Eeeeeep eeeeeep uraaaaayyyyyy, o Mundial faz 90 anos de vida

Kali Ma Mais 07/30/2020
Tovar FC

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Eeeeeep eeeeeep uraaaaayyyyyy, o Mundial faz 90 anos de vida

URUGUAI-1930

Barcelona, 8 Março 1928. Há uma ideia no ar mas a indecisão é enorme. A FIFA reúne-se e o presidente Jules Rimet fala da ideia de um Mundial de selecções. Uns torcem o nariz, outros não – como o rei espanhol Afonso XIII, presente no congresso. Vai-se a votos e a maioria é quem mais ordena. Avança-se com o ano de 1930 para a edição.

Onde? Uruguai. Porquê? Festeja 100 anos da primeira constituição. Bah, que seja no Uruguai. Não são nada supersticiosos os pioneiros do Mundial que se abalançam a essa coisa olímpica de promover uma prova de tão largo alcance e não menor responsabilidade. São precisamente 13 os participantes, número muito aquém do desejado. A maioria dos países europeus (Portugal, por exemplo) rejeita o convite por considerar o Uruguai uma escolha disparatada pelo elevado custo e duração da viagem.

Só quatro selecções se atrevem a ir de barco pelo Atlântico fora, em direcção a Montevideu, e metade delas é pressionada: França e Roménia, ambas pressionadas por Jules Rimet, que vai de comboio até Bucareste fazer um ultimato ao rei Carol de forma a juntar uns jogadores romenos à última hora para o evento. Só Bélgica e Jugoslávia viajam sem pressões de qualquer tipo. Todas elas, as quatro equipas, de barco. Uma (Jugoslávia) no navio-correio Florida, desde Marselha. As outras três no SS Conte Verde, um barco italiano que arranca de Génova com a Roménia. Os franceses embarcam em Villefranchesur-Mer, os belgas em Barcelona. Há escalas em Lisboa, Madeira, Canárias e Rio de Janeiro (aqui entra o Brasil só com um paulista – o avançado Araken – por divergências com a federação) até chegar a Montevideu.

Só um pormenor: o SS Conte Verde é utilizado entre 1938 e 1940 para o transporte de judeus da Alemanha/Áustria para Xangai. A capital da China é ainda palco do afundamento do barco, provocado pelos próprios italianos, para evitar que caia nas mãos dos japoneses em plena Segunda Guerra Mundial (1943). Recuperado pelos japoneses em Julho de 1944, o SS Conte Verde vai novamente ao fundo num ataque aéreo de um B24 dos EUA em Agosto de 1944.

Posto isto, vamos lá ao futebol ou lá o que é. Ao quarteto europeu contrapõe a América do Sul com sete candidatos, aos quais se juntam México e EUA. Durante 17 dias, a prova decorre sem grande surpresa e reedita-se a final olímpica de 1928, entre Uruguai e Argentina. Nessa altura, já há jogos de bastidores. O central argentino Monti, por exemplo, não quer jogar, depois de receber ameaças de morte pelo telefone. É necessária a presença de dois dirigentes do San Lorenzo de Almagro, clube de Monti, para o convencer a tomar parte da final.   O resto da história já se sabe. O Uruguai marca primeiro mas consente a reviravolta antes do intervalo. Na segunda parte, 3-0 para os locais (um dos golos é de Hector Castro, também conhecido como El Manco por não ter a mão direita, perdida num acidente caseiro com uma serra enquanto criança).

No dia seguinte, o 4-2 do Uruguai não é assim muito bem visto pelos jornais argentinos que protestam contra a violência do adversário e admitem o corte de relações desportivas entre os dois países, além de, claro, acusarem o árbitro de ter favorecido o anfitrião. É um relato de há 88 anos, mas poderia bem ser o de hoje.

ITÁLIA-1934

Insatisfeito pela ausência de algumas selecções europeias na edição inaugural de 1930, Jules Rimet (presidente da FIFA) amua e responde torto aos jornalistas que lhe perguntam depois da final entre Uruguai e Argentina em Montevideu para quando o próximo Mundial. “Talvez em 1938, talvez, quem sabe…”

A birra passa-lhe depressa e é a Itália do ditador Mussolini a organizadora do evento em 1934. Numa época em que o agigantamento nazi é uma triste certeza, com a preocupante escalada no poder de Hitler na Alemanha, o futebol entra em acção para dar um ar da sua graça, desta vez de braço dado com a política, numa prova contestada pela maioria dos 16 participantes, com queixas do exagerado caseirismo da arbitragem. Não espanta, por isso, que a vitória sorria à anfitriã, após vitórias sobre EUA, Espanha, Áustria e Checoslováquia. O título vale 370 contos a cada um dos 22 jogadores italianos, quatro deles naturalizados – Monti, Orsi e Guaita (argentinos) e Guarisi (brasileiro).

Três dias antes da consagração da azzurra (2-1 após prolongamento), realiza-se o primeiro jogo de consolação entre os semi-finalistas. É a decisão do terceiro e quarto lugares, entre Alemanha e Áustria, em Nápoles. Quando entram em campo, as duas equipas vestem o mesmo equipamento (camisola branca, calção preto) e tal facto obriga o árbitro italiano Albino Carraro a pedir a uma delas para trocar de roupa. No balneário, os austríacos encontram o equipamento do Nápoles e vestem-no sem levantar 1qualquer problema. O jogo começa 15 minutos depois do previsto e é ganho pela Alemanha (3-2).

Então e o Uruguai, detentor do título? Não quer ir à Itália. E não vai. Só há dois países sul-americanos alinhados com a FIFA: a Argentina leva uma equipa de amadores para não perturbar o andamento do campeonato nacional e o Brasil interrompe a sua liga para viajar de barco, a bordo do Conte Biancamano, um transtlântico desmantelado em 1960 depois de fazer 364 viagens entre Nova Iorque e Génova, com escala em Lisboa. Em 1934, o Conte Biancamano sai do Rio a 15 dias do arranque do Mundial. Durante duas semanas, a condição física dos atletas deteriora-se rapidamente apesar dos esforços do seleccionador Luis Vinhaes em manter uma rotina diária com sessões de ginástica e exercícios na piscina do convés.

O problema passa pelas actividades extra-curriculares. Que nos anos 30 significam jogo de cartas. Os jogadores sentam-se à frente de uma mesa e dali não saem durante horas e mais horas. É tão flagrante que a comissão técnica vê-se obrigada a emitir uma nota oficial a restringir a jogatina a uma hora e meia por dia em nome do “descanso” de todos. O Brasil chega a Itália 11 dias depois de sair do Rio e a 72 horas do jogo com a Espanha. Sem o preparo físico ideal, os brasileiros perdem 3-1 no dia 27 de Maio e são eliminados. E agora, fazer o quê para ocupar o tempo durante dois meses? (sim, porque a viagem de volta do barco para o Rio só está programada para final de Julho) O Brasil entretém-se a jogar pela Europa e passa por Portugal, onde ganha 4-2 a um misto de Benfica/Belenenses no dia 12 de Julho, goleia o Sporting por 6-1 na tarde de 15 e empata 0-0 com o FC Porto na Constituição, a 22. Fecha aí a loja.

FRANÇA-1938

Irra que são teimosos. Para o Mundial 1930, a maioria dos europeus recusa-se a viajar até ao Uruguai. Quatro anos depois, os uruguaios imitam a birra e não defendem o título em Itália. Como será no França-1938? Como a FIFA foge ao prometido (ai ai, já aí é assim) sobre a rotatividade continental, Uruguai e Argentina boicotam a prova, tal como Inglaterra – amuada desde 1930, também não há paciência para esta (pre)potência – e Espanha em plena guerra civil. Quem não vai nessa conversa do “não quero ir porque é muito longe e demasiado caro” é o Brasil, razão pela qual ainda hoje é o único país presente em todos os Mundiais (20). Desta vez, a seleçcão aparece disposta a contrariar o ascendente europeu com o avançado Leónidas, o Pelé de então.

Filho de uma cozinheira brasileira e um marinheiro português, chega a França como Leónidas e sai de lá como “Diamante Negro” e “Homem de Borracha”, alcunhas do jornalista francês Raymond Thourmagen, numa alusão à cor da pele e à elasticidade do avançado, que deslumbra os espectadores com pontapés de bicicleta, um estilo inédito e aperfeiçoado por ele, depois de observar Petronilho de Brito (São Paulo), esse sim o verdadeiro inventor do remate, segundo o próprio Léonidas. É assim mesmo, sem manias nem peneiras que Leónidas se apresenta ao mundo: humilde e sereno.

Tanto assim é que Leónidas é o homem que passa a vida a dizer que só tem sete golos no Mundial-38, e não oito como a FIFA proclama até 2006, altura em que se apercebe do erro de um dos golos à Polónia naquele fenomenal 6-5 em Estrasburgo. “Fiz três, e não quatro, mas eles lá é que entendem de futchibol”, diz o bem-humorado Leónidas, autor do golo mais esquisito de sempre em Mundiais: pé descalço. Ele explica: “Ia ser cobrada uma falta contra a Polónia e eu fiquei desuniformizado (sic). Chovia, o juiz não se apercebeu. Nós não tínhamos meias brancas, naquela época jogávamos de meias pretas. Então, com a lama, o juiz talvez não tenha observado. Eu fiquei na jogada, a bola bateu na barreira, voltou para mim e eu complementei o lance para o golo.” Nada mais simples.

Na eliminatória seguinte (quartos-definal), há um Brasil-Checoslováquia que entrará para a história dos Mundiais como o mais faltoso de sempre. Sim, muito mais faltoso que o Portugal-Holanda de 2006, o Itália-Chile 1962 e o Brasil-Hungria 1954. Só para se entender um pormenor, o prolongamento começa com sete brasileiros e oito checos em campo. O árbitro húngaro Pál von Hertzka não tem controlo naquelas entradas a rasgar e o público de Bordéus entra em desespero com tanto anti-jogo. Há três expulsões (2-1 para o Brasil) entre tantos lances de agressões bárbaras.  Nejedly e Kostalek saem antes de tempo. Um com a perna direita partida, o outro a queixar-se de um murro no estômago. Do lado brasileiro, Leónidas e Perácio também não acabam o jogo dentro do relvado, ambos a coxear. Já o guarda-redes Plánicka parte o braço direito mas recusa dar-se por vencido. O problema disto tudo é que o jogo vai a prolongamento e o 1-1 não ata nem desata. Resultado: é preciso mesmo ir a jogo de desempate. Ambas as selecções têm de jogar com muitos suplentes e passa o Brasil, à conta de uma bicicleta de Leónidas. Ou melhor, ele tenta mas sai-lhe furada (jargão utilizado no Brasil para “errar” no futebol) e é Roberto quem empurra a bola para a baliza. O lance, esse, é imortalizado. Pois claro. Leónidas para sempre.

BRASIL-1950

O conflito mundial de 1939 a 1945 interrompe, como é natural, o ciclo. O assunto só é retomado em 1950, com o Brasil a assumir a organização, depois da desistência da Argentina. E se todos os países do Leste europeu faltam à qualificação, a contrapartida verifica-se na adesão dos países britânicos, que finalmente esquecem os anteriores desentendimentos e tomam parte, pela primeira vez, num Mundial.

É um campeonato no qual o Brasil deposita enormes e legítimas esperanças. Além de contar com nomes fortes, como Friaça, Ademir, Jair e Chico, a selecção jogaria a maior parte das vezes no espectacular Maracanã, o qual, todos o supõem, iria servir de cenário à consagração do futebol brasileiro. O clima de optimismo ganha mais adeptos ainda quando o bom futebol serve para bater México (4-0) e Jugoslávia (2-0) na fase de grupos, o que vale a qualificação para a “poule” final, disputada em moldes até aí inéditos e nunca mais retomados. O quadrangular decisivo reúne ainda Espanha, Suécia e Uruguai. Goleando os europeus (7-1 à Suécia, 6-1 à Espanha), a equipa da casa apresta-se para chegar ao título, tanto mais que detém um ponto de vantagem sobre o Uruguai, que empatara com a Espanha.

Embora lhe baste a igualdade, o certo é que nem isso o Brasil consegue no seu derradeiro jogo. A perder por 1-0 desde o primeiro minuto da segunda parte (obra de Friaça), os uruguaios operam a reviravolta no marcador com Ghiggia a sentenciar a 11 minutos do fim. “Só três pessoas calaram o Maracanã: eu, o Papa João Paulo II e o Sinatra”, exulta Ghiggia. No dia seguinte, os jornais brasileiros dão conta de uma inacreditável onda de suicídios que bem ilustrara o clima de desespero reinante. O Brasil está de luto e Barbosa nunca mais recuperaria do baque. “Fui sempre apontado como o culpado”, desabafa o guarda-redes, que sofre o 2-1 de Ghiggia num remate entre o poste e a sua pessoa.

“Eu vivia em Niterói e lembro-me perfeitamente de ser acarinhado por todas as pessoas na minha caminhada a pé do Maracanã para casa depois da final. O problema foi o dia seguinte. As pessoas, aquelas que me deram palavras de força e muitas mais outras, acordaram para o lado errado e assim continuaram durante anos e anos. Fui posto de lado pela sociedade.” Barbosa continua a falar. “Sabe o que fazia nas vésperas dos Mundiais, quando o telefone aqui de casa não parava de tocar? Dava um código para os meus amigos: eles ligavam-me, o telefone só tocava duas vezes e depois ligavam-me outra vez. Só assim é que atendia, senão não havia jeito. As pessoas andavam sempre atrás de mim a quererem xingar-me pela Copa 1950.”

SUÍÇA-1954

O prometido é devido na questão do rodízio entre um continente e outro. Depois do Brasil-1950, a FIFA elege a Suíça para 1954. Tal opção não é ditada ao acaso, antes se deve à situação tranquila do país, neutro durante a 2.a Guerra Mundial. Naquele tempo é a Hungria quem dá cartas no futebol. Campeões olímpicos em Helsínquia-1952, com 18-1 em golos nos quatro jogos, os húngaros chegam ao Mundial com a impressionante marca de 42 vitórias e seis empates desde o 3-1 da Turquia em 1950. Há ali talento, do guarda-redes Grosics ao avançado Hidegkuti, e é o interior-esquerdo a maior referência. Chama-se ele Puskas.

Pequeno e atarracado, é gordito e sem estilo. Além de pentear o cabelo com gel para trás, como um canto de tango, veste-se com uma deselegância tal que mais parece um empregado de bar nos arredores de Budapeste. Dentro de campo, com a bola nos pés, é uma referência, o Major Galopante para os amigos, numa alusão à sua patente no exército. É ele, claro está, a figura de dois atropelos memoráveis aos pseudo-inventores do futebol – os ingleses, óbvio. O 25 de Novembro de 1953 está gravado em qualquer livro de história do futebol por indicar a primeira derrota da Inglaterra em casa, ao fim de 90 anos. E não é uma qualquer: 3-6 (onde é que já vimos este filme?). Bom, os ingleses queixam-se disto, daquilo e pedem desforra, agora em Budapeste. A Hungria aceita e esmera-se na arte de receber os convidados: 7-1 (mais uma vez, onde é que já vimos este filme?).

É neste contexto que a Hungria se desloca à Suíça. O seu futebol maravilha qualquer adepto, com um jogo inovador baseado no WM, tradicional na defesa e revolucionário no ataque. Czibor, Kocsis e Puskas são os mais brilhantes intérpretes. Num torneio cuja fórmula de disputa volta a não ser famosa, permitindo eventuais entendimentos, já que cada grupo qualifica duas equipas para a fase seguinte e com jogos em datas diferentes, a Hungria cedo dá a entender claro favoritismo, com 9-0 à Coreia do Sul e 8-3 à RFA – num jogo em que uma maldosa entrada do alemão Liebrich lesiona Puskas, ao ponto de este não poder jogar os quartos-de-final e as meias-finais (duplo 4-2 sobre Brasil e Uruguai).

Contas feitas, 25 golos em quatro jogos. Na final, a Hungria reencontra a RFA. O mesmo é dizer que Puskas volta a cruzar-se com Liebrich. O início prometedor dos húngaros (2-0 aos 9’) não faz prever a reviravolta mas um bis de Rahn provoca a surpresa em Berna. Der Boss (o chefe), assim conhecido pelas qualidades inatas de liderança e também por ter sido o primeiro alemão a aventurar-se no estrangeiro (Twente, Holanda), assina o 3-2 a seis minutos do fim e está consumada a maior surpresa de sempre: a derrota do melhor futebol do mundo. Ao longo dos tempos, os jogadores alemães atribuem a vitória à capacidade mental de Josef Herberger, seleccionador de 1936 a 1962 que anota os defeitos dos adversários num bloco de notas (muito antes de Bölöni) e autor de frases feitas como “a bola é redonda” e “um jogo tem 90 minutos”.

SUÉCIA-1958

Just Fontaine é um fenómeno sem igual: 30 golos em 21 internacionalizações pela França. Filho de um inspector-geral da empresa de cigarros Tabacalera, nasce em Marraquexe mas passa a infância em Casablanca antes de ser contratado pelo Nice, onde é campeão francês em 1956. Segue-se o Stade Reims, então a melhor equipa de França. Impõe-se com uma categoria indiscutível.

