Carlos Cardoso. “O Pedroto é que meteu a alcunha de Lagardère ao José Torres”
Carlos Cardoso é uma figura imensa. Jogador de um clube só, representa o Vitória FC durante 13 épocas, de 1964 a 1977. Natural de Setúbal, cria raízes mais que profundas na cidade, no clube, na estrutura. É também treinador, dirigente, faz tudo. Até atender-me o telefone. Craque.
Bom dia, Carlos Cardoso?
Bom dia, tudo bem? Quem fala?
Rui Miguel Tovar.
Ò Rui, está bom?
Podemos falar?
Agora estou a resolver um problema na Caixa. Ligue-me depois de almoço, se faz favor.
(…)
Bom dia, Carlos Cardoso?
Ò Rui, tudo bem? Desculpe lá há pouco, mas não dava mesmo. Estava com muita gente à volta. Agora já estou em casa, tranquilo. Diga.
Descobri uma ficha de jogo do Vitória FC em Inglaterra e queria saber se posso falar com o Carlos sobre essa equipa.
Claro que sim. Qual jogo em Inglaterra? Fomos lá cinco vezes: uma em Newcastle, uma em Liverpool, duas em Leeds e uma em Londres, com o Tottenham.
Eh láááááá. Isso agora já não sei. Conto com a sua ajuda.
Ahahahah. Vamos lá.
À baliza, Torres.
Algarvio, veio do Sport Lisboa e Fuzeta. Quando o José Manuel foi para o Belenenses, ele assumiu tranquilamente a baliza. Fez 11 épocas seguidas connosco e só saiu porque o Pedroto levou-o para o Porto.
José Manuel, quem é o José Manuel?
Para o Rui, Mourinho Félix. Para mim, José Manuel. A gente conheceu-se bem, então tratava-o pelos primeiros dois nomes. José Manuel Mourinho Félix. Vou reformular, ahahahahah: quando o Mourinho foi para o Belenenses, o Torres saltou de suplente para a titularidade. Era grande guarda-redes, dava-nos estabilidade e confiança. Quando acabámos em segundo lugar na 1.ª divisão 1972-73, à frente de Porto e Sporting, o Torres era o guarda-redes.
Rebelo, 2.
Setubalense, da formação do Vitória FC. De categoria internacional. Dava muito nas vistas, porque ia lá à frente fazer os seus cruzamentos e depois corria que nem um desalmado para a defesa. Nós dizíamos ‘Vai lá vai, vê se fazes golos mas não te esqueças de voltar à base’. Nas digressões em Espanha, muitos clubes interessavam-se por ele. Mas havia a lei da opção, em que o clube tinha direito absoluto sobre o jogador e o nosso contrato era sempre de termo incerto.
Cardoso, 3.
Olha outro: setubalense, da formação do Vitória FC. Jogava a médio nas camadas jovens e, um dia, o Fernando Vaz disse-me ‘ò jovem, vais para central’. E, pronto, fiz o resto da carreira a central.
Ahahahah. Sempre no Vitória FC.
Um dia, pedi ajuda ao meu pai para ir treinar à CUF. Ele tinha lá um amigo e tal. Fui à socapa, a CUF era treinada pelo Manuel de Oliveira.
Porquê a CUF, pela geografia?
A CUF era um clube-empresa e garantia trabalho nas fábricas: o trabalho dava descontos e os descontos davam a reforma. A jogar à bola não me safava. Nem eu nem a maioria.
Por causa da tal lei da opção.
Nem mais. Tive convites de Académica, do Mário Wilson e Juca, e também do Belenenses, mas nunca saí do Vitória FC. Não era como hoje. O clube tinha sempre uma palavra a dizer e atava-nos. Se quisessem, a gente não saía para lá nenhum. Se quiséssemos sair à força, podíamos ser brindados com um ano ou dois sem jogar. Era assim. Veja bem isto, o Benfica sempre quis o José Maria e o Vitória nunca o deixou sair. Havia de ser bonito havia.
O quê?
