terrível à noite. Naquele desafio específico, em Bilbao, sofri sete golos hermosos, o que deu origem a que Vázquez Prada, numa crónica humorística, me tenha chamado D. Carlos Goles em vez de D. Carlos Gomes”