Portimonense ou Aves, eis a questão

Kali Ma Mais 07/26/2020
Tovar FC

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Portimonense ou Aves, eis a questão

Saltillo. Poucos sabem onde é exactamente no imenso mapa do México e é daquelas palavras que nos fazem revivar os olhos, juntar as sobracelhas e, sobretudo, enrugar a testa. Saltillo é o primeiro grande, enorme escândalo da selecção nacional, em pleno Mundial-86. Há de tudo, a começar e a acabar na mesma palavra: desorganização. Desde o pormenor mais corriqueiro, como o esquecimento da mudança de corrente eléctrica de um país para o outro (de 220 para 110 volts), ao equívoco mais absurdo, como o doping de Veloso, a experiência de Portugal em Saltillo é uma pérola. Estragada, está bom de ver. Pelo meio, há jogos particulares cancelados, campos de treino sem condições, anúncios de greves e discussões de faca e alguidar. Como diria Futre, “a única coisa positiva do México foi a união entre os jogadores do FC Porto e os do Benfica.” Contado, nem se acredita. Mas vamos tentar. A começar por aqui.

Penafiel (5 golos), Aves (1), Chaves (2), Braga (1), Académica (0), Belenenses (1), Portimonense (0), Boavista (0), Marítimo (2), Vitória SC (0), Vitória FC (1), Covilhã (1), Benfica (0), Salgueiros (1), Penafiel (0), Aves (1), Chaves (0), Braga (3), Académica (1), Belenenses (0), Portimonense (2), Boavista (1), FC Porto (0), Marítimo (0), Vitória SC (0), Vitória FC (2), Covilhã (3), Benfica (1) e Salgueiros (1). Mas que grande salganhada, o que vem a ser isto?

Números, tão-só números. Os de Manuel Fernandes, o homem dos três ofícios no Sporting: avançado, capitão e goleador. A isto junte-se um título, o de melhor marcador do campeonato nacional 1985/86, com mais golos (30) que jogos (29). Mesmo assim, isso não lhe garante um lugar nos 22 convocados de José Torres no Mundial-86, no México. Estamos a 19 de Abril de 1986. Portugal está na fase final de um Mundial 20 anos depois e cai o pano sobre a 1.ª divisão. O Porto, cidade, está em festa. O FC Porto ganha 4-2 ao Covilhã e sagra-se campeão nacional (no ano seguinte, seria campeão europeu), enquanto o Boavista vence o Benfica por 1-0 e vai à Taça UEFA. Em Lisboa, o Sporting de Manuel José derrota o Salgueiros de Humberto Coelho por 2-1, com mais um golo de Manuel Fernandes e interrompe uma série de três Botas de Prata seguidas de Gomes. Nesse mesmo dia, o rei do golo recebe a ingrata notícia da exclusão do Mundial. É a escolha do seleccionador José Torres. De pontas-de-lança, a selecção leva a dupla Gomes (20 golos pelo FC Porto em 1985-86) e Rui Águas (10 pelo Benfica). Juntos valem tanto como Manuel Fernandes.  A favor do avançado-capitão-goleador do Sporting, os 30 golos. Contra ele, a idade (34 anos) e uma determinada resposta.

“Na primeira jornada”, conta Manel, “o Sporting ganhou 6-0 ao Penafiel e eu marquei cinco golos. Fui convidado pela RTP para participar no ‘Domingo Desportivo’. Uma das últimas perguntas do comentador foi o que eu achava da selecção. Disse então que já estava a caminho dos 35 anos e que seria talvez a hora de dar oportunidade aos mais jovens. Mas disse sem segundas intenções. Bom, daí em diante aproveitaram-se disso para justificar a minha ausência.” E à medida que ia marcando golos? “Nunca mais fui convocado pelo José Torres. E o adjunto dele era o Marinho, meu grande amigo, que jogou comigo no Sporting. Houve uma reunião com os três em que todos nos sentámos e chegámos a um entendimento, mas as convocatórias iam saindo e eu nunca fazia parte delas. Portanto, quando chegou aquele dia [19 de Abril] em que me afirmei como melhor marcador do campeonato [30 golos contra 25 de Paulinho Cascavel, do Vitória de Guimarães], já sabia do meu destino. Apesar de o Manuel José [treinador do Sporting] ter dito publicamente que eu devia ir ao Mundial e de eu mesmo ter também dito que estava sempre disponível para ajudar o país, como, aliás, se provou depois do Mundial, em que joguei por Portugal [cinco jogos, um golo no 1-1 em Berna, com a Suíça]”

