Great Scott #80: Qual é o último jogo de Otto Glória pela selecção nacional?

Great Scott Mais 07/27/2020
Tovar FC

author:

Great Scott #80: Qual é o último jogo de Otto Glória pela selecção nacional?

Portugal 5 Marítimo 0

A Madeira é um mundo, um viveiro. De jogadores, como Pinga e Ronaldo. E também de equipas. Três delas entram na 1ª divisão, a primeira de todas é o Marítimo, em 1977-78. Que também é aquela que dignifica o arquipélago com a estreia nas competições europeias, em 1993-94. Pelo meio, o Marítimo causa sensação em Portugal com uma viagem à África do Sul, no tempo de Apartheid.

A bronca é despoletada pelo jornal desportivo “Record”, na edição de 15 Junho 1983. A equipa do Marítimo mais uma selecção nacional de futebol, treinada pelo brasileiro Otto Glória, aceitam o convite do empresário Fausto Pires (ex-dirigente do Benfica) e contrariam frontalmente o enunciado da ONU, de pronto acatado por todas as federações (FIFA na primeira linha) no que diz respeito à ausência de relações desportivas com a África do Sul. É um jogo fantasma, porque tanto a federação portuguesa de futebol (liderada por Silva Resende) como a direcção do Marítimo desmentem categoricamente a autorização da viagem. O problema é que há fotos, muitas. E documentos, muitos. Sem esquecer os oito mil espectadores no Estádio Rand, em Joanesburgo.

Quem noticia o facto é o jornal “Século”, de Joanesburgo. A reportagem é extensa e há até a divulgação das equipas. Pelo Marítimo, jogam Quim; Olavo, Quim Manuel, Oliveira e Arnaldo Carvalho; Camacho, Águas e Eduardinho; Maurício, Toninho Metralha e Flávio. Entram ainda Nicolau, Duarte e Nanino. Pela selecção nacional, actuam Silvino; Gregório Freixo, Artur, Alhinho e Formosinho; Nunes, Paquito e Palhares; Fonseca, Reinaldo e Vítor Santos. Jogam também Damas, Coelho, Jorge Silva e Rui Lopes. O árbitro deveria ser António Garrido, mas este perde o voo de Lisboa e só chega a Joanesburgo depois do jogo. Que grande embrulhada. Quem desata o nó?

Antes disso, acaba quantos? Portugal goleia 5-0, com golos de Reinaldo (13’), Gregório Freixo (42’), Palhares (55’), Formosinho (85’) e Fonseca (90’). Otto Glória, que está por um fio ao leme da selecção portuguesa, graças aos dois espalhos seguidos (5-0 em Moscovo na qualificação para o Euro-84 mais 4-0 do Brasil num particular em Coimbra), tem a decência de evitar sentar-se no banco e delega Carlos Alhinho, então no Portimonense. O brasileiro não se coíbe é de dizer umas coisas à imprensa sul-africana. Como por exemplo: “Lá, em Portugal, posso afirmar que aquilo mudou como da água para o vinho. Infelizmente, mudou para pior, muito pior. É um país maravilhoso, um oásis, é um povo extraordinário, mas sofre ainda as consequências da falta de autoridade que se vive desde 1974. Não há disciplina no país.”

Beeeeeem, é uma bronca histórica. Silva Resende toma conhecimento de tudo isso e confronta Otto Glória. “Vamos pedir imediatamente um relatório a Otto Glória, que já voltou a Portugal mas ainda não foi contactado pela federação. Ainda assim, digo com toda a firmeza: a federação portuguesa de futebol é totalmente alheia a qualquer actuação de uma denominada selecção de futebol na África do Sul.” E continua. “O mais estranho disto tudo é que, alertados pela FIFA em relação ao Marítimo, avisámos com o devido tempo a equipa madeirense que não era autorizada a sua deslocação a Joanesburgo. Foi, portanto, com lógico espanto que soubemos pela imprensa de que actuou frente à tal selecção nacional. A federação está perfeitamente tranquila perante qualquer intervenção da FIFA: as normas existem e cumprem-se. Pessoalmente, qualquer de nós pode estar em desacordo com uma lei, mas temos de respeitá-la em absoluto se ela estiver aprovada na Assembleia da República. E temos de cumpri-la. Por isso, repito: a federação acatará imediatamente qualquer deliberação que seja tomada em relação a este caso.” Muito bem, o responsável da federação portuguesa olha para os factos e vai a jogo, sem medo de uma eventual suspensão.