Só um exemplo: em 1958 é o melhor marcador da liga francesa e da Taça de França. Tem de ir à selecção, bien sur, só que nem é titular, por incrível que pareça. Esse é Rene Bilard, também do Reims. Ora bem, o bom do Billard lesiona-se no tornozelo durante o primeiro treino na Suécia. Poucos minutos depois é a vez de uma de as chuteiras de Fontaine rebentar. Não há arranjo possível e o avançado não tem mais pares. E agora? Stéphane Bruey (Angers) calça o mesmo número de Just e é com as botas dele que joga todo o Mundial. “Aquilo deu sorte, eram duas cabeças, dois sentimentos dentro da mesma bota”, explica Just, autor de 13 golos (ainda hoje recorde).

Marca três ao Paraguai, mais dois à Jugoslávia e um à Escócia. Nos quartos-de-final, outros dois à Irlanda do Norte. Nas meias, um ao Brasil. No terceiro e quarto lugares, um póquer à RFA. Nós bem dizíamos, é um fenómeno sem igual. Se isto é Just Fontaine, o que dizer de um tal Pelé? Para evitar mais despistes, como em 1930, 1934, 1938, 1950 e 1954, a comissão técnica do Brasil planeia o Mundial ao pormenor, mas esquece-se de dar os números das camisolas dos jogadores.

O uruguaio Lorenzo Villizio, membro da organização do Mundial, define a numeração por conta própria e é profético ao dar o 10 a Pelé, quando o avançado ainda nem é conhecido fora do seu país. Com o 10, o moleque de 17 anos vira rei embora falhe o primeiro e o segundo jogos, por lesão. Estreia-se só com a URSS e acerta na trave aos dois minutos. Depois, acerta a pontaria: Gales (um golo), França (três) e Suécia (dois). Começa aqui a lenda. Ou não. A lenda propriamente dita inicia-se na véspera da final com a vitória da Suécia nos bastidores. Como ambas as selecção vestem de amarelo, há sorteio para decidir quem joga com o equipamento principal. O Brasil perde na moeda ao ar e é obrigado a entrar em campo de azul. Os jogadores brasileiros, muito supersticiosos, ficam apavorados.

O chefe da delegação Paulo de Carvalho só os acalma depois de comprar as camisolas. “Azul é a cor do manto da Nossa Senhora Aparecida.” O golpe psicológico funciona. Embora Liedholm assine o 1-0 aos 4’, o Brasil reage com estilo. É um fartar até ao 5-2. Para Garrincha, o outro artista da selecção, tudo aquilo é muito esquisito. “Que campeonato este, nem tem segundo turno [segunda volta].” Na cerimónia da entrega do troféu, Bellini imortaliza a imagem de levantar a taça enquanto Mané chama “meu chapa” ao rei Gustavo.

CHILE-1962

Ao Maracanazo de 1950 seguem-se dois Mundiais na Europa (Suíça-54 e Suécia58). Está na hora de se escolher um país sul-americano, não? A FIFA torce o nariz, a Argentina reage dramaticamente: ou é aqui ou não vamos a lado nenhum, como acontecera em 1938. A FIFA dá o braço a torcer mas convida a federação do Chile a entrar na discussão com a Argentina, só a título simbólico. O congresso da FIFA para o arranque das duas candidaturas está marcado para Lisboa, no dia 10 de Junho de 1956.

A Argentina, através de Raul Colombo, dá o seu parecer: “Estamos prontos para começar o Mundial já amanhã. Temos tudo o que é preciso.” O Chile acusa o toque e começa a trabalhar no sentido de organizar o Mundial. Liderado por Carlos Dittborn (nascido no Brasil e filho de um cônsul chileno no Rio), o Chile faz um discurso emocionado: “Porque nada tenemos, lo haremos todo” (porque nada temos, faremos tudo). Quando se vai a votos, e atenção que há 13 abstenções, o Chile goleia a Argentina por 32-11. A surpreendente vitória deixa o Chile em êxtase mas o clima de euforia é derrubado em Maio de 1960 pelo maior tremor de terra de que há memória, com 9,5 pontos na escala Richter. O balanço é esmagador: cinco mil mortos e 25% da população desalojada.

E agora? A frase de Dittborn ganha mais força ainda e o Chile sai-se muito bem. O problema é o de sempre: as arbitragens. De um caseirismo insuportável, digase. A isto junta-se-lhe um tom agressivo dos jogadores. Nunca antes visto. Ao todo, lesionam-se 15 jogadores, entre eles Pelé, substituído com pompa e circunstância por Amarildo, autor dos dois golos da vitória sobre a Espanha (2-1). “As minhas pernas pareciam de chumbo e não conseguia correr”, conta o avançado do Botafogo. “Aí, um defesa espanhol cuspiu na minha camisa. Fiquei louco de raiva e dei a volta ao jogo.”

A figura maior do bicampeão Brasil seria um outro artista, Garrincha de seu nome. Ainda hoje desconhece-se quantos filhos tem. São-lhe atribuídos 14, mas há um pormenor inquestionável: Garrincha diverte e diverte-se com o futebol. Com ele em grande forma, o relvado transforma-se num circo e a bola torna-se um animal obediente, enquanto os adversários (os Joões, como ele os apelida em tom carinhoso) esbarram uns contra os outros. O Anjo das Pernas Tortas, por a perna direita ser seis centímetros mais curta que a esquerda e ambas arqueadas, ou o Chaplin do Futebol, é o verdadeiro herói brasileiro em 1962, com exibições que levam a imprensa a chamar-lhe extraterrestre. E nem o facto de a Checoslováquia se ter adiantado no marcador na final de Santiago altera o guião. Ao cabo dos 90 minutos, a festa é mesmo brasileira. Quem levanta a taça é Martha Rocha. Ou melhor, Mauro. Como joga com elegância, é apelidado Martha Rocha, numa alusão à famosa Miss do Brasil eleita em 1954.

INGLATERRA-1966

Westminster Central Hall é uma igreja à saída de Victoria Street, em Londres. É um edifício polivalente, por assim dizer: tanto é palco de conferências como de escritórios e até uma galeria. Na tarde de 20 de Março de 1966, a quatro meses do Mundial, acontece o impensável com o desaparecimento da Taça Jules Rimet. No momento do roubo, dois polícias guardam o troféu mas não se apercebem de nada. É limpinho, limpinho. Ao lado da exposição da Jules Rimet, decorre uma mostra de selos, alguns deles no valor de três milhões de libras. Os ladrões só se interessam pela taça e o assunto ultrapassa fronteiras. Durante horas e dias, a angústia toma conta da Scotland Yard. A sua reputação é posta em causa até…

Até que a taça é encontrada sete dias depois, embrulhada num jornal, num jardim em South Norwood, também em Londres, por um cão chamado Pickles. Por questões de segurança, a federação inglesa cria secretamente uma réplica para ser usada nas celebrações pós-final. A réplica também é usada em ocasiões subsequentes até 1970, altura em que o Brasil se apodera da Jules Rimet como tricampeão em título. Ora então, um cão salva a taça e a Scotland Yard continua envergonhada mas o tempo não pára e o Mundial vai mesmo para a frente.

Ainda sem qualquer título – mundial ou europeu – no currículo de que tanto se orgulha, a Inglaterra aposta forte e contrata Alf Ramsey para o lugar de Walter Winterbottom. Internacional pela Inglaterra nos anos 50, Alf tem excelente sentido posicional e é frio nos momentos decisivos, razão pela qual é apelidado de “General”. Sem as chuteiras e sentado num banco, Alf continua assim. Com (mais) requintes de malvadez. É conhecida a história de entrar em campo para proibir Alan Ball de trocar de camisola com os argentinos a quem apelida de animais. À fome de ganhar junta-se a vontade dos títulos.

É o factor casa a ditar leis – ainda por cima, o presidente da FIFA é o inglês Stanley Rous. Como se isso não bastasse, a Inglaterra joga sempre em Wembley, embora o calendário não aponte, inicialmente, nesse sentido. Isto aconteceria na meia-final com Portugal, marcada para Liverpool. Mas ninguém leva a mal (e poderia?). A essa diligência o que dizer do escândalo das arbitragens tendenciosas a prejudicarem os sul-americanos em retaliação ao Mundial do Chile-62 em que os europeus são roubados até dizer chega? É o costume, infelizmente. No Inglaterra-Argentina, com arbitragem alemã, o capitão Rattin é expulso aos 35’ por pedir um tradutor para os seus protestos. No RFA-Uruguai, o juiz inglês não vê mão de Schnellinger (6’) para penálti e expulsa dois uruguaios aos 11 minutos.

Até a final é resolvida com um golo fantasma de Hurst (é o 3-2 da Inglaterra à RFA), com a bola a não passar totalmente o risco apesar do sim do fiscal-de-linha soviético Tofiq Bahmarov. A excepção à regra tem sotaque português. Com o número 13, o avançado do Benfica mostra que é um caso à parte e ganha o respeito de todos como Eusébio e não como “Pelé branco”, a sua primeira alcunha. O Mundial’66 desfaz “equívocos” e confirma Eusébio como Eusébio, melhor marcador do Mundial com nove golos.

MÉXICO-1970

“O crioulo está mal, precisa descansar.” A frase do seleccionador João Saldanha arrepia todo o Brasil. O crioulo é Pelé. Caçado em campo no Mundial-62 e no de 1966, primeiro por búlgaros e depois portugueses (Morais é o homem que lhe acerta duas valentes pancadas no joelho esquerdo antes de o afastar do jogo), o 10 brasileiro sonha com o troco para confirmar o estatuto de rei. O problema é João Saldanha.

Aquilo do “crioulo está mal” não está fora do contexto nem nada que se pareça, ele não vai mesmo à bola com Pelé. No dia seguinte, outra acha para a fogueira: Pelé está fora do particular com o Chile, por culpa de um problema visual. É isso, o avançado do Santos vê mal de um olho, o direito. Os médicos da selecção dizem tratar-se apenas de uma miopia leve, nada que o impeça de jogar  futebol. No máximo, teria de usar óculos para ler. “Nem que seja com lentes de contacto, vou jogar esta Copa”, remata Pelé. A este problema junta-se um outro, relativo à chamada de Dadá Maravilha, do Atlético Mineiro. É o preferido do general Emilio Garrastazu Médici, da ala mais radical dos militares da ditadura.  “O presidente escala o ministério dele e eu escalo o meu time”, responde, torto, Saldanha.

É a gota de água. Sai Saldanha e entra Zagallo, bicampeão do mundo com Pelé em 1958 e 1962. A sua visão é diferente da de Saldanha e Pelé vai ao plantel. A titular, é óbvio. O Mundial é dele, os adeptos mexicanos carregamno em ombros até aos balneários após a magnífica exibição com a Itália, em que marca o 1-0 de cabeça e assiste para o 3-1 de Jairzinho e o 4-1 final de Carlos Alberto. Contas feitas, cinco assistências e quatro golos. Isso é bom mas Pelé é isso e muito mais.

O seu trabalho no Mundial é também avaliado pelos chamados golos-não. Há cinco, veja lá bem. O primeiro de todos é com a Checoslováquia. Ao aperceberse que o guarda-redes está adiantado, Pelé arrisca o golo a 40 metros, ainda antes do meio-campo. A bola sai ao lado e o ar de Ivo Viktor a correr para trás é um mimo. Segue-se a Inglaterra, também na fase de grupos. O cruzamento de Jairzinho é impecável, Pelé cabeceia com força. È golo, só pode. Banks voa e faz a defesa do século. Quartos vs. Uruguai. Bola lançada pela esquerda para a entrada da área, Pelé e Mazurkiewicz lançam-se. O brasileiro vai que vai mas não vai, o guarda-redes uruguaio é fintado sem bola! Pelé contorna-o e remata, meio desenquadrado, ao lado. G-e-n-i-a-l. Ainda nesse jogo, um pontapé de baliza do tal Mazurkiewicz é mal batido, quase rasteiro. A 25 metros da baliza, Pelé remata de primeira, sem preparação, mas a bola é defendida por Mazurkiewicz. Último lance, na final com a Itália. Aos 45’+1, Pelé recebe na área, beneficia de um erro defensivo e isola-se. Só tem o guarda-redes Albertosi pela frente. Antes de rematar para golo, o árbitro Glöckner (RDA) apita. Então? É intervalo.

RFA-1974

Às portas do Mundial Inglaterra-66, o seleccionador alemão Helmut Schön não convoca Müller, então com 20 anos e já um avançado temido ao serviço do Bayern Munique. A justificação é graciosa, por assim dizer: “Não quero um gordo, que nem é assim tão bom jogador e que só marca golos por sorte!”

Internacional alemão na década 40, com mais golos (17) que jogos (16), Schön é um senhor de 58 anos sem manias nem verdades absolutas. Acabara de suceder ao lendário Sepp Herberger, campeão mundial em 1954, e tem um estilo bem diferente dos demais alemães daquele tempo porque tem o sorriso estampado no rosto. Aliás, quando se justifica com a ausência de Müller, fá-lo num registo divertido. Ninguém se sente mal pelo picante das suas declarações. Nem Müller: “Não faz mal, aceito a sua decisão. Para o próximo Mundial, estarei lá”.

Nos quatro anos seguintes, Müller é três vezes o melhor marcador da liga alemã, em 1967, 1969 e 1970. Schön engole um elefante. A sorrir, claro. Müller, como é seu timbre, enche-se de brio. Decide o jogo com o México. Depois, dois hat-tricks seguidos: Bulgária e Peru. Segue-se a Inglaterra e bye-bye com um belo golo acrobático no prolongamento. Também no tempo extra, bis (inglório) à Itália na meia-final. Müller acaba o Mundial como melhor marcador. Aos dez golos, junta três assistências. A RFA agiganta-se a partir daí. Graças a Müller. Em 1972, é campeã europeia com dois golos do gordo na final com a URSS (3-0).

Em 1974, o país aproveita as estruturas dos Jogos Olímpicos-72 de triste memória e organiza o Mundial. Schön conta obviamente com Müller para juntar o título mundial ao europeu, algo que nunca sucedera. Até 1974. A RFA é candidata, tal como a Holanda. As duas potências assumem a candidatura e qualificam-se sem surpresa para a segunda fase, que, tal como a primeira, disputar-se-ia em poule, o que é inédito.  Também aí, RFA e Holanda esmagam a concorrência com especial destaque para a vitória inequívoca da nova escola do futebol mundial (Holanda) e os actuais detentores do título (Brasil), por 2-0. A laranja é um caso sério, à conta do futebol total. O carrossel transforma a modesta Holanda numa super potência e é Cruijff o principal intérprete dessa nova escola sofisticada. Com talento e fulgor ilimitados, confunde adversários com constantes ziguezagues. Todos, menos Vogts!

Na final, Cruijff ainda dá um ar de sua graça ao sofrer um penálti aos 43 segundos – é o primeiro de sempre numa final. Neeskens atira para o meio da baliza, Maier desvia-se e 1-0 em Munique. Silêncio no Olímpico. Menos de 30 minutos depois, Taylor vulgariza o que antes fora novidade e marca outro penálti. Empata Breitner. Já perto do intervalo, 2-1 para a RFA. De quem? Olha olha, mas isso pergunta-se? Müller, pois está claro: recebe a bola de costas para a baliza, vira-se de repente e toma lá disto futebol-arte. Viva o gordo.

ARGENTINA-1978

Falta uma semana para o Mundial-66 e a FIFA reúne-se em Londres para dar a conhecer o anfitrião de 1978. Como o México já organiza o de 1970, a escolha recai para a Argentina, a candidatura alternativa. “Quando cheguei à presidência da FIFA”, conta o brasileiro João Havelange, “quem decidiu que a Copa ia ser na Argentina não fui eu nem o Comitê Executivo. Foi o Congresso e você não pode mudar uma decisão do Congresso. Pode falar o que quiser, eu só apertei o governo anterior, o da senhora do Perón. Ela caiu à falta de dois anos para a Copa. Aí, fui ver o presidente Videla e ele disse-me: ‘Senhor Havelange, não vou dar-lhe a melhor Copa, mas vou dar-lhe uma das melhores.’ E isso aconteceu, de facto.”

Dez anos depois do veredicto, há um golpe de Estado na Argentina. Sai Isabel Perón, entra o General Jorge Videla. É o dia 24 de Março de 1976 e começa aqui um dos períodos mais negros de sempre do país, com a criação do PRN (Proceso de Reorganización Nacional), em que as violações aos direitos humanos são do mais frequente possível. Um exemplo? Albano Harguindeguy, ministro do Interior, admite o desaparecimento de 5618 pessoas. Medo, m-e-d-o. Outro exemplo? A França (já com Platini) ameaça boicotar o evento em resposta ao assassinato de freiras francesas por parte da Junta Militar mas dá o dito por não dito.

Há também o problema entre Argentina e Chile acerca da soberania sobre três ilhas no Canal de Beagle. A Coroa Britânica que resolva. Em 1977, é ditada uma resolução desfavorável à Argentina, o que provoca uma reacção da Junta Militar. A guerra está ao virar da esquina e só não vai avante por intervenção divina ou quase (o Papa João Paulo II desbloqueia o problema, só resolvido no papel em 1984 com o Tratado de Paz e Amizade). Entre esse período, há um outro dilema para resolver entre esses dois países. Na segunda fase, há um grupo com Peru, Argentina, Brasil e Polónia. Só vai à final o primeiro classificado. Contra o que era da mais elementar regra, os jogos da derradeira jornada não se disputam à mesma hora. Assim, quando a Argentina entra em campo para jogar com o Peru, já sabe o que fazer: basta ganhar por quatro de diferença.

Acabaria por ser 6-0 a suscitar dúvidas (o guarda-redes peruano Quiroga é de origem argentina). Na final, o jogo começa mais tarde porque os argentinos demoram 10 minutos a entrar em campo (os holandeses têm de suportar os papelinhos dos adeptos e aquela gritaria toda) e depois o capitão Passarella queixa-se ao quarto árbitro de que René van de Kerkhof não pode jogar com o braço engessado. Mais sete minutos de paragem. A Argentina adianta-se, a Holanda empata aos 81’ e Rensenbrink atira ao poste em cima dos 90’. O Monumental cala-se. E depois explode de alegria com o 3-1. Para um povo oprimido e descontente, é o prémio da compensação. O grande prémio, esse, só surgiria alguns anos mais tarde.  

ESPANHA-1982

Roberto Pruzzo é o melhor marcador do campeonato italiano em 1980-81. E em 1981-82. Será o avançado ideal para a selecção no Mundial-82? Assim de repente, sim. Acontece que Enzo Bearzot tem outras ideias. Para ele, o futebol é para a frente e bastante simples, com dois alas, um avançado e um médio criativo. “Escolhia os jogadores e deixava que eles jogassem sem impor esquemas tácticos. Ninguém chega ao pé do Maradona e lhe diz ‘joga assim’.”

Pronto, lá está: um avançado. Insistimos, não será Pruzzo? Nãããããããã, é Paolo Rossi. Esse mesmo, a figura do campeonato 1979-80. Dezembro de 1979, dia de Avellino-Perugia num duelo entre o 10.o e o 12.o classificado. Considerado the next big thing do futebol italiano, Paolo Rossi abre e fecha o marcador mas o Perugia só empata 2-2. Uma semana depois, já em 1980, o Milan recebe a Lazio e ganha 2-1. Até aqui tudo bem. Acontece que Alvaro Trinca e Massimo Cruciano, dois comerciantes de Roma, queixam-se à polícia de resultados combinados. Ou mal combinados. Porque eles (Trinca, gerente do restaurante Le Lampare; Cruciano, vendedor de legumes no principal mercado da capital) apostam noutros resultados num totobola do mercado negro (eis o porquê da definição de Totonero), previamente acertados entre máfia, jogadores e dirigentes. A queixa sai cá para fora no dia 23 de Março de 1980, quando a polícia monta uma megaoperação num domingo de futebol com carros de patrulha à porta de cinco estádios.

Mal acabam os jogos, 13 jogadores de sete equipas são surpreendidos. As cenas são transmitidas em directo pelo canal público italiano RAI, através do programa 90.º minuto. A rede da máfia é perseguida e detectada (cerca de 3 mil agentes espalhados por todo o país). Ainda hoje Paolo Rossi é a cara do Totonero. Então com 23 anos, o avançado italiano é suspenso por 23 meses pela justiça desportiva mas sempre reclamou inocência, apoiada nos dois golos marcados em Avellino. É absolvido mais cedo que o previsto, mas não foi a tempo do Euro-80. A sua pena acaba a 30 de Abril 1982. O que não é pena nenhuma. Rossi ainda faz um golo em três jogos pela Juventus, que o contratara antes do Totonero explodir, e é convocado pelo seleccionador Enzo Bearzot para o Mundial-82, em Espanha, onde passa os primeiros 360 minutos sem um golo para amostra.

Alguns avançados controlam jogos, outros impõem-se pelo físico e ainda há os que são habilidosos. “Pablito” não é nenhum desses. É simplesmente um goleador. Sem se mexer por aí além, não convence imprensa e adeptos, ambos já desesperados. Como é que um jogador que está dois anos suspenso por manipular resultados de jogos da sua equipa (Perugia) e de outras na 1.a divisão pode regressar a dois meses do Mundial, ser convocado e jogar sempre? A pergunta até é pertinente. E merece o reparo do contestado: hat-trick ao Brasil (última jornada da fase de grupos), bis à Polónia (meias-finais) e um golo à RFA (final). É o melhor marcador da competição, com seis golos. Pruzzo vê-os todos em casa, pela televisão.

MÉXICO-1986

Em vez de estarmos aqui a falar disto e daquilo, vamos directos ao assunto. É o melhor golo do século XX. O primeiro é Peter Beardsley. “O primeiro toque dele é sublime porque nos deixa, a mim e ao Peter [Reid], sem reacção. O que ele fez com aquele jogo de pés naquela fracção de segundo arrumou-nos, sem misericórdia. Foi um toque de classe como nunca vi até então, e só voltei a ver com Zidane. A roleta. O Diego é que a inventou, naquele instante. O Zidane aperfeiçoou-a, dou isso de barato, mas o inventor foi Maradona. E à minha frente. Na minha cara. Quer dizer, eu estava à espera de tudo menos daquilo, e ele fugiu-me por entre as mãos como se nada fosse. Sim, é verdade, o 1-0 foi com a mão, mas o 2-0 valeu por dois.”

Peter Reid tenta apanhar Maradona mas… “Os jogos desse Mundial eram a horas tremendas. À hora de almoço, no pico do calor. Esse não fugiu à regra. Aquele estádio estava um forno e eu não me lembro de correr tanto atrás de alguém como naqueles segundos. Nunca o apanhei. Às tantas desisti. E o Diego com a bola controlada! A única coisa que me passava pela cabeça era tentar travá-lo, mas ligeiramente, sem ser em falta. Sei lá, estender o braço direito à volta da cintura dele ou no seu ombro, mas era impossível. Ele bateu todos os recordes possíveis e imagináveis de velocidade, técnica e ligeireza nesse lance histórico.”

Terry Butcher é driblado por dentro. “Quando o vi arrancar, pensei para mim ‘alguém o vai parar, não vai?’ Depois aproxima-se de mim e eu penso ‘eu vou pará-lo, não vou?’, mas ele dá-me a volta com um jogo de cintura e a bola colada ao pé. Parecia um ioiô, que lhe obedecia. Ainda pensei ‘agora o Fenwick’, que era um defesa forte na marcação que raramente se deixava enganar, ‘vai pará-lo, não vai?’ e não é que Diego passa por ele como se nada fosse? No fim ainda fui de carrinho a tentar impedir o golo, mas ele foi mais rápido que eu. Again!”

Terry Fenwick estica o braço mas no way. “Nunca pensei que alguém com a bola controlada conseguisse correr mais que os outros. Ele passou por mim como se nada fosse e o incrível desse lance é que ficou na cabeça de toda a gente. Em 2006, estou eu tranquilo da vida, na Jamaica, de férias, quando o dono do hotel reconhece o meu nome a fazer-me o check-in. Pergunta-me se sou quem ele julga que sou, digo-lhe que sim, ele chama os amigos e começamos ali a falar de todos os pormenores do golo. Só consegui ir para o quarto duas horas depois!”

Peter Shilton é o último a ser fintado. “Durante anos, anos e anos, não consegui rever esse jogo. Por causa da mão de Deus, desse golo irregular que o árbitro [tunisiano Ali Bennaceur] não viu, nem o fiscal-de-linha. Mas claro que aplaudo o 2-0. Uma obra de arte. Dizem que o Messi marcou um igual, mas não podemos comparar o golo. Nem o momento. Nem o adversário. Nem os intervenientes. É tudo diferente, com vitória de Diego. Quando eu lhe saí aos pés ele fez-me uma coisa impossível: fintou-me com a anca. Em corrida! Com a bola controlada! Come on!”

ITÁLIA-1990

Quem está ligado à televisão, adormece. Quem não está, passa bem. O Mundial-90 é dos mais fracos de que há memória a nível técnico e há a reedição da final da edição anterior, em 1986, entre RFA e Argentina. Desta vez, os alemães sorriem. Mérito para Kaiser Franz Beckenbauer. O segundo homem a vencer o Mundial como jogador (1974) e seleccionador após o brasileiro Zagallo (1958 e 1962 mais 1970) dá total liberdade aos jogadores, que podem ver as namoradas/filhos antes e depois dos jogos, a contrastar com o sistema claustrofóbico de 1986. “Foi uma lição que aprendi de um Mundial para o outro e resultou em pleno”, diz Beckenbauer sem se pronunciar sobre o penálti discutí

vel da final.

Para isso, está o defesa argentino Sensini. “Não foi foul [sobre Völler]. É verdade que cometi o erro de ir ao corte com a perna trocada, mas não foi foul: toco na bola e depois levo o pé de arrasto. O problema é que Codesal [árbitro mexicano] estava nas minhas costas e não vê bem a jogada, embora apite com uma certeza assustadora.” Chamado a marcar, Brehme avança e fixa o 1-0. Mas porquê Brehme e não Matthäus, o capitão e marcador oficial de penáltis? “É legítima, a pergunta. Acontece que rompi a sola de uma das chuteiras na primeira parte. Como sou distraído, não levei mais nenhum par para o estádio. Ao intervalo, um homem da Adidas deume o único par de botas disponível. Calcei-as mas elas não se adaptaram bem aos meus pés. Quando chegou a altura do penálti, confiei no Andi [Brehme]. Fomos companheiros de quarto durante todo o Mundial, pelo que eu e ele já tínhamos falado sobre isso. O Beckenbauer aceitou sem problemas.”

E pronto, está desvendado o mistério. Só falta um desse Mundial: Völler e Rijkaard saem amigos daquele RFA-Holanda? Uiiiii, nem por sombras. Nada disso. O árbitro argentino Loustau expulsa os dois aos 22 minutos e o holandês cospe três vezes nos caracóis do alemão, dignos de um Serafim Saudade. O incidente é captado pelas câmaras de televisão, não há como suavizar a realidade. “Rijkaard é um porco que gosta de confusão”, reage Völler, ainda incrédulo. Van Basten defende o compatriota: “Ouvi Völler chamar preto nojento ao Rijkaard.”

Só seis anos depois, em Maio de 1996, quando Völler e Rijkaard já haviam saído de Itália (um joga na Roma, o outro no Milan, ambos até 1992), é que os dois voltariam a falar-se. Por culpa de uma campanha publicitária de uma empresa de manteiga. “O slogan”, conta Völler, “era ‘tudo em manteiga outra vez’, um provérbio alemão que significa que está tudo bem outra vez. A ideia do anúncio era juntar-me a mim e ao Rijkaard, sentados a uma mesa, a tomar o pequenoalmoço. E resultou. Nesse ambiente bucólico, ele pediu-me desculpa e ficámos amigos de novo”, diz Völler, com uma boa dose de humor, barrada com alguma manteiga. Desta vez sem cuspo.

EUA-1994

Os jogos de madrugada, o doping de Maradona, as surpresas do Leste, o autogolo de Escobar, os cincos golos de Salenko num jogo, o de Romário de cabeça entre suecos, as defesas de Preud’homme… O Mundial-94 é um prato cheio de ingredientes apetitosos e tudo acontece na terra das oportunidades. Isso mesmo, o futebol chega à terra do Tio Sam. É uma decisão arrojada da FIFA, que lhe vale protestos de Marrocos, o outro candidato à organização. Mas a verdade é que aquele país africano só tem dois estádios construídos até à altura da votação e sem instalações desportivas para comportar um evento desta magnitude. Ao contrário dos EUA, claro está, com tudo pronto ainda antes do prazo. Outros tempos, outras culturas.

É um belo Mundial, com estádios a abarrotar e o recorde de 3,5 milhões de espectadores. Aqueles que saem de casa para apoiar a sua equipa de hóquei no gelo, basebol, basquetebol ou futebol americano, também o fazem pelo soccer. Faça sol, faça muito sol. Há jogos em que está a pique e não se notam sombras no relvado. Como o inaugural Alemanha-Bolívia, a 17 Junho. Acaba 1-0, golo de Klinsmann, mas o dia é mais recordado pela fuga de OJ Simpson num Bronco branco pela Interestadual 405.

Acusado de assassinar a ex-mulher e o seu namorado, o antigo jogador de futebol (da bola oval, atenção) não aparece na esquadra para se entregar, como o previsto pelos seus advogados. Ao invés, foge e essa corrida dura 80 quilómetros – mais de duas horas de transmissão televisiva em directo, cerca de 95 milhões de telespectadores. Com este início de Mundial, poderia o resto da competição ser mais efervescente? Maradona encarrega-se de dizer sim. Começa bem mas acaba mal. Do formidável golo à Grécia até à saída do relvado de mão dada com uma senhora médica para um controlo antidoping (positivo, escusado será dizer) é um golpe que a Argentina acusa de forma inapelável, com a eliminação à primeira, nos oitavos-de-final, pela Roménia do trio Hagi-Dumitrescu-Raducioiu.

O caminho para a final descobre mais heróis, como a Bulgária de Stoitchkov e Letchkov (e ainda Balakov mais Iordanov e Kostadinov), a Suécia de pistoleiro Kennet Andersson e do piruetas Tomas Brolin (e ainda Thern mais Schwarz). Seriam eles a discutir a medalha de bronze. A final é entre Brasil e Itália. Se Sacchi leva uma equipa presa por arames (Baresi é o exemplo mais gritante do cansaço acumulado), Parreira tem o mérito de imitar o italiano com a geração limpa pára-brisas numa alusão ao jogo para o lado do meio-campo ultra defensivo (Mauro Silva, Dunga, Zinho e Mazinho). Ganha o Brasil, como podia ter sido a Itália, numa final insonsa, resolvida nos penáltis. Aí, decide Roberto Baggio com um pontapé para as nuvens. “Foi para o Senna”, justifica o italiano numa alusão ao piloto brasileiro de F1, que morrera, em Maio desse ano no GP São Marino.

FRANÇA-1998

Ausente de um Mundial desde 1986, a França volta ao grande palco com estilo na qualidade de anfitriã. Pela segunda edição seguida, o Comité Executivo da FIFA nega a candidatura de Marrocos, desta vez por 12 votos contra sete, sem necessidade de ir a segunda ronda. Para a vitória da França, muito conta a presença de Michel Platini como chefe da organização. No dia em que a França ganha a organização, o que acontece pela segunda vez depois daquela experiência em 1938, Platini esboça um desejo, o da final entre França e Brasil. Coincidência ou não, a decisão é mesmo entre esses dois países no primeiro Mundial com 32 selecções e no último sem Portugal (eliminado por Alemanha e Ucrânia).

Antes de começar a prova, a imprensa francesa já está em depressão. Aimé Jacquet (treinador de Chalana no Bordéus entre 1984 e 1986) convoca 28 jogadores em vez dos previstos 22 e é acusado de paleolítico. Os seus resultados nos particulares também não são assim tão famosos, motivo pelo qual o jornal “L’Équipe” escreve: “Não é o homem para a nossa selecção!” Um mês depois, a resposta com a Taça na mão. Mas como? Tudo começa com o beijo do central Blanc na careca do guarda-redes Barthez antes de todos os jogos. Todos não. Como Blanc (autor do primeiro golo de ouro num Mundial, 1-0 ao Paraguai, nos oitavosde-final) é expulso na meia-final com a Croácia, o ritual não se repete na final vs. Brasil.

Et allors? Barthez vai para a baliza com a testa beijada por toda a França. Toda não. Há um político de extrema-direita que maltrata diariamente a selecção, apenas e só porque tem jogadores de origens tão variadas como Argélia (Zidane), Arménia (Djorkaeff), Gana (Desailly), Nova Caledónia (Karembeu), Argentina (Trezeguet), Cabo Verde (Vieira). O homem, que tem nome (Le Pen), classifica a selecção francesa de artificial, recusa-se a chamar-lhe equipa nacional e acusa a maioria dos jogadores de não saberem ou ignorarem a Marselhesa – hino francês.  Será? Não, as imagens desmentem-no por completo. Uns mais que outros, os jogadores cantam alto e bom som o hino. E não, os resultados comprovam-no.

Na final, há um rapaz que se evidencia. E não, não é Ronaldo fenómeno – esse é vítima de um ataque de epilepsia no seu quarto de hotel, horas antes do jogo, e mais parece um fantasma em campo. Falamos, isso sim, de Zidane. Poucos jogadores têm a sorte (e a competência) de marcar dois golos numa final. Poucos jogadores têm o talento para superar o ídolo de infância (o uruguaio Francescoli). Poucos jogadores têm arte e carisma para receber uma ovação de 600 mil pessoas a chamá-lo “presidente” em pleno Campos Elísios. “A sua relação com a bola é tão íntima que até parece brasileiro”, desabafa Carlos Alberto Parreira, então o seleccionador da Arábia Saudita, surpreendentemente demitido após o segundo jogo da fase de grupos.

COREIA DO SUL/JAPÃO-2002

Dez golos em 24 jogos. Estamos a falar de Ronaldo fenómeno. E estamos a falar do balanço de três épocas: 1999-2000, 2000-01 e 2001-02. O avançado lesiona- -se duas vezes nesse período e passa mais de ano e meio deitado numa cama ou dentro de clínicas de recuperação. Será ele um dos convocados para o Mundial? Quer dizer, a concorrência é feroz para o ataque: temos Romário, a figura do povo e até do presidente Fernando Henrique Cardoso, e até Jardel. O primeiro é o melhor marcador do campeonato 2001, o segundo é Bota de Ouro (prémio para o mais eficaz na Europa) ao serviço do Sporting.

A expectativa é imensa no dia em que Luiz Felipe Scolari entra na sala da CBF e divulga os 23 convocados. Saem os guarda-redes, depois os laterais, a seguir os centrais, os médios e finalmente os avançados: Ronaldo, Edilson e Luizão. O mundo desaba e os críticos atacam sem dó nem piedade Felipão. Acusam-no de tudo e mais alguma coisa. Lembram a medíocre Copa América-2011 (“podem colocar-me no Guiness Book”, desabafa Scolari depois de eliminado nos quartos-de-final pelas Honduras) e ainda a fraca campanha na qualificação (o Brasil só se apura na última jornada, com o 3-0 sobre a Venezuela).

Contestado, Scolari não pestaneja. “Esta é a minha família e é bom que todos nós puxemos para o mesmo lado com o objectivo de chegarmos ao penta”, reage. Firme seguidor do princípio dos três “erres” (Rivaldo, Ronaldinho e Ronaldo), nem se deixa abalar pela lesão do capitão Emerson na véspera do arranque do primeiro Mundial disputado a dois (Coreia do Sul/Japão) e na Ásia. A braçadeira salta para Cafu e vai ser o lateral a levantar a taça. Isso mesmo, o Brasil é penta com uma campanha sem qualquer deslize: sete vitórias em sete jogos. Scolari sabe-a toda. Ronaldo também. Num mês, o avançado dissipa qualquer dúvida e diz alto e bom som “contem comigo”, dentro do campo, com a bola nos pés. Não há um só segredo mas sim vários, como concentração, determinação e, também, alguma manha. De um dia para o outro, o seu peso aumenta consideravelmente e, conhecendo o “olho vivo” dos jornalistas, faz um corte de cabelo à Cascão, consagrado personagem de BD para dispersar as atenções sobre a “barriga”. O que não passa despercebido é a avalanche de golos: oito em seis jogos, com direito a bis na final contra a Alemanha, com ajuda de Kahn no 1-0.

Terminado o jogo, Ronaldo não esquece o guarda-redes e vai confortá-lo. Campeão moral e não só. Afinal, Ronaldo factura o título de melhor marcador do torneio. E ultrapassa aquela barreira dos seis golos, inquebrável desde 1974 (Lato-7). Nesse dia, 30 de Junho, também se joga a final do Mundial alternativo entre as piores selecções do mundo. De um lado, Butão (202.ª classificada no ranking FIFA). Do outro, Montserrat (203.ª). Acaba 4-0 para o Butão, com hat-trick de Wangay Dorji. Outro fenómeno.

ALEMANHA-2006

Muito se fala agora da votação para o Mundial-2022 no Qatar, mas a de 2006 é escandalosa até mais não. Os candidatos são cinco, mas o Brasil abdica três dias antes da votação. Sobram quatro. No dia 6 de Julho de 2000, em Zurique, a Alemanha lidera sem maioria: dez contra seis da África do Sul, cinco da Inglaterra e três de Marrocos. Esta última candidatura sai, por lei, e agora vai-se a votos de novo. Alemanha e África do Sul empatam a 11, Inglaterra só tem dois votos.

É precisa uma terceira ronda, é inédito. Como tal, a decisão é adiada um dia. Nessa noite, um jornal satírico alemão chamado “Titanic” envia cartas aos representantes da FIFA com ofertas do arco da velha, como presunto da floresta Negra e relógios de parede em troca de votos pela Alemanha. O delegado da Oceânia não aguenta a pressão e abstém-se de votar. Problema: foi instruído pela sua confederação para a votar na África do Sul. Como não o faz, a Alemanha ganha 1211. Se o fizesse, haveria empate. Aí seria o próprio presidente da FIFA a desempatar e Sepp Blatter é pela África do Sul – o sonho é adiado até 2010. Em 2006 é a Alemanha a organizar e nada falha. Os estádios estão prontos antes do tempo e as comunicações entre as 12 cidades são exemplares. É o primeiro Mundial que começa e acaba com golos de defesas. O primeiro é de Lahm (Alemanha-Costa Rica), o último é de Materazzi (Itália-França).

Se quisermos ser mais precisos ainda, o último até é de Grosso, o homem que dá o título mundial à squadra azzurra. Itália essa que chega à Alemanha envolta numa polémica inacreditável de corrupção no campeonato. É uma espécie de vale-tudo, mais conhecido como calciocaos, um escândalo entre dirigentes e árbitros que envolve a campeã Juventus mais Fiorentina, Lazio, Milan e Udinese. A embrulhada é tal que a contestação é imensa. Os jogadores são diariamente questionados pela imprensa e o ambiente não é o melhor. Com Marcelo Lippi ao leme, a squadra ultrapassa obstáculos com maior ou menor dificuldade (Austrália 1-0 aos 90’+5, Ucrânia 3-0) até chegar ao grande jogo do Mundial, com a Alemanha.

Na meia-final, a Itália demonstra que a união faz a força (2-0 após prolongamento) e merece, logo ali, levar a Taça. Mas tal só acontece depois de uma decisão resolvida nos penáltis com a França, na noite em que Zidane é mais Mr. Hyde do que Dr. Jekyll e auto expulsase no prolongamento com uma cabeçada no peito de Materazzi numa agressão ainda hoje muito falada. Longe de ser agressão, pelo menos física, é a história de Graham Poll. O árbitro inglês é um dos favoritos para dirigir a final, mas nem sequer passa à segunda fase (ao contrário da selecção do seu país), por culpa de um clamoroso erro ao mostrar três cartões amarelos ao mesmo jogador (o defesa croata Simunic, aos 61’, 90’ e 90’+3) contra a Austrália.

ÁFRICA DO SUL-2010

África. A FIFA (ou melhor, o presidente Sepp Blatter) tem a ideia fixa de fazer um Mundial no continente negro, e para tal só aceita candidaturas africanas. A da África do Sul é mais vistosa, ao lado das de Marrocos e Egipto. Com 14-10-0 em votos, Nelson Mandela consegue mais um feito histórico na sua carreira e ergue a taça do mundo em jeito de celebração. Das 208 equipas filiadas na FIFA, 204 entram na fase de qualificação, incluindo a campeã do mundo (Itália). No total, 32 viajam para a África do Sul e só uma levantará a taça.

Há muitos favoritos, mas nenhum deles é apoiado pelo polvo Paul. Pescado por uma alemã na Ilha de Elba em Itália em Janeiro de 2008, o molusco é a grande figura do aquário marinho de Oberhausen, na Alemanha, onde ganha protagonismo inusitado por prever correctamente os resultados da Alemanha. No Euro-2008, acerta quatro prognósticos e erra dois (Croácia na fase de grupos e Espanha na final). No Mundial2010, a sua eficácia é tremenda: oito em oito. Antes dos jogos, Paul é colocado perante duas caixas com mexilhões, o seu alimento: uma com a bandeira alemã, outra com a bandeira do adversário. A caixa escolhida para se alimentar é interpretada como o vencedor do jogo. Quando Paul prevê a vitória sobre a Inglaterra, nos oitavos-de-final, ninguém imagina um espectacular 4-1. O mesmo acontece na ronda seguinte, com a Argentina (4-0).

Quando Paul escolhe a Espanha, aí o caldo está entornado. Um golo de Puyol dá razão ao polvo, que também acerta na vitória espanhola sobre a Holanda em Joanesburgo – só não diz que o golo é de Iniesta, no prolongamento. Vuvuzelas. Isso mesmo, continuamos com histórias laterais ao Mundial. É uma espécie de corneta com um metro de comprimento que ganha exposição mediática na Taça das Confederações-2009. A maior parte dos jogadores queixam-se,  mas o que se pode fazer? Também os guarda-redes dizem mal da bola (Jabulani) e a FIFA nada faz. Aqui o caso é ligeiramente diferente porque a FIFA está do lado dos jogadores, entre eles Evra, Tevez e Ronaldo. O argentino é mais explícito que os outros dois. “Não conseguimos falar dentro de campo com aquele barulho das vuvuzelas. Eu bem tentei falar com Higuaín e Messi mas nada. Temos de nos entender pelo olhar.”

O problema é que a SAFA (federação sul-africana de futebol) defende o instrumento como parte essencial do futebol na África do Sul e a FIFA não tem outro remédio senão aceitá-la. A ela, vuvuzela, cujo som ininterrupto e extremamente alto causa irritação entre os seus ouvintes e dificulta a comunicação entre jogadores e treinadores. Não é assim, ó Tevez? Causa-efeito ou não desta falta de empatia entre as 31 selecções e a África do Sul, a verdade é que a equipa anfitriã é a primeira de sempre a não passar a fase de grupos, embora se despeça com uma vitória sobre a França.

BRASIL-2014

Campeã 1954, vice 1966, campeã 1974, vice 1982, vice 1986, campeã 1990, vice 2002 e campeã 2014. A grande Alemanha está de volta. À Alemanha, queremos dizer. A selecção desembarca de manhã em Berlim, com cinco horas de atraso, e 400 mil adeptos à sua espera. O avião faz um voo rasante nas Portas de Brandeburgo e é o delírio da massa associativa. Vale como um golo na final. Do aeroporto até ao centro, todos os jogadores consomem cerveja como se não houvesse amanhã. Chegados ao ponto de interesse, Kroos rouba a cena. E o microfone. Em jeito de homenagem a Klose, o melhor marcador de sempre de Mundiais, com 16 golos, diz ininterruptamente “Deus do futebol” e a multidão imita-o. É a loucura. É a festa mais que merecida da tetracampeã Alemanha num Mundial cheio de curiosidades. Ora veja

Dos 2-0 ao 5-0 vs Brasil, a Alemanha demora só 222 segundos. A saber: 44 segundos do 2-0 de Klose aos 3-0 de Kroos; 13 para o 4-0 de Kroos; 165 para o 5-0 de Khedira

Em 126 minutos de jogo, o espanhol Diego Costa não faz um único remate à baliza (entre três tentativas ao lado e duas por cima)

Nos últimos dois jogos, o Brasil sofre 10 golos em tão-só 17 remates à baliza (12 da Alemanha e cinco da Holanda)

Messi não toca uma vez na bola dentro da área da Holanda em 120 minutos, na primeira meia-final de sempre sem qualquer golo

A Costa Rica só sofre dois golos (Uruguai, de penálti, e Grécia) em cinco jogos. Mérito para o guarda-redes Keylor Navas, autor de 21 defesas em 23 remates à baliza, qualquer coisa como 91% de eficácia

James (Colômbia) é o primeiro jogador desde Gerd Müller (RFA-1970) a marcar nos primeiros cinco jogos no Mundial de estreia

O suíço Xherdan Shaqiri é o primeiro jogador de sempre a assinar um hat-trick com o pé esquerdo (3-0 às Honduras).

Com o golo de cabeça a Portugal, o ganês Asamoah Gyan já é o melhor marcador africano em Mundiais (6), à frente do camaronês Roger Milla (5).

Pela primeira vez na história, a Alemanha tem mais golos marcados que o Brasil (224-221). Também aqui o 7-1 fala mais alto.

O Brasil comete 31 faltas com a Colômbia, o número mais elevado dos pentacampeões em 104 jogos de Mundial.

RÚSSIA-2018

O Mundial já não é o que era? A pergunta nada tem de retórico, juro. Afinal, sempre há equipas sensação nestas andanças futebolísticas de alto gabarito (e faz parte do folclore escrever, no final, sobre todo o tipo de cenários e surpresas, fazer listas com os melhores, os piores, os espantosos, as desgraças, you name it).

A ouvir há poucochinho o treinador alemão (a cabeleireira da minha mãe gosta especialmente dele, espero que não seja pelo penteado) referir os erros cometidos com o México e à necessidade – urgência? – de aprender com os desacertos e as escorregadelas, vêem-me à lembrança as conferências de imprensa dadas em catadupa pelos jogadores portugueses. À sacramental pergunta «o que tem a dizer sobre o comportamento da seleção no jogo com Marrocos?», os nossos ladinos rapazes fecham-se em copas e, incapazes de analisarem a situação com frieza, debitam tiradas do género «vencemos, não foi? isso é que importa!». Cá para mim, deviam orgulhar-se da vitória, escusado será dizer, mas ser capazes, ao mesmo tempo, de reconhecer a evidência: temos de jogar melhor, temos equipa para jogar melhor, temos de vencer e convencer. Estamos à beira de fazer história no Mundial de futebol, caramba!

Caso contrário, estamos feitos ao bife. Tártaro? Antes fosse. É mais bife stroganoff, às tirinhas. Para tal, é preciso sair daqui da Rússia e voltar a Portugal, mais concretamente ao bairro de Alvalade. Sai do metro, ali na praça, do lado do cinema, e segue em frente até virar na primeira à esquerda. Agora sim, podemos conspirar à vontade. Estamos na Marquesa de Alorna. Quem?

Ora aí está. A senhora chama-se Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre (futura Marquesa de Alorna). Vive 88 anos, uma proeza no século XIX. Nesse considerável hiato temporal, Leonor leva uma vida deveras atribulada. Para abrir o apetite, é feita prisioneira aos oito anos, juntamente com mãe e avó, no convento de São Félix em Chelas, por ser filha do D. João de Almeida (2.º Marquês de Alorna), suspeito do conhecimento do crime dos Távoras. A ira do Marquês de Pombal só lhe passa com a subida ao trono de D. Maria I. Aí, Leonor é libertada finalmente em 1777, aos 27 anos. Na prisão, estuda as obras de Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Diderot, entre outros, e dedica-se à composição de poesia, que lhe valerá uma obra da sua aujtoria chamada Poesias de Chelas. Além de escritora, é pintora e tradutora (domina admiravelmente quatro idiomas, com excelência no francês).

Em liberdade, Leonor demora dois anos a encontrar marido e casa-se em 1979 com Karl von Oyenhausen-Gravenburg. Vivem em Viena, por conveniência de trabalho miitar do brigadeiro. Lá, consomem o amor com filhos e mais filhos. Ao todo, oito. A terceira é Juliana Maria Louise Sofia Carolina von Oyengauzen, nascida em 1782. Aos três anos, estabelece-se em Portugal por força do novo trabalho da mãe como dama de honor de Carlota Joaquina. Tal como Leonor, também Juliana faz-se mulher de letras. Só que sofre um desgosto enorme quando é obrigada a casar-se em 1800 com José Maria de Aires, conde de Ega e recém-empossado embaixador de português da corte espanhola em Madrid. É lá que Juliana encontra o verdadeiro amor, o barão Grigori Alexandrovitch Stroganov.

E agora? Grande cambalacho. Indiferente à opinião das pessoas reais ou surreais, Juliana torna-se mesmo amante de Stroganov. Até 1807, altura em que o casal regressa a Portugal, onde o conde de Ega recebe com entusiasmo as tropas de Napoleão e até faz parte do novo governo liderado por Junot, na organização de festas in. Coincidência das coincidências, Juliana encosta-se a Junot e torna-se sua amante oficial. E agora? Grande cambalacho, parte 2. A vida dá muitas voltas e o conde de Ega volta a sair de Portugal, novamente na companhia de Juliana, agora à pressa, até França, devidamente protegido por Napoleão a troco de uma pensão de 60 mil francos por ano.

O dinheiro não é tudo. Pensa Juliana. Executa Juliana. Em 1811, abandona o conde e corra para os braços de Stroganov, então a curtir o ambiente na Suécia. Dez anos depois, Stroganov é chamado pelo imperador Nicolau para trabalhar em São Petersburgo e faz-se acompanhar por Juliana – além da sua mulher, claro. E agora? Grande cambalacho, parte 3. A sociedade daqui (de São Petersburgo) vai aos arames com o affaire e Stroganov convive com a crise na boa-vai-ela, sem ligar às coscuvilhices. Quando a mulher morre, em 1824, marca casamento com Juliana em 1827, na cidade de Dresden (capital da Saxónia).

A cerimónia é mal vista pela sociedade. Mais uma vez, Stroganov passa por cima desse pseudo-dilema com uma classe do além, até porque vive feliz com Juliana até ao fim dos seus dias, em 1857. Trinta anos de amor, os últimos cinco a comer bife à Stroganov. Como assim? O barão piora gradualmente de saúde e acaba por cegar. Nesses tempos, Juliana é quem lhe dá de comer e corta-lhe o bife às tirinhas. Lá está, bife à Stroganov. Às tirinhas.

Que é como Portugal joga, sem alma nem nada. Valha-nos São Ronaldo, primeiro, e São Patrício, depois. De resto, uma pobreza franciscana. Excepção feita às bolas paradas. Aí, alto e pára o baile: dos quatro golos, um é de penálti, outro de livre directo e mais um de canto curto – em falta, só o frango de De Gea. Falta só um jogo na fase de grupos, o do desempate. Ou vamos (como em 1966, 2006 e 2010) ou já fomos (1986, 2002 e 2014). Com o Irão, basta-nos o empate para seguir em frente. Isto se queremos continuar à Stroganov. Se nos aventurarmos em conciliar vitória com jogo bonito, é um bife tártaro. Precisamos de futebol cru, sem cozinhados nem molhos. Num prato apresentável, de preferência.

Isto tudo para dizer o quê? Simples, a França reage à desilusão do golo do Éder em 2016 e saca o título mundial, só com vitórias na fase a eliminar: Argentina 4-3, Uruguai 2-0, Bélgica 1-0 e Croácia 4-2. Mbappé e Griezmann jogam enormidades e marcam quatro golos, cada. Fantastique.

(ah é verdade, Messi e Ronaldo falham penáltis para defesas de guarda-redes de países começamos por i — Islândia / Irão — e são eliminados no mesmo dia, 30 Junho)

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