E como é que viu os jogos, na televisão? “O Sporting, incomodado com a minha ausência, pagou-me uma viagem ao México! Lá vi o jogo de abertura [1-1 entre Itália e Bulgária], os três de Portugal e depois ainda aproveitei para fazer férias perto de Guadalajara.” Escapa-se de Saltillo. Mas o que é isso? Uma grande salganhada. Que não se explica por números.

Por actos, só se explica por actos. Vamos a eles. Comecemos por 1984, ano em que a selecção acaba com uma longa travessia no deserto e qualifica-se para o Europeu de França, à custa de um penálti fora da área de Chalana, apitado por um francês, vs. URSS. Na cobrança, o enorme Jordão engana o grande Dasaev. Vive la France. No Euro, Portugal consegue o brilharete de chegar às meias-finais. Em Marselha, o mesmo Jordão silencia o Velódrome com um golo de cabeça. No prolongamento, mais Jordão. Com um remate picado, 2-1 para Portugal. Uh la la. A França reage. Primeiro por Domergue (2-2), depois por Platini (3-2), no último minuto. Eliminados, os portugueses voltam para casa e recebem uma estrondosa ovação no Aeroporto da Portela. Sonhemos agora com o Mundial-86. O grupo de qualificação reúne RFA, Checoslováquia, Suécia e Malta (só a RFA está presente no Euro-84). Só vai ao México quem acaba nos dois primeiros lugares. A 180 minutos do fim, Portugal tem de ganhar os dois jogos e ainda esperar pela derrota da Suécia na Checoslováquia para carimbar o passaporte. A missão antevê-se complicada, quase impossível. Se é um dado adquirido ganhar à Malta em casa, já repetir o resultado em Estugarda é uma miragem.

First things first, como se costuma dizer. Vamos lá ao Portugal-Malta na Luz. Sem jogar nada bem, Portugal adianta-se no marcador uma vez. E depois outra, 2-1. Aos 79 minutos, De Giorgio faz o empate e cai um balde de água fria sobre todos nós. E agora? Aos 82’, Litos cruza, o guarda-redes Bonello sai-se mal e Gomes aproveita a benesse para fixar o 3-2. Na conferência de imprensa, o seleccionador José Torres afasta o mau presságio com uma singular declaração: “Embora só um milagre nos leve ao México, a qualificação ainda é possível matematicamente; deixem-me sonhar.”

O sonho leva-nos à RFA, onde a selecção local nunca perdera em fases de apuramento, seja Europeus ou Mundiais. Até àquele 16 de Outubro. Antes do jogo, a boa notícia da vitória checoslovaca sobre os suecos. Pronto, “basta-nos” ganhar. Franz Beckenbauer deixa um aviso premonitório. “Tenho dito desde o sorteio que Portugal é o nosso maior rival, mais forte que Suécia e Checoslováquia. Gosto muito do Gomes, um avançado oportuno. Se o mantivermos longe da nossa área e sem lhe fazer faltas, estaremos bem mais tranquilos. O quarteto defensivo é óptimo. Entendem-se bem, o que é natural porque jogam juntos no mesmo clube há muito muito tempo. Claro que há problema: Bento, por exemplo, continua a revelar problemas nos cruzamentos curtos sobre a baliza. Vamos tentar tirar partido desse handicap. E ainda há Carlos Manuel. Sabe marcar os livres com colocação e força, é dos três melhores da Europa. É preciso cuidado com ele.”

