Único clássico aberto até de madrugada? Porto-Benfica de 1986
Porto e Benfica, juntos ao vivo e a cores desde 1931. Em tantos clássicos, alguns até no estrangeiro, só um começa num dia e acaba no outro. Para tal, é preciso recuar até Dezembro 1986, um quarta-feira, dia 17. No fim-de-semana anterior, o improvável registo de 19 golos nos jogos de Porto e Benfica, relativo à 14.ª jornada da 1.ª divisão.
A movida começa sábado à noite. Nas Antas, Porto vs Farense. Duas equipas campeãs. A do Norte, da 1ª divisão. A do Sul, da 2ª divisão, zona sul. Uma é um luxo, ainda sem qualquer derrota no campeonato, outra nem tanto, última classificada e só com uma vitória (precisamente na ronda anterior: 1-0 ao Braga). Uma só joga com portugueses, e todos internacionais, a outra tem sete brasileiros, um espanhol, um guineense e dois portugueses (o central Germano, formado no Sporting, e o médio Pereirinha, pai do Pereirinha do Sporting).
Chove a potes. Para harmonizar com as condições atmosféricas, Porto e Farense atiram-se ao ataque, sem preocupações defensivas. O Porto, porque sim e também porque não tem três titulares da defesa (Lima Pereira, Eurico e Inácio substituídos por André, Eduardo Luís e Quim), o Farense porque baseia o seu jogo no toque abrasileirado do seu plantel, sem disciplina táctica, o que, bem vistas as coisas, é um suicídio perante um bloco eficaz como o FC Porto.
Daí que já houvesse 2-0 aos três minutos, 3-0 aos 14’ e 4-0 aos 24’. O Farense dá o ar da sua graça (4-2) e o FC Porto responde na mesma moeda. Chega-se ao intervalo com 6-2. Ui, oito golos na primeira parte. Um vendaval de futebol. Na segunda parte, os guarda-redes abrem melhor os olhos e a pontaria é igualmente menos certeira, até porque um forte nevoeiro cai nas Antas e impede adeptos e jornalistas de ver os jogadores, quanto mais a bola.
Gomes, esse, volta a ser o goleador de serviço e completa o penta. É a terceira vez que marca cinco vezes em 90 minutos na 1.ª divisão, numa tradição bianual que começa em 1982 com o Estoril (6-0), prossegue em 1984 com o Vizela (9-1) e acaba em 1986 com o Farense (8-3). Por falar nisso, é o terceiro 8-3 na história do campeonato, depois de um no Benfica-Vitória SC 1943 e de outro no Atlético-Boavista 1955.
Além desses números pouco vistos, a curiosidade de o FC Porto actuar com 11 portugueses, e todos internacionais. Zé Beto (duas internacionalizações); João Pinto (21), Eduardo Luís (4), André (7) e Quim (1); Frasco (19), Jaime Pacheco (25), Sousa (20) e Jaime Magalhães (9); Gomes (45) e Futre (13). Ao todo, 166 internacionalizações por Portugal. O Farense, nem uma para amostra (só se for pela Espanha, cortesia Paco Fortes), e repleto de brasileiros, a começar pelo treinador, um tal Cláudio Garcia.
Eis os golos à lupa
1-0 Futre (1’) Ganha um ressalto à entrada da área, finta três defesas e atira à saída do guarda-redes
2-0 Futre (3’) Lançado por Jaime Pacheco, entra na área, finta o guarda-redes e remata em queda
3-0 Gomes (14’) Penálti, por falta de Celso sobre Jaime Magalhães
4-0 João Pinto (24’) Cruzamento-remate da direita
4-1 Pereirinha (27’) O médio aproveita falha de André para bater Zé Beto
4-2 Ciro (39’) Remate em arco, no limite da área
5-2 Gomes (40’) Futre vai à linha de fundo e cruza para trás, onde aparece o capitão
6-2 Gomes (44’) Cruzamento da direita de João Pinto e cabeceamento do avançado
7-2 Gomes (47’) Cruzamento de Futre na esquerda ao segundo poste, onde surge Jaime Magalhães a amortecer para Gomes
8-2 Gomes (77’) Penálti cometido por Nilson sobre Futre
8-3 Jorge Andrade (90’) Penálti sobre Paco Fortes
Nem 24 horas se passam e o país volta a abrir a boca de espanto, agora com a goleada do século no dérbi do José Alvalade. Em dia de chuva, um dilúvio de golos. Ao intervalo, só 1-0. No final, 7-1. É o dia dos Manéis. Com Manuel José no banco, o primeiro grande homenageado da tarde é Manuel Marques, o popular massagista do Sporting, que se junta à equipa na foto da praxe.