E o presidente do Marítimo? António Henriques é o contrário de Silva Resende. “Lamento que a comunicação social se preocupe com mexericos sem qualquer fundamento. Desconheço a anunciada presença da equipa principal do Marítimo em Joanesburgo. De concreto, apenas sei que um grupo de dirigentes e jogadores verde-rubros se deslocaram à África do Sul por ocasião da inauguração de uma filial do Marítimo, em cerimónia integrada no programa das comemorações no Dia de Portugal que ali tiveram lugar.”

Então e a FIFA? António Henriques tem a resposta preparada. “A FIFA não pode castigar uma equipa que não esteve na África do Sul.” É um tanto-quanto surpreendente esta reacção se pensarmos nisto: o chefe da delegação do Marítimo é o vice-presidente Fernão Freitas, nomeado treinador na ausência daquele que o é, de facto – Mário Lino recusa o convite –, juntamente com Elmano Coito (dirigente do departamento de futebol), um médico, um massagista, um repórter fotográfico, o treinador-adjunto Ângelo Gomes e 14 jogadores.

Cenas dos próximos capítulos? Joaquim Rita, do jornal “A Bola”, descobre algumas pérolas. Como, por exemplo, esta: os jogadores da selecção actuam com nomes falsos. O Reinaldo chama-se António e o Gregório Freixo é Penteado. Outra: cada jogador ganha 100 contos. Uns há que são alvos de inquérito dos respectivos clubes, como Palhares (Boavista). Ora aí está o que é, Boavista.

Fala o vice-presidente Hernâni Ascenção. “Tudo isto é altamente grave e o sr. Fausto Pires é que deveria ser de imediato chamado a dignificar a sua classe de empresário. Esse indíviduo, que é useiro e vezeiro a realizar estas coisas, assume-se muitas vezes nos finais dos campeonatos a levar jogadores para o estrangeiro sem dizer nada aos clubes. Tanto quanto sabemos, os jogadores que participam nesses jogos não estão cobertos por qualquer seguro e isso é maléfico, tanto para eles como para o clube. Isto para além do facto político. Enfim, está tudo a saque.”

De repente, silêncio. Mais ninguém fala do caso em Portugal. Miranda Calha, secretário de Estado dos Desportos, fecha a sete chaves e Silva Resende só remata, no final de Junho, com um lacónico “aquilo da África do Sul poderá ter leitura benévola”. Fala-se mais do jogo lá, em Joanesburgo, do que cá, em Lisboa. Enquanto Fausto Pires pede uma indemnização de quase cinco mil contos ao empresário Peter Cooke, responsável pela organização do jogo na África do Sul, o jornal Século dá conta do depósito de três milhões de escudos para o pagamento dos jogadores portugueses, por parte de três elementos da comunidade lusa em Joanesburgo (Carlos Paiva, João Canha e Manuel Braga).

É o último dado público sobre o assunto. Daí em diante, o assunto fica em banho-maria. A FIFA não age, a federação portuguesa não é tida nem achada, tal como o Marítimo. Só o brasileiro Otto Glória é que paga a factura da viagem, com a demissão do cargo de seleccionador. Quem o substitui é Fernando Cabrita. Com ele, a selecção dá a volta ao grupo de qualificação e apura-se para o Euro-84.

Leave a comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *