Gomes. ‘Saí do Porto às quatro da tarde, cheguei a Gijón à meia-noite e joguei nesse dia’
Verão quente. Futebolístico, queremos dizer. Antes do de 1993, com Paulo Sousa e Pacheco (mais JVP, vá), há o de 1980 ali para os lados das Antas. As frases inflamadas da dupla Pinto da Costa (chefe do departamento de futebol) e José Maria Pedroto (treinador) chocam com o estilo mais ponderado de Américo de Sá (presidente). Está lançada a confusão, sobretudo porque as picardias metem duas asneiras intemporais: política e regionalização.
Pinto da Costa é demitido por Américo de Sá. Acto contínuo, sai pelo próprio pé o mestre do bicampeonato português em 1978 e 1979. Sem director nem treinador, o Porto esfarela-se. Em três tempos, desaparecem do plantel três elementos de valia considerável: Oliveira encontra refúgio no Penafiel, Octávio regressa a Setúbal e Gomes aventura-se no estrangeiro. Com a espantosa marca de 149 golos em 195 jogos pelo Porto, o avançado ainda participa no Teresa Herrera, torneio de Verão organizado na Corunha. Joga vs Real Madrid, nas meias-finais, e é suplente vs Flamengo, para o terceiro e quarto lugares. Como não se sente mais portista como antigamente, força a saída. O Sporting Gijón paga 40 mil contos ao Porto pelo passe. De lá, Gomes comenta o Verão quente.
Sente-se preparado para ser o novo Quini?
Não, não vão por aí. O Quini está em Barcelona e eu aqui. Não nos comparem, por favor. No FC Porto, eu saí e contrataram o Niromar, um brasileiro de bons recursos técnicos e ele não pode estar com a pulga atrás da orelha para ser o novo Gomes. Cada um tem a sua responsabilidade.
E qual é a sua?
Marcar golos e levar os adeptos do Sporting Gijón a acreditar que eu sou uma boa contratação, que vale a pena gastar dinheiro em mim. Em Portugal, sou o terceiro mais bem pago, atrás de Humberto Coelho e João Alves.
Os portugueses não se dão bem em Espanha. Temos o caso do Oliveira no Bétis.
O futebol espanhol é rápido, favorável às minhas características. Mas há jogadores portugueses que são mais lentos que eu, como o Oliveira. Ele é um portento de técnica mas jogava um pouco para si no Bétis, sem a combatividade do resto da equipa.
Além do Sporting Gijón, algum outro clube espanhol se interessou por si?
Só o Atlético Madrid, mas isso já foi na época passada [1979-80].
Porque é que saiu do FC Porto?
Pinto da Costa e Pedroto não eram os nossos patrões nem nos pagavam os ordenados mas só eles é que estiveram connosco em todos os momentos, bons e maus. Quando saíram, obrigaram-nos a pensar se seria sensato continuar no clube ou procurar outro refúgio para jogar futebol.
Quarenta anos depois, Gomes responde a mais perguntas. Do tovarfc.pt.
Bom dia, tudo bem?
Aqui já é boa tarde, estou de férias.
Vamos falar de Gijón?
Vamos a isso, mais que preparado.
Como é que foi para lá?
A viagem foi curiosa. E longa, muito longa. Saí do Porto às quatro/cinco da tarde. Na altura, tinha de ir por Chaves e, depois, passar pelos montes Pajares. Hoje já existe o túnel e faz-se em 10 minutos.
E em 1980?
Cheguei a Gijón à meia-noite.
Uyyyyyy.
Ahahahahah. Foi uma aventura daquelas. A estrada era muito difícil. Mal cheguei, encaminhei-me para o hotel do clube, numa espécie de centro de estágio.
Do Sporting?
Siiiim.
Em 1980?
Pois é, o Sporting tinha condições fantásticas: um hotel e sete campos relvados.
Todo um mundo novo.
Sem dúvida, era muito à frente em relação a Portugal. E, atenção, era o Sporting Gijón. Quero dizer, era um clube de 1.ª divisão mas não era um clube para sonhar com o título de campeão ou assim. Era um clube de classe média com umas condições bem boas. O espírito do clube era valorizar a formação. Daí que tenham saído algumas figuras icónicas dos anos 80, como Maceda para o Real Madrid e Quini para o Barcelona.
Desculpe o desvio. Retomemos o caminho. Chegou à meia-noite e?
Fui dormir, estava estafado. E fui dormir para o quarto do capitão, cujo nome não me sai agora.
Muy bien. E depois?
Acordaram-me às nove da manhã para tomar o pequeno-almoço. Conheci os meus novos companheiros.
E?
Fui dormir outra vez.
Jajajajajaja.
Acordei à hora de almoço. E fui dormir outra vez.
Jajajajajajajajajajajaja.
Só acordei à hora do lanche. Foi aí que percebi a ideia do treinador.
Qual?
Chamou-me e disse-me ‘vais jogar hoje’. E eu fiquei espantado. Ele explicou-me que era um torneio importante para as gentes de Gijón e tal. Bom, lá fui. Equipei-me e joguei. Lembro-me bem da chuva miudinha e da bola a escorregar bem no relvado. Acabou quantos, 5:0, 5:1, nem me lembro.