No final do jogo, a bancada dos adeptos benfiquistas, que só vê dois golos (o 1-0 de Mário Jorge e o 2-1 de Wando), está repleta de bandeiras queimadas, cartões de sócios no chão e almofadas rasgadas. Carlos Manuel, a locomotiva do Barreiro, faz rewind. “Houve alturas em que havia oito jogadores do Benfica e apenas um do Sporting dentro da área e a bola ia parar ao do Sporting, é daqueles jogos que acontecem de 50 em 50 anos.” O central Dito também afina pelo mesmo. “A goleada não se explica, sofre-se. Jogámos da mesma maneira de sempre, com marcação à zona, mas o Sporting foi mais forte. Nada a dizer sobre a justiça do resultado.” Para Rui Águas, a goleada é dura de aceitar. “Primeiro, perdemos a Supertaça para o FC Porto [4-2 na Luz]. Quando ainda estávamos a recompor dessa derrota, fomos goleados pelo Sporting. Naquele tempo, a opinião pública e a imprensa não eram tão agressivos como agora, mas mesmo assim sofremos bastante.”
Convidado especial desse jogo é Marlon Brandão. Artista da bola no Brasil, com a camisola do Santa Cruz, o número 10 chega a Lisboa para assinar pelo Sporting. “Era para aterrar na terça-feira mas o Sporting insistiu tanto, mas tanto, para que chegasse a tempo de ver o dérbi, que não dormi durante duas noites entre viagens de avião e saí do Brasil sem a família saber.” Bem vistas as coisas, desde a tribuna VIP, o que dizer desse dérbi? “Fiquei impressionadíssimo com o Sporting, até porque o Benfica era uma equipa de fama mundial.”
Eis o retrato dos oito golos
1-0 Mário Jorge (15’) Remate de Manuel Fernandes para defesa de Silvino e recarga de Mário Jorge
2-0 Manuel Fernandes (50’) Canto da esquerda de Zinho e cabeceamento de Manuel Fernandes a antecipar-se a Silvino
2-1 Wando (59’) Livre de Carlos Manuel da esquerda e cabeceamento de Wando na pequena área
3-1 Meade (65’) Canto da direita de Mário Jorge, toque de Litos ao primeiro poste e encosto de Meade
4-1 Mário Jorge (68’) Livre de Zinho na esquerda, Manuel Fernandes cabeceia para defesa de Silvino e recarga de Mário Jorge
5-1 Manuel Fernandes (71’) Cruzamento atrasado da esquerda de Zinho e salto de peixe de Manuel Fernandes
6-1 Manuel Fernandes (82’) Oceano rompe entre três adversários e ganha o ressalto, que isola Manuel Fernandes para o remate na marca do penálti
7-1 Manuel Fernandes (82’) Oceano isola Silvinho, que atira de primeira para defesa incompleta de Silvino para a recarga de Manuel Fernandes
Segunda-feira, terça-feira, quarta-feira. Passam-se três dias do 7-1 e eis o Benfica no Porto para jogar um particular, a propósito da inauguração do rebaixamento das Antas. A data já está marcada para o dia 17 Dezembro 1986 com relativa antecedência e só uma infeliz coincidência (para o Benfica, claro) é que permite a ida às Antas na ressaca de um resultado histórico, com implicações desportivo-sociais (atenção, o Benfica apanha sete e continua a liderar o campeonato).
A festa das Antas começa às 20 horas, com um desfile de 700 atletas, em representação de 90 clubes. Poderiam ser muitos mais se Boavista e Sporting também aceitassem o convite, só que estão de relações cortadas. No átrio do balneário, a iniciativa mais tocante é uma homenagem póstuma a José Maria Pedroto (campeão nacional como jogador e treinador, feito inédito no clube até aos tempos de Oliveira e agora Conceição), através do descerramento de uma placa com a sua imagem.
No relvado, a expectativa dá lugar a aplausos infinitos com a entrega da taça de campeão nacional 1985-86 ao capitão Fernando Gomes. Segue-se outra ovação enorme com a entrada em campo do brasileiro Walter Casagrande, contratado ao Corinthians e que acabara de jogar o Mundial do México-86. Com tanta cerimónia, o jogo previsto para as 2130 só começa às 2300. Eis as equipas
FC Porto Zé Beto; João Pinto, Eduardo Luís, André e Quim; Frasco, Jaime Magalhães, Jaime Pacheco e Sousa; Futre e Gomes (jogam ainda Elói, Madjer, Lima Pereira, Juary, Bandeirinha e Mlynarczyck) Treinador Artur Jorge
Benfica Silvino; Dito, Samuel, Edmundo e Álvaro; Shéu, José Luis, Tueba e Nunes; Diamantino e Chiquinho Carlos (jogam ainda Vando, Rui Pedro e César Brito) Treinador John Mortimore
Nas bancadas, 70 mil pessoas assistem ao empate com golos de Gomes, após belíssima jogada de entendimento com Futre, e Chiquinho Carlos, num slalom maradoniano. José Guedes apita para o final da partida e nem sabe o que fazer. Prolongamento? Penáltis? Nada de nada? Os dirigentes portistas escolhem o bloco B, até porque o troféu para o campeão vale 1200 contos. No desempate por penáltis, já a madrugada vai alta, decide quem? Famos fer. André (1-0), César Brito (à barra), Elói (2-0), Chiquinho (2-1), Juary (3- 1), Nunes (para fora), Jaime Pacheco (defesa de Silvino), Dito (3-2) e Mlynarczyk (4-2). Ya, Mlynarczyk. Na época seguinte (1987-88), o guarda-redes polaco também é o herói de uma eliminatória da Taça de Portugal resolvida nos penáltis, vs Boavista, no Bessa.