Pois é. Seja de bola parada ou corrida. Aos 53 minutos, Carlos Manuel ganha um ressalto no seu meio-campo e galga terreno. Dá um passo, dois, três, quatro, cinco. Às tantas, aproxima-se da área e decide-se pelo pontapé. Será conhecido como o pontapé de Estugarda, porque a bola descreve um arco da velha e entra pela baliza dentro, lá mesmo onde a coruja dorme. Schumacher só a vê com os olhos, nem esboça uma reacção. É o 1-0 definitivo, é o passe para o Mundial do México. Nascem aqui os Infantes, alcunha dada aos jogadores através de sufrágio popular.

Da qualificação até à estreia no Mundial, a selecção joga com Finlândia (1-1 em Leiria), Luxemburgo (2-0 em Portimão) e RDA (1-3 em Braga). Três jogos, um em Janeiro e dois em Fevereiro. Só. E este só é mais uma acha para a fogueira de Saltillo. Tudo nos corre mal. Ou quase tudo. Começa-se pela tal lista dos convocados. A tal sem Manuel Fernandes. Nem Jordão, outro do Sporting. Vai daí, o presidente leonino João Rocha pede a demissão do seleccionador José Torres por falta de pulso. A indignação fica-se por aí. Nem pode ir mais além. Porque os problemas acumulam-se a uma velocidade vertiginosa, uns atrás dos outros.

O primeiro é a exclusão de Veloso, que acusara positivo de esteróides anabolisantes, uma substância ausente na lista de proibições da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e bem presente na da FIFA. Pormenor: Veloso toma o dito cujo, que serve para a recuperação rápida de um enfraquecimento muscular, num jogo com o Marítimo, a 12 de Janeiro. Quase cinco meses depois, é isto. Bom, adiante. O lateral benfiquista já nem viaja com a comitiva, a 10 de Maio. Daí que assista no dia seguinte ao nascimento do filho Miguel Luís Pinto Veloso – sim, esse mesmo, o Miguel Veloso, que nasce com 4.100 quilos. No lugar de Veloso, o plano B começa mesmo por B. Chama-se Bandeirinha (da Académica, a caminho do FC Porto).

Acordado a meio da noite para substituir Veloso (cuja contra-análise em Madrid dá negativo), Bandeirinha junta-se aos restantes companheiros no Aeroporto da Portela às 14 horas e inicia-se aí uma viagem inenarrável, com quatro escalas até chegar a Saltillo. A primeira delas todas é em Frankfurt, onde os jogadores pernoitam e mandam as primeiras bocas sobre o esticão desnecessário. Na manhã seguinte, o check-out do hotel não é totalmente pacífico. Muitos infantes recusam-se a pagar os 14 marcos extra, verba cobrada pela passagem de um dos filmes eróticos dos três canais de vídeo. As instruções são bem claras: os primeiros dez minutos grátis, o resto é pago. O facto gera polémica e não é solucionado. Sigaaaaaa.

De Frankfurt para Dallas. Depois, ainda no mesmo dia, Dallas-Cidade do México, onde a selecção é proibida de sair da sala dos voos em trânsito. Nessa escala de 50 minutos, vale a boa disposição de Bento mais Oliveira (o ex-jogador é enviado-especial da Rádio Renascença), sempre a pregar partidas às hospedeiras. Da capital mexicana, siga viagem para Monterrey. Está quase quase quase no fim. Só mais uma. Para descomprimir, 87 quilómetros de autocarro rumo a Saltillo. Ao todo, 39 horas de viagem, 24 das quais consecutivas e 16 de avião. “Quem inventou esta viagem devia ser condenado à pena capital” é o desabafo mais comum. Todos falam disto. Todos, menos Futre – o extremo portista é o único que dorme o caminho todo.

Abram os olhos, chegámos a Saltillo, uma cidade fundada pelo açoriano Alberto Cano em 1504. Quem percorre sem pressas (porque o tempo está parado e desconhece-se o stress), nota um paralelismo entre Saltillo e o faroeste, pelo elevado número de saloons e de pessoas a andar de sombrero, chapéu à cowboy e botas. É aqui que tudo dá para o torto, a começar pelo campo (inclinado) de treinos no novo complexo desportivo pertence ao sindicato dos professores de Saltillo, situado a dois quilómetros do hotel. Atrás de uma das balizas do campo número dois, a 40D que liga Monterrey e Saltillo. Quando há um remate menos certeiro, a bola saltita no alcatrão da auto-estrada (momentaneamente cortada ao trânsito por razões óbvias). No primeiro treino, por exemplo, é o capitão quem salta a vedação, finta os mais de 20 polícias armados, atravessa a estrada e vai buscar a bola. Como se fosse um miúdo. “Ò Bento, vê lá se não és atropelado”, graceja Carlos Manuel.

Por falar nele, o herói de Estugarda lesiona-se na coxa direita no primeiro dia e é observado pelo médico Camacho Vieira. A observação é à base de apalpadelas. Então? Os equipamentos médicos da selecção ainda não moram em Saltillo. Então? Alguém se esquece que a corrente no México é de 110 volts, e não de 200 como aqui em Portugal. Como tal, há um atraso inevitável no transporte da tecnologia. A este episódio caricato junte-se outro, no terceiro dia de treinos, quando a FPF encontra um campo sem buracos, ainda que pelado, na Serra Madreo – situada na cordilheira da montanha a recortar o hotel e a própria cidade de Saltillo. À espera dos jogadores, uns monges adoráveis e sorridentes. De repente, pedem 400 dólares (60 contos) pelo aluguer do campo. A federação diz não. Eles baixam para 220, 200, 120, 100. Enfim, zero. Amândio de Carvalho, coordenador da selecção, mantém-se inflexível. “Não pagamos por uma questão de princípio.” O treino é então transformado em passeio a 2300 metros de altitude. Segue-se o regresso ao hotel.

O hotel, ai o hotel. É uma fortaleza, com seguranças fortemente armados, sobretudo à noite, onde ninguém está autorizado a meter o pé em ramo verde. De dia, é bem diferente. Para pior. Depressa se torna uma via verde para os amigos do alheio e as raparigas da terra. Amigos do alheio? Si señor, o representante oficial da FIFA para acompanhar Portugal é um mentiroso de primeira, que mais tarde viria a ser preso por roubo a elementos da selecção. Há mais, muito mais neste rodeo de emoções. Futre é disso testemunha: “Quando meti a chave à porta, vi um mexicano com o cartão de segurança o peito a remexer a mala do Sousa [seu parceiro do quarto 120] e a verdade é que me desapareceram 2000 pesos.”

Raparigas da terra? Yes ma’am. Vai daí, Bento sente necessidade de defender o grupo desse tipo de notícias. “A imprensa tem dito mentiras sobre o nosso estágio, sobre os atletas terem travado conhecimento com belas mulheres mexicanas. Também corre a notícia de que os seguranças do hotel fumam marijuana e as pessoas que lêem os jornais podem pensar que os jogadores andam metidos nisso.” Para acabar, um recado: “Ou as pessoas acabam com essas notícias ou não há mais entrevistas dos jogadores para ninguém.”

À falta de condições de trabalho, acrescem-se outras também graves, como a falta de adversários dignos para preparar a selecção. Durante duas semanas, de 11 a 25 de Maio, os jornais escrevem diariamente a mesma lenga-lenga sobre a perspectiva de jogos particulares. Primeiro, quatro. Depois, três. A seguir, dois. Só se faz um. E muito mal amanhado. Fora aquele agendado para o dia 19, em Monterrey. A selecção viaja de autocarro, entra no balneário e equipa-se para finalmente jogar. O adversário chama-se Clube Nova, uma equipa amadora. Que não chega a entrar em campo. “Ainda hoje de manhã liguei para cá a confirmar o jogo”, desabafa o atanrantado Amândio de Carvalho. “Não tenho explicação para isto”.