Cinco-um.
Pronto, 5:1.
Com cinco golos do Gomes.
Pois foi, mas não me lembro dos golos em si. Lembro-me, sim, da marca. Até porque cinco golos não é todos os dias, mas nada mais. E lembro-me de sair do estádio para jantar/cear e ainda fui conhecer, por assim dizer, a noite de Gijón. A malta da equipa juntou-se e fomos por aí.
Como é que era Gijón?
Era uma cidade pequena, costeira e bonita, com características muito parecidas às do Porto. Havia bom peixe, boa carne. E onde os madrilenos iam fazer férias.
Havia portugueses por lá?
Muitos, sim, agora que fala nisso. Era uma cidade mineira e aglomeravam-se muitos portugueses a trabalhar nessa área. Por acaso, conheci alguns, embora não tivesse convivido por aí além, porque os tempos eram outros em matéria de telecomunicações e tal. Se nos encontrássemos por acaso, falávamos e tal. Se não, podia passar dias sem ver ninguém conhecido.
O Gomes jogou no Sporting por quanto tempo?
Duas épocas. Curiosamente, a Real Sociedad foi bicampeã espanhola, com Arconada, Bakero, Víctor, Satrustegui.
E o Sporting?
Foi duas vezes à final da Taça.
A sério?
Verdade. Perdemos a primeira para o Barcelona e a segunda para o Real Madrid.
Eischhhhh. E porquê o Sporting em 1980?
Em condições normais, ficaria no Porto. Como houve o Verão quente, quis sair.
Mas não apareceram outras propostas?
No ano anterior, falou-se de Atlético Madrid e Barcelona. Em 1980, o Sporting chegou-se mesmo à frente. Tinha sido melhor marcador da 1.ª divisão por três anos seguidos e era natural o interesse de alguns clubes. Ainda para mais, o Porto tinha eliminado Milan na Taça dos Campeões 1979-80, com um golo do Duda em pleno San Siro. Na eliminatória seguinte, ganhámos 2:1 ao Real Madrid em casa. Marquei os dois golos, o deles foi do Benito, acho. No Santiago Bernabéu, 1:0 para eles e fomos eliminados pela regra dos golos fora.
…
Se bem que, nessa altura, a meta passava por ir para o estrangeiro. Agora a ambição mudou muito, também porque o futebol português evoluiu. Mas antes era assim: para sair do nosso clube do coração, tinha de ser a ferros. E foi, em 1980. O Sporting apareceu com mais determinação e fez-se o negócio. Bom para todos.
Nunca mais saiu para o estrangeiro.
Nunca mais.
Mas nunca mais teve propostas ou…?
Em 1984, apareceram Milan e Verona.
Milan?
Milan, nem mais. Até me recordo de que o presidente Pinto da Costa levou o meu pai até França. Encontrámo-nos todos em Marselha, acho. Foi durante o Euro-84, isso é certo. Os dois levavam-me a proposta do Milan.
E então?
Era boa, bem boa mesmo.
Repito-me: e então?
Só que preferi ficar no Porto. Aproveitei a ocasião para melhorar o meu contrato. Mesmo assim, o valor do Milan era superior, só que o Porto era o Porto. Era tudo para mim. Era o clube onde tinha feito escola.
E o Verona?
Essa noitada teve piada.
Noitada?
Foi no dia anterior à partida para França, onde íamos jogar o Euro-84. Estivemos reunidos com o presidente do Verona umas cinco/seis horas. Noite dentro, no Hotel Altis.
Estivemos, quem?
Eu e o Jaime Pacheco.
Que dupla, isso é que era.
Às tantas, duas ou três da manhã, já nem sei bem, o Jaime vira-se para mim e diz-me: ‘tenho de ir ao Lordelo buscar umas coisas para fechar a mala da viagem; o que decidires, está bem para mim’. E foi à sua vida.
E o Gomes?
Fiquei sozinho com o presidente do Verona.
E?
Não chegámos a acordo. Fiquei no Porto e o Jaime acabou por assinar pelo Sporting, depois do Europeu.
Pois foi, é outro Verão quente.
Isso mesmo. Jaime Pacheco e Sousa para o Sporting, Futre para o Porto.
Só uma última pergunta.
Força.
Lembra-se dos seus golos em Gijón?
De alguns. Ao Athletic, por exemplo, ainda na minha primeira época. É o jogo em que me lesionei gravemente e só voltei na época seguinte. E aí marquei mais, muitos mais. Cheguei aos 15, parece-me. Marquei dois ao Atlético Madrid, mais dois ao Osasuna e
…
Na última jornada, quando já Porto e Sporting negociavam o meu regresso a Portugal, havia um jogo importante para decidir a permanência do Sporting na 1.ª divisão. Ganhámos 4:0 ao Las Palmas e marquei dois golos. Como ultrapassei a fasquia dos 10 golos na Liga, o Sporting não ficou tão aberto a negociações, mas a coisa fez-se e fui mesmo para o Porto em 1982.