Juntar o José Maria ao Eusébio. Eram duas feras. Quando arrancassem pelo campo fora, era preciso uma moto para apanhá-los.
O Carlos apanhava o José Maria nos treinos e o Eusébio nos jogos?
Ahahahaha. Só se fosse por boa vontade deles.
Ahahahaha.
É sério, ò Rui. Os homens eram muito à frente. Ninguém imagina, ninguém sonha o seu talento.
O Carlos também é um caso à parte. De devoção e dedicação.
Percebo o Rui. Dos 70 jogos europeus do Vitória, participei em 57. Joguei com Elfsborg, Banik Ostrava, Liverpool,Tottenham, Zaglebie, Juventus, Leeds, Lyon, Fiorentina, Newcastle, Racing White, Hertha Berlim, Lausana, Hadjuk e Anderlecht entre Taça das Taças, Taça UEFA e Taça Intertoto, inventada para ser jogada no Verão e dar receitas ao Totobola.
E ainda foi treinador.
Fiz o curso no ISEF, aulas de manhã e à tarde, enquanto ainda era jogador. O meu professor de exame foi o Mário Wilson. Quando cheguei ao exame, ele virou-se para mim e perguntou-me o que estava ali a fazer. Depois rematou: ‘ganhaste oito jogos em nove no Vitória, já estás passado, vai-te embora. E passou-me a carteira.
Ganhou oito jogos em nove?
Entre campeonato e Taça, fiz a parte final de uma época no Vitória como substituto do Torres, em 1973-74. Quando fiz o exame, era treinador interino (é assim que se diz, não é?). Além do Mário Wilson, os professores do curso eram José Maria Pedroto e Fernando Vaz mais uns quantos ajudantes.
Que vida.
É assim mesmo, ò Rui. Um dia, já como treinador, fomos a Argel e ganhámos à selecção da Argélia por 3-1. No fim do jogo, o Vicente, que era um brasileiro danado para a brincadeira, elegeu-me o melhor treinador do mundo. E eu, espantado. Então o que era? Diz-me o Vicente: ‘ò mister, falei com um cara da Argélia e ele disse que o Botafogo, campeão brasileiro, veio cá há pouco e apanhou 3-1; se você ganha à Argélia, é melhor que o Zagallo; se é melhor que o Zagallo e o Zagallo é o campeão mundial em título, você passa a ser o melhor’.
Ahahahaha.
É só histórias.
Mendes, 4.
Outro igual: setubalense, da formação do Vitória. O meu companheiro da defesa. Se eu era mais agressivo e ganhava alguns lances na base do empurrão e da confusão, o Mendes era limpinho e saía com a bola mais controlada. Ahahahah.
Carriço, 5.
Mais um, isto cansa, ahahahah: setubalense, da formação do Vitória. Defesa-esquerdo, campeão europeu de juniores em 1961, naquele imperdível 4:0 à Polónia, na Luz. O seleccionador era o jornalista David Sequerra, o treinador era o pedroto. O nome dele é Manuel Luís dos Santos. Carriço é alcunha de familiar
Espectáculo. Octávio, 6.
Veio do Palmelense, um belíssimo médio. Vejo-o na televisão e o Octávio não mudou nada, continua igual a si mesmo. Uma vez, o Tomé meteu um golo ao Clemence, do Liverpool. O remate quase do meio-campo foi do Octávio, a bola foi ao poste e o Tomé dominou com o peito antes de marcar. Nos festejos, o Octávio virou-se para o Tomé e disse-lhe: ‘fizeste um golinho, mas quem meteu a criança fui eu’. Ahahahahah.
José Maria, 7.
Angolano. Jogador espectaular, devia ter feito uma carreira mais vistosa, até lá fora. A gente via alguns marretas lá fora a fazer dinheiro e nós aqui sem hipótese de sair. Jogava a meio-campo, com uma velocidade surpreendente e a bola sempre colada ao pé. Quando encarava os defesas, tocava a bola por um lado e ia buscá-la pelo outro. Era uma maravilha. Especial em tudo.
Câmpora, 8.