Iñigo Armendaiz, um dos directores do comité organizador do Mundial e encarregue de marcar esse particular, diz de sua justiça. “A selecção portuguesa veio cá no domingo e não treinou porque se queixou do campo sem condições. Por isso, pensei que não voltaria mais. Como não recebi nenhuma chamada durante o dia de ontem, assumi que não vinham e desmarquei o jogo.” Que caldeirada. Os jogadores portugueses fazem o de sempre: 11 contra 11, com José Torres a apitar. Do lado de fora, duas centenas de espectadores boquiabertos e uns quantos jornalistas mexicanos, igualmente espantados com a ausência de coerência em tudo aquilo.

No dia 22 de Maio, urraahhhhh, um jogo particular. Ou o mais parecido a. Os onze jogadores vestem a camisola do Clube Nova e são tão-só a equipa de empregados da indústria hoteleira de Saltillo. É para lá de amadora. É uma palhaçada de sentido único. Entre os 11 golos da selecção, os jogadores rebolam-se a rir e até brincam com os jornalistas, de pé, perto da linha lateral. É um gozo tremendo. Só para a história, marcam Gomes, Sousa, Sobrinho, Frederico (dois cada), Futre, André e Jaime Pacheco (um). Nesse dia, o Chile oferece-se para defrontar Portugal e pede 1200 contos de cachet. Finalmente um adversário de nível. Mas a federação recusa surpreendentemente. A FPF não tem dinheiro. É o fim.

Menos de 24 depois, os jogadores rebelam-se e abre-se a guerra da publicidade nos fatos de treino e nas camisolas. A federação dá quatro contos de diária, os jogadores querem sete. A federação paga 300 contos por cada jogo da fase de grupos, os jogadores pedem 700. A federação concede 300 contos dos 26 mil da publicidade da Olivedesportos, os jogadores torcem o nariz – além de a percentagem ser mínima para quem representa realmente o país, o valor total consegue ser inferior ao do Euro-84.

Há mais: os jogadores desejam 1500 contos pelo primeiro ou segundo lugar do grupo, a federação promete apenas 1200; se o terceiro lugar valer eventualmente a qualificação, há um desencontro de valores entre a oferta (1000) e o desejado (1200). O comunicado é lido pelo capitão Bento e assume a ruptura com Amândio de Carvalho. “Exigimos a presença do senhor presidente Antero da Silva Resende até terça-feira, a fim de conseguirmos o diálogo. Caso não seja atendida a nossa solicitação, deixaremos de cumprir os treinos marcados pela federação.”

Meu dito, meu feito. Os jogadores já não comparecem a um jogo-treino marcado com um misto de juniores e suplente do Tigres, equipa da 1ª divisão mexicana. Estoira a bomba, com repercussões na Assembleia da República. Manuel Alegre defende os jogadores na sua qualidade de trabalhadores e envia-lhes um telegrama de solidaridade, ao mesmo tempo que lhes pede compromisso e bom senso, tal como, aliás, o presidente Mário Soares. Os jogadores abortam a greve e voltam aos treinos no dia seguinte.

Diz Bento: “O assunto fica, por agora, encerrado. Vamos dedicar-nos por inteiro aos treinos e jogos do Mundial. Mas lamentamos a persistente falta de diálogo com a federação e, a partir de agora, é o seleccionador José Torres o nosso elo. Amândio de Carvalho está fora deste plano. Não somos crianças a quem se aplicam reguadas nem mentecaptos que nada sabemos.” De volta aos treinos, a selecção ganha 4-0 às reservas do Monterrey, com golos de Gomes (2), Carlos Manuel e Bandeirinha, num jogo em que se confirma Álvaro como lateral-direito e Futre como suplente.

