Nilson. “Não sei porquê mas costumava engatar com o Benfica”
Quarta-feira, 24 de Julho de 1392. Os dias avançam à maneira islâmica e hoje, véspera de fim-de-semana, é feriado religioso. Teerão faz ponte e as ruas estão mais vazias de conteúdo, sem tantos carros nem peões.
Continuamos no Azadi, o hotel da selecção iraniana. À frente deste majestoso edíficio de 26 andares, uma gigantesca montanha que daqui a duas semanas se cobrirá de neve para alegria dos adeptos de esqui. Por agora, a cor predominante é o verde. No meio desse colorido, destaca-se uma muralha com guardas armados em pontos estratégicos, no cimo de cada torre. É uma prisão para políticos, drogados e alcóolicos. Aqui é assim, não se pode beber. Ponto. E não há álcool à venda em nenhum supermercado, bar ou discoteca – aliás, as poucas discotecas daqui funcionam como se de um concerto se tratasse: as pessoas entram, sentam-se e ouvem música. Quanto muito, em restaurantes, há champanhe e cerveja (Bavaria) mas tudo tudo tudo tudo sem álcool. Agora, cafés e chás é o que se quiser. E estamos num desses sítios, a abarrotar de opções entre chá verde, preto, vermelho, azul, cinzento e sabemos lá o que mais, quando vislumbramos uma cara conhecida. Mas como, se estamos no Irão?
Este é aquele, está a ver? O do Vitória de Guimarães, o guarda-redes, o… bolas, está a escapar-se-me o nome. Nilson, pois não? responde-nos o brasileiro a estender a mão direita. Este é que é o “cara” conhecido, Nilson. O quem está respondido, falta agora o resto: onde, o quê, porquê. Nilson desmarca-se para ir jantar com o resto da equipa mas marca o ponto de encontro para dali a uma hora. Meu dito, meu feito. Nilson é o guarda-redes do Persopolis, uma das maiores e melhores equipas do Irão. Os empregados do hotel metem-se com ele em farsi (língua local), Nilson responde-lhes à letra, 1-0 para o brasileiro. “Eles são todos do Esteghlal, o arqui-rival do Persopolis, e dizem-me que vou sofrer amanhã quatro golos. Isso queriam eles…” Acabada a brincadeira, Nilson senta-se no sofá à nossa frente e começa a debitar informação e mais informação e mais informação sobre tudo e mais alguma coisa, 2, 3, 4, 5-0 para o brasileiro. É goleada certa, até pelo estilo descontraído tu cá-tu lá.
Estás aqui a fazer o quê?
Vim ver o Irão-Tailândia.
Você é maluco mas é. Que é isso? Tem de vir cá é ver o Persopolis-Esteghlal, é uma loucura, o estádio cheio, 100 mil pessoas lá dentro e sei lá quantas mil lá fora, sem lugar.
Agora é a minha vez, estás aqui a fazer o quê?
Estava para acabar a carreira no Vitória, depois de sete anos a jogar lá, quando recebi uma chamada do Manuel José a perguntar-me se queria jogar aqui. No imediato, fiz-me imensas perguntas. Depois, pensei melhor e porque não? Isso foi há um ano e pouco. Vim para cá e continuo aqui. Gosto muito disto. Eu, a minha mulher e a minha filha. Mas a minha filha demorou…
Então?
Nos primeiros tempos aqui em Teerão, só me falava de Guimalães, Guimalães, tudo era Guimalães. Ela nasceu lá mas a adoração pela cidade é uma coisa do outro mundo. Vê bem, há um infantário à frente da nossa casa em Guimarães e ela gostava de brincar com essas crianças. Sei lá como mas ela ainda não sabia andar nem falar direito e já se punha em bicos de pés na nossa cozinha na hora certa, pouco depois do almoço, quando os miúdos saiam do infantário para um parquezinho.Ficava toda agitada e encostava-se à janela. Aí saíamos de casa, levamo-la ao parquezinho e ela então corria para todo o lado com as outras crianças. Incrível.
E o Nilson em Guimarães?
Uiiiii, isso dava um livro, tantas aventuras. Assim de repente, fui a uma final da Taça de Portugal e apurei-me para a Liga dos Campeões dois anos depois de descer à 2.ª divisão.
Conte lá isso melhor.
Descemos de divisão em 2006. No ano seguinte, aquilo estava mal e às tantas estávamos em 12.º lugar. Era preciso reagir. De repente, pim pim pim pim, oito vitórias seguidas, incluindo um 3-0 em ao líder Rio Ave com o D. Afonso Henriques a abarrotar, e já estávamos lá em cima. Que alegria aquela tarde em Gondomar: ganhámos 2-0 e o Rio Ave perdeu em Olhão. Quando o Rio Ave sofreu o primeiro golo, nem imaginas a explosão de alegria. Dentro e fora do estádio. Sim, lá fora havia centenas de adeptos do Vitória. Eu só chorava, que sonho. Subimos de divisão aí. No ano seguinte, fomos terceiros na 1.ª divisão e apurámo-nos para a pré-eliminatória da Liga dos Campeões.
Ahhhh, o Basileia não é?
Isso, que sacanagem. Anularam-nos aquele golo limpo a dois minutos do fim. Fora de jogo? Como, se estava um metro atrás do último defesa deles? Era o golo que nos qualificava para a fase de grupos.