Veio do Barreirense, muito bom jogador que dava umas porradas que até fervia. Os uruguaios não têm bom feitio, já se sabe, o Câmpora não era excepção. Quando metia o pé, ninguém lhe ganhava. Depois de varrer a confusão, metia-nos a bola no pé com todo o cuidado. Ahahahah. Dizia mesmo ‘vão lá à vossa vida’ ao Octávio e ao José Maria. Ele gostava de falar muito em campo. De vez em quando, lá metia o seu calão e era ‘coño’ para todo o lado.
José Torres, 9.
O lagardère.
Lagardère?
Havia os três mosqueteiros: Portus, Aramis e o Lagardère. O Lagardère era o espadachim que estava à espera que os outros acabassem de lutar para depois limpar o sebo como se fosse ele o herói. O Pedroto é que o baptizou de lagardère. Lembro-me de ouvir o Pedroto dizer a meio dos jogos: ‘Lagardère, aquece; vais dar a estocada’. O Torres era assim: entrava para acabar com o jogo.
Arcanjo, 10.
Outro algarvio, este de Olhão. Chegou ao Vitória com Pedras e Guerreiro, por troca com Jaime Graça, transferido para o Benfica no Verão do Mundial-66. O Arcanio era baixinho, cabia debaixo do Torres e tudo, mas tinha uma mobilidade que era uma coisa maluca. Óptimo a cruzar, entendia-se às mil maravilhas com Torres.
Jacinto João, 11.
Angolano. O cobra era do outro mundo.
Cobra?
Alcunha. Ele soltava o seu veneno ou atacava a presa, sempre de forma repentina. Já sabíamos que, mais tarde ou mais cedo, fazia a sua genialidade. Porque tirava os outros da frente com facilidade arrepiante. Deu golos até dizer chega ao Torres, Arcanjo e Duda.
Duda, ora aí está um jogador ausente neste onze.
Pois, bem lembrado. Estávamos a ver de que jogo era isso. Deixe cá ver: Torres, Rebelo, eu, Mendes, Carriço, Octávio, José Maria, Câmpora, Torres, Arcanjo e Jacinto João. É isso?
Chi-ça, é isso, é.
Diria Tottenham, em 1972-73. Perdemos 1-0.
(…)
Chi-ça, correctíssimo.
O José Maria saiu lesionado muito cedo, antes do quarto de hora. E o golo deles foi perto do fim.
Nem mais, 80 minutos.
Poisssss. Em Setúbal, ganhámos 2-1 e fomos eliminados pela regra dos golos fora. O Tottenham, atenção, era o campeão em título da Taça UEFA.
Verdade. No banco, Pedroto.
Vivia ao pé da estação dos comboios. Gostava de Setúbal e ia muito à pesca com o Arcanjo, embora nunca tivessem apanhado peixe.
Ahahahahah.
A sério. Não sei que marosca faziam, mas ficavam horas à pesca e nada. Ao menos estavam entretidos.
Sempre assim, entretidos?
Siiiim. No Vitória não havia cá amuos entre ninguém, eram mesmo amigos.
E como era jogar naquele tempo?
As nossas camisolas eram feitas na fábrica de malha chamada Vitória, curiosamente. Num dia de calor, a camisola raspava no peito e fazia ferida no mamilo. Sangue e tudo. Ao intervalo, metíamos um adesivo que mais parecia lixa.
E os estádios?
Alguma vez se pode comparar?! As casas de banho, as relvas, as pistas. Não há comparação. E as botas? Ainda apanhei a parte final em que mandavam a gente ao sapateiro, metíamos o pé em cima da sola e desenhávamos o feitio do pé com um lápis. Duas ou três semanas depois, lá estavam as botas. Sem pitons, posteriormente pregados nas botas e que nos moíam os pés. Faço ideia dos outros desgraçados mais antigos que eu, a jogar com botas sem atacadores. Ainda me lembro de quando jogámos com o Bayern e eles ofereceram uma mala cheia de camisolas e ténis. Foi melhor que um prémio de jogo.