1986, Dínamo vs Atlético: a última final europeia a uma 6.ª feira
Lembram-se de Chernobyl? A 26 de Abril de 1986, os técnicos nucleares soviéticos querem fazer uma experiência com o reactor número quatro. A intenção é observar o comportamento do dito cujo quando utilizado com baixos níveis de energia. Para que tal seja possível, quebram-se, assim de repente, umas quantas regras de segurança indispensáveis. Para começar, interrompe-se a circulação do sistema hidráulico que controla as temperaturas do reactor. Isto escrito parece ser do pior, imagine-se agora…
Em poucos minutos, o reactor entra num processo de superaquecimento incapaz de ser revertido. Forma-se então uma bola de fogo e lá se vai o reactor número quatro. Em termos comparativos, as quantidades letais de material radioactivo são assustadoramente 400 vezes maior que o das bombas atómicas nos ataques aéreos dos EUA às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, na 2.ª Guerra Mundial. A URSS reage e envia uma equipa de limpeza composta por 600 mil homens e um número ilimitado de helicópteros, cuja missão é descarregar areia a chumbo para conter as chamas. Mas a nuvem radioactiva avança quilómetros e mais quilómetros. Estende-se até à fronteira francesa.
Sim senhor, uma nuvem branca passa literalmente pelo Estádio Gerland, em Lyon, na sexta-feira dia 2 de Maio. Quem, onde, porquê? Um país enorme (URSS de Gorbachev), uma época de mudança (Glasnost e Perestroika), uma catástrofe nuclear (Chernobyl), uma província rebelde (Ucrânia), um treinador genial (Valeri Lobanovski), uma final de referência (3-0 ao Atlético Madrid na Taça das Taças), uma chuva de estrelas (Blokhin, Zavarov, Rats, Demianenko, Yakovenko, Kuznetsov, Bessonov) e um futuro Bola de Ouro (Belanov). Senhoras e senhores, o Dínamo Kiev-1986 à prova de catástrofes naturais e outras que tais.
A equipa embarca para França antes do desastre nuclear. Quando faz escala em Paris, os jornalistas falam de Chernobyl aos jogadores mas Lobanovski proíbe-os (aos jornalistas) de fazerem perguntas extra-futebol e impede-os (aos jogadores) de sequer pronunciar a palavra Chernobyl. “Estamos aqui para jogar uma final europeia e só isso”, justifica o treinador, que limita ao máximo a informação sobre a explosão do reactor número quatro. Até 2 de Maio, no comments. Lobanovski é dos homens indecifráveis do futebol – mais esfíngico até que o holandês Rinus Michels. Estamos parados à frente da sua estátua, no Estádio do Dínamo. Valeri está sentado num banco de jardim, em cima de uma bola. O seu mundo, portanto.
Como avançado do Dínamo, é campeão da URSS (1961) e vencedor da Taça da URSS (1964) mas é como treinador que se dá a conhecer internacionalmente. Ao todo, trinta (30) títulos, três deles internacionais: uma Supertaça europeia (1975) e duas Taças das Taças (1975 e 1986). E ele não tirara o curso de treinador, só o de engenharia em termotecnia. Seleccionador da URSS nos Jogos Olímpicos-76, chega a casa “só” com a medalha de bronze. O PC não só o demite do cargo como o considera persona non grata para a selecção daí em diante. Em 1982, o partido volta atrás e reintegra-o na estrutura da “federação” mas Lobanovski falha o apuramento para o Euro-84 por culpa de um penálti cavado por Chalana fora da área e inventado pelo árbitro francês Konrath. É despedido em Novembro de 1983 mas nada de muito sério: voltaria para o quatriénio 1986-90. Nesses parêntesis da selecção, Loba é do Dínamo Kiev.
