Nicha Cabral. “Nunca levei a F1 a sério. Não tinha manager, só uns amigos e tal”
Mário de Araújo (Nicha) Cabral tem 78 anos. É alto, entroncado e gosta de falar. Uma história entrelaça-se a outra e mais outra e quando damos por ela já estamos a falar das 24 Horas de Le Mans ou das Seis Horas de Nova Lisboa. É um bon vivant, portanto. A entrevista do i com o primeiro português na Fórmula 1 é marcada para a zona das Amoreiras, na sua casa. Recebe-nos com elegância e está preparado para as perguntas sobre os quatro Grandes Prémios de F1 da sua carreira, dois deles em Portugal.
No seu primeiro GP…
Monsanto, 1959. Ganhou o Moss.
Porque é que entrou nessa corrida a meio da época de F1?
Porque era o GP Portugal e era português. Já tinha corrido com o Nogueira Pinto no circuito de Nürburgring pela equipa Centro Sud e andei muito bem. O Mimmo Dei [patrão da Centro Sud] disse ‘vamos lá ver como ele anda na F1’. E andei com o carro, em Modena. Meia-hora.
Só?
Sim, sim. Porque o carro não se podia partir, etc e as coisas. O Mimmo Dei andava sempre aflito de dinheiro. Vim para Monsanto sem conhecer o carro.
E como lhe correu o GP?
Bem, francamente bem. Acabei em 10.º lugar e há uma história engraçada. Nas três últimas voltas, o Terry Brooks vem coladinho a mim. O meu carro já estava a falhar por todos os lados mas o dele falhava ainda mais. Ainda assim, fiz-lhe sinal para me passar porque julgava que ele estava à minha frente e ia dar-me uma volta de avanço.
Ahhhhhh.
Pois, ninguém das boxes dizia nada, estavam lá sentadinhos a ver a corrida, e eu pensava que o Ferrari do Brooks ia dobrar-me. Qual não é o meu espanto quando percebo no final da corrida que caí de 9º para 10º, através do Terry Brooks. Veio ter comigo a dizer-me ‘Mario, you’re fantastic, thank you’ e eu feito parvo a olhar para ele como quem diz ‘mas tu queres ver’. Ficámos sempre amigos a partir daí [risos].
Nessa corrida, houve um famoso acidente entre o Phil Hill e o Graham Hill.
E outro com o Jack Brabham. Comigo.
Nãããããooooo.
Foi assim: ele estava a discutir o primeiro lugar com o Moss. Íamos na auto-estrada a entrar em Monsanto, eu olhei por um dos retrovisores e vi o nariz do carro dele a aproximar-se. Pensei ‘olha, vai ultrapassar-me nesta recta’ e cheguei-me à direita para ele ter espaço à esquerda. O que é que ele pensou? O contrário! Quando ele percebeu que eu já não ia para a esquerda, era tarde de mais. Sem espaço para entrar por fora naquela curva, foi de frente e bateu no vértice do triângulo.
E depois?
Ele ficou ali e eu continuei. Nas boxes, terminada a corrida, veio falar comigo. Estava furioso, a protestar. ‘Why don’t you break sooner?’ perguntou-me ele. ‘A culpa foi tua, eu não saí da minha trajectória. E mais, dei-te o espaço para avançares à vontade. Ninguém tem culpa que tu penses mal’. Sabe uma coisa?
…
Ele nunca mais se esqueceu de mim. Anos depois, escreveu as suas memórias: ‘Não acabei o GP Portugal-59 por causa de um ‘very dangerous local boy’ [risos].
E o GP seguinte?
Em 1960, no Porto. Sabe quem ganhou? Jack Brabham, num Cooper. Enquanto todos os outros tinham o motor à frente, os Cooper corriam com motores mais levezinhos. Aliás, o segundo classificado também é um Cooper. O Bruce McLaren, se não me engano.
Sim, é verdade.
E atrás dele, o Jim Clark, com um Lotus. Mas os Lotus não davam luta aos Cooper. Lembro-me que acabou com mais de um minuto de atraso, quase dois, em relação ao Brabham.
Como era o Jim Clark?
Jim Clark [enche o peito de ar]. Fantástico.
Como pessoa?
Como pessoa, não falava. Só ‘hello’, ‘good morning’ e pouco mais. Mas era fantástico, sempre sorridente.
E lembra-se do quarto classificado desse GP?
Isso já é demais [risos]
É alemão.
O Von Trips? Que pessoa sensacional. Era um conde. CondeWolfgang von Trips. No GP Alemanha, convidava umas pessoas e fazia um jantar no seu castelo. O Von Trips teve uma morre estúpida, bolas!
…
No GP Itália, em 1961. Num acidente com o Jim Clark.
E o Mário nesse GP Portugal de 1960?