Pois, lembro-me bem disso.
Seja como for, Manuel Cajuda foi o rei. Subiu o Vitória e levou-nos à Liga dos Campeões. O rei.
Não sei porquê mas lembro-me é do Nilson a fechar a baliza com o Benfica.
[ri-se que nem um desalmado] pois é, nunca entendi o porquê da minha inspiração, mas éééééé, eu costumava engatar com o Benfica, sem dúvida. Acho que estive uns três ou quatro jogos seguidos sem sofrer golos deles [três: 2-0 em Guimarães, 1-0 na Luz, 0-0 na Luz]. Depois, pim pim, sofri dois na Luz, um 2-1 acho [em Setembro de 2011]. Dois penáltis do Cardozo na primeira parte. Quer dizer, três. Mas ele falhou um [bola na trave]. Antes disso, fiz exibições memoráveis. Uma delas lançou-me definitivamente. Foi um jogo da Taça de Portugal, quartos-de-final. Ganhámos 1-0 na Luz [Março de 2006]. Parecia um polvo a sacar as bolas todas [volta a rir-se perdidamente].
Por falar em Taça, e aquela final com o FC Porto em 2011?
Xiiii, aí foi um problema. Eles vinham da vitória na Liga Europa e pensámos que podíamos aproveitar esse cansaço. Qual quê? 1-0 deles, 1-1 nosso, 2-1 deles, 2-2 nosso. Aí pensei, ‘ah se marcámos dois, vamos ganhar isto.’ Eles fazem 3-2, 4-2, nós falhamos um penálti e eles fazem 5-2 na jogada seguinte. Surreal. No dia seguinte, a cidade de Guimarães parecia um cemitério. Dois anos depois [2-1 ao Benfica], a cidade virou uma festa. Ainda bem, fiquei feliz por ver toda aquela empolgação na televisão.
É verdade que o Nilson foi internacional brasileiro?
Isso, internacional sub-21. Fui ao Mundial sub-20 do Qatar em 1995. Fomos à final, mas perdemos com a Argentina. A quem curiosamente ganhámos no Sul-Americano.
E curiosamente eliminaram Portugal nas meias-finais desse Mundial.
É verdade, 1-0, golo do Caio no último minuto.
Qual era essa equipa do Brasil?
Esse Caio, Bola de Ouro desse Mundial e que imediatamente a seguir foi para o Inter. Zé Elias, Emerson [o Puma, campeão italiano pelo Juventus e espanhol pelo Real Madrid, sempre com Fabio Capello]. Sou muito amigo do Emerson, é um cara porreiro, extraordinário. Quem era para estar nessa selecção era o Ronaldo fenómeno mas o cara explodiu antes de tempo e subiu à selecção AA [Nilson ri-se sem parar].
De quem se lembra da selecção de Portugal?
Tantos. Quim na baliza, Beto, Bruno Caires, Dani… Bem, o Dani marca cá um golo à Argentina na fase de grupos. O cara passou todo o mundo desde o meio-campo. O Nuno Gomes no ataque. O Agostinho. Não foi ele que marcou aquele golo…
De cabeça, num livre?
Isso aí. Naquele livre estudado [Nilson levanta-se do sofá e começa a representar a cena]. Os dois que iam marcar fingiram desentender-se, de repente um deles bate na bola e lá aparece o Agostinho ao segundo poste para marcar. Dei cá uma risada. [Nilson vai sentar-se… não, continua levantado] Outra coisa engraçada foi quando ganharam à Holanda. Ò, os caras holandeses tinham a mania que eram os maiores do pedaço. Festejavam os golos a acharem-se que eram os maiores.
Como?
Ficavam parados, como estátuas, e cruzavam os braços com o peito cheio a olhar para o público com cara séria.
E então?
Então que Portugal copiou esse festejo quando lhes marcou um golo. Foi divertido, acabou-se-lhes a mania. [agora sim, Nilson está de volta ao sofá]
O que se lembra desse Mundial do Qatar?
De jogar à noite. À tarde não dava. Uma vez, tentámos treinar à tarde. Demos duas voltas ao campo e voltámos para o hotel. As nossas caras estavam vermelhas e a nossa respiração era acelerada, impossível continuar.
E vai haver Mundial no Qatar daqui a nove anos, em 2022.
Éééééé, vai ser duro, muito duro. Aquelas temperaturas não são brincadeira, mesmo para quem é suplente e está no banco sem se mexer. Basta respirar para ficar incomodado com o bafo de calor.
E é verdade que poderia ter sido internacional pelo Burkina Faso? O Paulo Duarte, então o seleccionador do Burkina Faso, perguntou-me se queria jogar. Disse-lhe que sim. Marcou-se viagem e lá fui ter com eles à Namíbia para um estágio antes do jogo. Olha, sou um cara de sorte. Na Namíbia, as condições eram magníficas, tudo de bom, estava mesmo contente por estar ali, cercado por boa gente, só que a federação brasileira nunca mais enviava o certificado internacional. Nem no dia do jogo. Por isso, vi o jogo de fora. Ganhámos e eu voltei a casa. Aí, a FIFA respondeu que não dava, sou poderia ser internacional sob determinados pressupostos como viver lá há cinco anos, no mínimo, ou ter um parente de lá. Não era o caso, foi pena.