Benfica-Sporting, o dérbi do absurdo

Kali Ma Mais 07/25/2020
Tovar FC

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Benfica-Sporting, o dérbi do absurdo

Um dérbi é um dérbi e vice-versa. Além de lugar comum do mais banal que há, nem sempre é verdade. Como o Benfica-Sporting em Abril de 1995 que se estende incrivelmente por mais dois meses, por teimosia da federação portuguesa de futebol. Um cartão vermelho a Caniggia está na origem do irritante imbróglio, só resolvido a eito pela FIFA. Para felicidade do árbitro Jorge Coroado.

Preud’homme erra (e só um artista como Balakov é que o apanha desprevenido para fazer um chapéu de aba larga tão divinal como perfeito). Marco Aurélio e João Vieira Pinto lesionam-se no mesmo lance e saem aos 21 minutos. Problema: o Benfica esgota aí as substituições (que, na altura, são só duas) porque Artur Jorge já tirara Abel Xavier por opção (entra Edilson), numa altura em que já há 2-0 para o Sporting na Luz, com golos búlgaros – além do monumento assinado por Balakov, um pontapé do meio da rua de Iordanov. Mas que raio?!

Pois é, que noite. O Sporting de Queiroz ganha pela segunda vez ao Benfica no campeonato (1-0 na primeira volta, cortesia de Amunike) mas isso não interessa nada para esta história. Nem o golo de Dimas. Nem o resultado final (2-1). O que fica para a história desse dérbi é a expulsão de Claudio Caniggia, por ordem do árbitro Jorge Coroado, que motiva trocas e baldrocas e até um jogo de repetição promovido pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e posteriormente anulado pela FIFA. * (atenção ao asterisco)

Pronto, pronto, já passou. E ainda hoje Jorge Coroado não sabe se há-de rir ou chorar. “Porque tudo isto é kafkiano”, justifica o árbitro desse jogo, que sofre o inimaginável. Das mãos de desconhecidos, adeptos do Benfica. Mas antes disso, vamos contextualizar: no dia 30 Abril 1995, à passagem do 80.º minuto, o Sporting ganha 2-1 ao Benfica, no esquisito 10×10 (Veloso e Naybet vêem o cartão vermelho aos 73’ e 75’, respectivamente). É aí que houve uma falta duríssima de Sá Pinto sobre Tavares, perto da área do Sporting. Jorge Coroado assinala falta mas gera-se o enésimo sururu, com empurrões vários. Às tantas, Caniggia mete-se com Sá Pinto e é aí que Coroado intervém. “A ideia é dar um amarelo a cada, mas o Caniggia insulta-me. Chama-me ‘filho da p***’ e manda-me para a ‘p*** que te pariu’. Dei-lhe o amarelo. Depois ouvi isso e dei-lhe vermelho directo. O que as pessoas pensaram foi que eu me tinha enganado. Que eu julgava que ele já tinha amarelo e que portanto foi segundo amarelo. Nada disso. Foi amarelo, o primeiro dele naquele jogo, e depois o vermelho directo, porque não aceito insultos de ninguém. Em português ou em castelhano.”

E depois? “Na cabina do árbitro, o sr. Gaspar Ramos [dirigente do Benfica] estava muito nervoso e incontrolável. Pedi-lhe então que se retirasse. É verdade que aquela casa [Estádio da Luz] era dele, e ele até era delegado ao jogo, pelo que podia estar ali mas não naquele estado, mas aquele espaço era meu.” A FPF reagiu e instaurou um processo ao árbitro, aos jogadores, ao jogo. A expulsão de Caniggia não ficou por ali. O avançado argentino disse nada ter dito e as imagens televisivas confirmavam isso mesmo, embora Caniggia aparecesse tapado pela cabeça de Isaías por uns segundos. O processo avançou e quem foi o relator? Sampaio Nora, do Conselho de Justiça da FPF, que esteve, anos depois, na lista de Vale e Azevedo para as presidenciais do Benfica. “Mal entrei na sala para depor, ele disse-me para estar tranquilo porque não gostava de mim.” Entrada a pés juntos? “É como lhe digo: já se passaram tantos anos que ainda nem sei se hei-de rir ou de chorar. Foi um processo kafkiano.”

E os jogadores, colaboraram? “Os do Benfica defenderam a sua dama. Do Sporting, só houve um que me defendeu e disse o que tinha ouvido. Foi o Sá Pinto. Os outros encolheram-se. Como o Marco Aurélio, aquele central.” E Jorge Coroado começa a falar com sotaque brasileiro. “Ele disse-me: ‘Eu até ajudava você Coroado mas não sei o dia de amanhã, né?” Resumindo:  “eles tinham medo de dizer o quer que fosse porque isso hipotecava o futuro deles.” Concluindo: “a FPF anulou esse jogo e promoveu um outro, de repetição, no Restelo, que a FIFA desvalorizou. Nas contas finais desse campeonato 1994-95, o jogo que conta é o meu.” Que isso fique claro.

E Caniggia? “Olhe, só o vi mais uma vez, na minha despedida internacional. Para a pré-eliminatória da Liga dos Campeões, num jogo entre Rangers e Maribor, em Glasgow [1 Agosto 2001]. Ele viu-me e deu-me a sensação de estar assustado. Falámos um pouco, ele disse-me que nunca quis criar problemas e eu disse-lhe para estar tranquilo. Nessa noite, ele marcou dois golos [3-1] e não o expulsei.”

Ok, obrigado, Jorge Coroado. O assunto fica arrumado. Afinal, só mais uma pergunta: Sofreu muito com esse episódio? “Nada de especial. Fui ameaçado de morte com uma pistola e depois com uma faca, à porta do meu emprego [bancário na Rua José Malhoa], de manhãzinha, antes da 8h30. Foram pequenos-almoços diferentes. Eram adeptos de cabeça perdida que queriam fazer justiça com as próprias mãos. O da pistola só me queria assustar, o da faca tem tou atingir-me mas falhou o alvo e estragou-me o casaco. A sorte dele é que conseguiu fugir. O azar é que lhe fiquei com faca.”

Adiante. * (atenção ao asterisco) A FPF está do lado do Benfica e promove um terceiro dérbi, a 14 Junho, no Restelo, já depois do fim do campeonato. É o dérbi do absurdo, está mais visto. Mais absurdo que este de 2020, sem público nem nada para defender, além do terceiro lugar do Sporting. Em 1995, a decisão de ir avante com o jogo é simplesmente medonha. Que o diga a FIFA. Os onzes do descontentamento, ei-los sob a arbitragem do portuense João Mesquita

Neno; Veloso, Paulo Madeira, Paulo Pereira e Dimas; Tavares, Hélder, Paulo Bento e Kenedy; Edilson (Akwá, 39) e Stanic Treinador Artur Jorge

Lemajic; Nélson, Oceano, Vujacic e Nuno Valente; Carlos Xavier e Filipe; Chiquinho Conde e Sá Pinto; Dani (Figo, 46); Juskowiak (Pacheco, 57) Treinador Carlos Queiroz

Marcadores 1-0 Edilson; 2-0 Edilson

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