Leva o seu trabalho de treinador com uma seriedade e um pragmatismo ilimitados. “Não há concepção socialista para marcar golos.” A sua onda é tornar o futebol científico, com métodos revolucionários. Geek da informática, Lobanovski pede um computador ao KGB. Estamos a falar dos anos 70 e a URSS está metida na Guerra Fria, mas a patente de general e a insistência garantem-lhe um aparelho rudimentar. Nele, cria programas com gráficos e mais gráficos sobre a evolução física e psicológica dos seus jogadores para maximizar o potencial deles. Jogo após jogo, uma equipa de estatística contratada por si trabalha os números de cada jogador: distâncias percorridas, velocidade média, número de bolas perdidas…
O “engenheiro” cria o futebol robótico mas sem necessidade de repetir exercícios nos treinos. “A improvisação é o nível supremo da organização”, justifica. Os seus treinos não têm baliza nem há golos. “Apenas velocidade, desmarcação, trocas de bola ao primeiro toque e pressing.” Tudo para chegar ao futebol total. “Não quero jogadores de campo em lugares específicos. Para mim, não existe o avançado-centro, o médio ou o defesa. Os jogadores devem saber fazer tudo em campo.” Em Lyon, na tal final da Taça das Taças, a telepatia entre os jogadores é mais do que evidente. Assustadora. Luis Aragonés, treinador do Atlético Madrid, lembra-se do aquecimento do Dínamo Kiev: “Uma rabia de cinco para cinco e a bola não parou um segundo com sucessivas desmarcações ao primeiro toque. Fazia mal aos olhos.”
Aos cinco minutos, uma arrancada do possante lateral-esquerdo Demianenko leva tudo à frente e do seu cruzamento nasce o 1-0 de Zavarov. O Atlético tenta reagir mas nem sequer se dá pela sua presença durante os 90 minutos. O Dínamo é esmagador e o 3-0 final peca por escasso. Aos 85 minutos, o dois-zero é um dos mais belos movimentos ofensivos depois de Alexandre, o Grande. Mais uma vez, começa Demianenko, ainda no seu meio-campo. Depois Rats para a direita, onde aparece Belanov, que desmarca Yevtushenko e este para Blokhin bater o argentino Fillol. Aceleração, reacção em cadeia e explosão final! O 3-0 de Yevtushenko surge no derradeiro minuto e é o décimo remate do Dínamo à baliza do Atleti.
Terminado o espectáculo, o Dínamo volta para casa. Nove jogadores voam directamente para Moscovo, onde se encontram com Dasaev e Aleinikov para formar o onze da URSS no Mundial do México, e os outros aterram em Kiev para serem recebidos como heróis nacionais na Praça Kpeschatik, espécie de Marquês de Pombal. Cem mil pessoas aplaudem-nos e esquecem o desastre nuclear. “Só quando chegámos a Kiev”, conta o defesa Baltacha “é que tivemos a real noção do que se passara em Chernobyl, mas as pessoas estavam tão eufóricas que o choque só foi entendido como tal uns dias depois.”
No Mundial-86, a URSS de Lobanovski dá um festival de bola: 6-0 à Hungria, 1-1 com campeã europeia França e 2-0 ao Canadá. Nos oitavos-de-final, o hat-trick de Belanov é insuficiente para derrubar a Bélgica (4-3) e o árbitro sueco Erik Fredriksson, que valida um golo de Demol em fora-de-jogo. No fim desse ano, Belanov ganha a Bola de Ouro (84 votos), à frente de Gary Lineker (62) e Emilio Butragueño (59). Deveria ser uma boa notícia mas o avançado não encaixa a vitória como deve e provoca fissuras no homogéneo plantel do Dínamo Kiev. Os ciúmes começam a ser mais que perceptíveis e nem o computador de Lobanovski impede o mau ambiente. A isto, acrescente-se a abertura ao Ocidente.
A condição de homo sovieticus desta talentosa geração desfaz-se aos poucos. A começar pelo veterano Oleg Blokhin, Bola de Ouro em 1975. Com autorização para emigrar (finalmente), escolhe os austríacos do Vorwärts-Steyr. “Estou livre. Aos 36 anos, posso fazer o que quero, posso abrir uma conta bancária e utilizá-la como desejo.” Uma hecatombe Kalachnikov vai derrubar as outras estrelas do Dínamo. Contratado pela Juventus para suceder a Platini em 1988, Zavarov passa duas épocas deprimentes antes de passar ao Nancy e depois ao Saint-Dizier! O matulão Baltacha escolhe a Escócia (Saint Johnstone e Inverness), o magnífico Rats só consegue estar longe de casa uma época, no Espanyol. O Bola de Ouro Belanov aventura-se na Alemanha (Borussia M’Gladbach) e acaba na 2.ª divisão (Eintracht Braunschweig) depois de passar pela esquadra da polícia para pagar a fiança da sua mulher, apanhada a roubar roupa num supermercado. O ruivo Kuznetsov lesiona-se no Rangers e mais se parece com um homem invisível. Bal faz tilt em Israel e Demianenko fica-se pelo Magdeburgo da 2.ª divisão alemã. Por fim, Yakovenko faz seis jogos pelo Sochaux. I-n-a-c-r-e-d-i-t-á-v-e-l. A culpa será da radioactividade?