Não acabei a corrida. Andei trinta-e-talvoltas [38] e depois tive um problema com a caixa de velocidades, na descida da Circunvalação. Quando passei da quinta para a quarta mudança, a caixa foi ao ar. Que pena. Ia em quinto ou sexto lugar, com as mesmas voltas do primeiro classificado. Estava a correr-me bem.
E mais?
Lembro-me bastante bem de duas vezes em que quase saí de pista ali na curva do Castelo do Queijo. Entrava de lado, a saltitar. Havia um bocado de bumping [bate com a mão esquerda na mesa]. Ainda hoje, essa parte é assim. Quem entra ali, sente a diferença com o empedrado.
Como era a preparação para um GP?
Bah, não nos preparávamos sequer. Íamos ver o circuito na véspera dentro de um carro de turismo e nada mais. No dia da corrida, íamos… correr. A sorte de Monsanto e da Boavista é que conhecia bem os circuitos.
Qual era o seu circuito preferido?
Nürburgring, Alemanha. Era como se guiasse numa estrada de montanha, com muitas curvas e também com rectas longas, boas para acelerar. Fiz várias vezes esse circuito com o Nogueira Pinto e o Von Trips. Havia certos sítios em que se tinha de pôr o pé no travão quase a cem por cento, se não íamos contra as sebes.
Sebes?
Ah pois é… Na altura, não havia railes.
Correu em Nürburgring para a F1?
Sim, em 1963 [único GP de sempre em que Jim Clark acaba em segundo lugar]. Eram 15 voltas e desisti à sexta.
No site da F1, diz gearbox.
Pois, caixa. Naquele tempo, nunca estavam afinadas. Ninguém se preocupava por aí além com isso. Sabe, o carro não tinha grande manutenção. Tirar os motores e abri-los, ninguém o fazia com frequência. Limpavam o motor e está bom. Uma vez, em Monza, percebi que o motor estava com problemas. Avisei as pessoas de direito, ‘atenção que é preciso ver isto’, mas ninguém fez caso. É claro, o carro nos treinos começou logo a aquecer por ali fora e fizemos o penúltimo tempo, mas não participámos na corrida. Demos o lugar ao [Giancarlo] Baghetti e os italianos deliraram. Tenho para aí uma reportagem intitulada ‘La cavaleria de Cabral mete Baghetti in pista.”
A sua última corrida é Monza-1964.
Pela ATS. Fiz o antepenúltimo tempo nos treinos e estava bem quando tive um problema na ignição. Antes disso, estive pegado com o Revson [norte-americano da Lotus].
A partir daí, nunca mais. Porquê?
A partir daí, e entretanto também. Por falta de dinheiro. Uma vez, por exemplo, não havia verba para irmos correr a um GP nos EUA. Ofereci dinheiro para viagem e estadia, mas nem assim dava. Eu não ia, a equipa não ia e faltávamos ao GP. Na Europa, voltávamos a participar. Outros tempos.
Não havia manhas nem nada disso?
Nada disso mesmo. Manhas de quê? Não havia aerodinâmicas nem essas coisas. Só motores à frente, atrás, mais rápidos, mais lentos.
E os pneus?
Eram todos Dunlop. Olhe, fui o primeiro piloto da F1 a correr com Goodyear. Isto é muito engraçado. A Goodyear não estava preparada para isso mas o Alf Francis, mecânico do Stirling Moss e grande amigo meu, sugeriu a um big boss da Goodyear usar os pneus num GP. Testámos em Monza e corremos com eles. E realmente resultou. Os pneus funcionavam, davam mais suavidade que os Dunlop, pelo menos em relação ao meu carro. A Goodyear entrou então na F1. O início de uma bela aventura!
…
E fiquei arredado da F1 porque tive um acidente grave em Rouen [Fórmula 2], no ano de 1965. Não morri por milagre. Despistei-me, dei duas voltas e fui parar à mata. O carro embateu numa árvore, partiu-se em dois e eu aterrei numa zona de silvas, que me ampararam o golpe. Saí todo picado, com 17/18 fracturas. Estive seis meses num hospital em Rouen, onde uma enfermeira salvou-me da morte com embolia pulmonar. Ela estava sempre ao meu lado e tinha a injecção pronta. Salvou-me a vida às duas e quatro da manhã. Só voltei a correr em 1967 ou 1968. Aqui em Monsanto. ganhei a corrida com um Porsche Carrera. Aí, entusiasmei-me outra vez.
Mas nunca mais foi colocada a hipótese de F1?
Isso não. Por problemas de verbas, também. No fundo, tive sorte e azar. Não levava aquilo a sério. A Fórmula 1 não era o circo de agora e não tinha um manager. Tinha uns amigos e tal. Mas gostei da aventura. Imperdível.
in jornal i, 17 Março 2012