Na estreia do Mundial, com a Inglaterra de Bobby Robson, um golo do inevitável Carlos Manuel derruba o pessimismo e afasta as críticas. Momentaneamente. Em Lisboa, o presidente Mário Soares assiste ao 1-0 na companhia de cinco presidentes de clubes, entre João Rocha (Sporting), José da Silva (Belenenses), Valentim Loureiro (Boavista), Fernando Martins (Benfica) e Jorge Anjinho (Académica). De todos eles, só Fernando Martins adivinha o resultado e até o marcador. É de homem. Sentado na cadeira, à frente da televisão, Mário Soares dá um espectáculo dentro do próprio espectáculo. “Quem é este Carlos Manuel, é do Benfica?”. “Formidável Bento, caramba, que reflexos.” “Este ponta-direita dos ingleses é terrível.” “Este árbitro é um bocado velhote.” “Estão a jogar muito à defesa. Quando se joga muito à defesa, está tudo tramado. A melhor táctica é o ataque.”

Passa um dia. Só um. E cai o Carmo e a Trindade. Mais Bento. No dia 5 de Junho, num lance casual com José António durante o aquecimento, o capitão da selecção cai mal no Estádio Unversitário e não mais se levanta. A gravidade da lesão é confirmada por um exame radiológico no hospital local: fractura do perónio da perna esquerda e adeus Mundial. Uns minutos antes da maldita queda, Bento elogiara o relvado do Universitário, de superior qualidade ao do Tecnológico, ainda que irregular. Sem Bento, a baliza portuguesa está entregue a Damas. Que não fala aos jornalistas no dia da lesão do seu companheiro de quarto. “Agora quero ir dormir sossegado para amanhã poder falar.”

No pequeno-almoço, as palavras de Damas saem-lhe a custo e nada de bom antevêem. “O meu último jogo a sério na selecção é de 1975, com a Inglaterra. Daí para cá, fui para Espanha e só fiz uns particulares.” A federação equaciona chamar outro guarda-redes para completar os 22 (a dúvida balança entre Silvino/Aves e Vital/Portimonense), mas só o faz se ganharmos à Polónia. Como tal não acontece, cortesia Smolarek (1-0), essa quarta opção para a baliza nunca desembarca em Saltillo. Porque a selecção só lá dura mais um jogo, o do adeus, com o embaraçoso 3-1 de Marrocos na última jornada do grupo F.

A chegada ao aeroporto é um mimo. Começa Futre: “Aquilo lá no México foi mau para nós e para o futebol português. Torres tentou destruir-me psicologicamente, ao fazer-me entrar na segunda parte para o lugar de Gomes. Não sou goleador nem arma secreta, devia estar em campo todo o tempo.” Continua Damas. “Fomos 22, voltámos 22, aconteceu futebol. O dr. Silva Resende? Já está em Lisboa desde sábado. Foi coerente: quem nunca esteve ao nosso lado, não veio no nosso avião.” Carlos Manuel também dá uma bicada no presidente da federação. “Vejam lá bem que ele nunca perguntou ao Bento se estava melhor em nenhum dos dias nem nunca foi dar-nos uma palavra antes ou a seguir às derrotas com Polónia e Marrocos. A única coisa que fez foi dar-nos os parabéns pelo 1-0 à Inglaterra.”

De muletas e de cigarro na ponta do dedo, Bento faz futurologia. “A ver se regresso aos relvados em Agosto. Nessa altura, espero que tudo isto esteja clarificado. Quando todos abrirem o livro, vai ser bonito vai.” Álvaro, o improvisado lateral-direito. “Já não jogava à direita há cinco anos, desde os tempos da Académica.” Diamantino é o último indignado. “É natural que o público esteja baralhado com tanta informação contraditória. O fundamental é saber-se que os jogadores têm miolos, não usam só os pés. Mas existem pessoas que imaginam um jogador de futebol estúpido encartado.” E o seleccionador José Torres? “Não digo uma palavra, não falo para ninguém antes de me atirarem com todos os tomates que tenham por aí.”

Fim da história. Torres sai da selecção, Carlos Manuel e Diamantino nunca mais representam o país, castigados pelo presidente Silva Resende, que os apelidara ainda no México de irresponsáveis. Bento, esse, só volta aos relvados em Maio de 1987, quase um ano depois.

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