O rapto de Di Stéfano na véspera de um Real Madrid vs FC Porto

Kali Ma Mais 08/25/2020
Tovar FC

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O rapto de Di Stéfano na véspera de um Real Madrid vs FC Porto

“Hernâni recoge la pelota… avanza… intenta un disparo… pero sin importancia. No, increíble. Araquistain deja pasar la pelota por debajo de las piernas. El Oporto marca el 1-2. Atención Madrid!”

Di Stéfano faz um ar sério, aproxima o ouvido esquerdo ao rádio e cala-se. Por 23 minutos, ninguém fala naquele quarto. Só quando o árbitro venezuelano Yañez apita para o final do jogo, ganho pelo Real Madrid ao Porto por 2-1, para a terceira jornada do Mundialito-1963, em Caracas (Venezuela), é que Di Stéfano recupera a voz. Mas não o ânimo. O número 9 do Real Madrid está longe de casa, longe de tudo, longe de todos. Na verdade, encontra-se em cativeiro, fechado num quarto em parte incerta de Caracas, acompanhado por quatro sequestradores da Força Armada da Libertação Nacional venezuelana (FALN).

De 24 a 26 de Agosto, Di Stéfano acumula o título de melhor jogador de futebol do mundo com o do mais procurado. Tudo começa em 1952, quando a ditadura venezuelana de Pérez Jiménez cria um Mundialito de clubes, jogado anualmente no Estádio Olímpico da Cidade Universitária. Em 1963, o ditador convida Real Madrid, FC Porto e São Paulo. O favorito é o Real Madrid. De Di Stéfano, por supuesto! Desde a sua contratação em 1953, ganhara o campeonato espanhol sete vezes consecutivas – é o melhor marcador cinco vezes. É o Bola de Ouro, também conhecido como Saeta Rubia.

Quatro dias depois de participar na vitória dos madridistas sobre o FC Porto (2-1), na primeira jornada do dito torneio, Di Stéfano é acordado de madrugada. Às seis da manhã, o telefone toca no quarto 219 do Hotel Potomac. O defesa Santamaría não acorda, é Di Stéfano quem atende. O porteiro diz-lhe que há uma pessoa no hall que o quer ver. Di Stéfano responde que não quer ver ninguém e desliga o telefone. Um minuto depois, tocam à porta. Santamaría nem se apercebe. Di Stéfano, meio ensonado, abre a porta a dois polícias (sem pinta disso), que lhe dizem para o acompanhar à esquadra para falar sobre um caso de drogas. Di Stéfano quis avisar os dirigentes do seu clube, mas já era tarde quando percebeu a gravidade do assunto. Ao entrar no carro estacionado à porta do hotel, os dois falsos polícias vendam-no.

Começa aqui a história do sequestro futebolístico mais famoso do mundo (pedimos desculpa à moçambicana Rute). A FALN, liderada pelo jovem Paúl del Río, de apenas 19 anos, só quer alertar o mundo para o regime ditatorial venezuelano e dar a conhecer a sua organização. Por isso, a ideia nunca passa por pedir resgate nem ganhar dinheiro com o rapto, baptizado de Julián Grimau, um político comunista espanhol que acabara de ser fuzilado pela ditadura franquista. Por dois dias, o Hotel Potomac é o mais concorrido do mundo e as manchetes dos jornais, desportivos e generalistas, só falam de Di Stéfano.

Atingido o objectivo proposto, a FALN liberta Di Stéfano com a única condição de não desvendar o nome e rostos dos sequestradores, no meio da Avenida do Libertador, à frente da Embaixada de Espanha. Logo ali, o futebolista argentino dá uma conferência de imprensa, na qual se dá conta, com espanto, que um dos sequestradores está infiltrado no meio dos jornalistas. Terminada a conferência, Di Stéfano quer sair do país, pedido ao qual o Real Madrid acede de pronto, embora tenha jogado com o São Paulo no dia 28, porque os madridistas só recebem o cachet com Di Stéfano em campo.

Sem condições psicológicas para o fazer, o argentino joga e sai ao intervalo. Acaba 0:0 e o São Paulo leva a taça, sem necessidade de defrontar o FC Porto, no dia 30, para a última jornada. No aeroporto de Caracas, um grupo da polícia secreta acompanha Di Stéfano ao avião. Um deles sussurra-lhe ao ouvido: “Alfredo, estiveste fenomenal.” É outro sequestrador. No voo para Madrid, Di Stéfano continua embrulhado num misto de emoções: aliviado e nervoso. Curiosamente, poucos dias depois do regresso a casa, estreia-se nas salas de cinema espanholas o filme “Batalha de Domingo”, rodado pouco antes da tumultuosa viagem com o protagonista Di Stéfano a ser raptado. Ele há coincidências.

O sequestrador

Paúl del Río transforma-se num popular pintor venezuelano. Combina modernismo, cubismo e surrealismo para criar obras enigmáticas, reconhecidas em todo o mundo. Nascido em Havana em Dezembro 1943, vai viver para Caracas com um ano de idade. Em 2005, aquando da estreia do filme “Real Madrid, La Pelicula”, Del Río encontra-se, 42 anos depois, com Di Stéfano.

Como recorda tudo o que se passou?

A magia da vida provocou a casualidade de um sequestro que nos levou à popularidade. Di Stéfano era a maior figura do mundo e foi o momento de uma operação propagandística para que a operação pública mundial conhecesse a nossa luta e os problemas do povo venezuelano, que vivia numa aparente democracia, mas sob um governo corrupto que nos estava a matar.

Di Stéfano ofereceu resistência?

Nenhuma. Dissemos-lhe: “Venha connosco, vamos tratá-lo bem.” Uns meses antes, o seu amigo Fangio, piloto de Fórmula 1, sofrera um sequestro parecido em Havana e contara tudo a Di Stéfano.

Como planearam a acção?

Foi uma homenagem a Julián Grimau, político comunista espanhol capturado e fuzilado pelo regime franquista, quatro meses antes. Lançámos uma operação guerrilheira com o seu nome.

Como trataram Di Stéfano?

Sempre muito bem, apesar de ser uma situação estranha e inconveniente para Di Stéfano, mas ele nunca sentiu a sua vida em perigo e sempre soube que era uma questão de três dias. Passámos o tempo a falar de tudo um pouco, jogámos dominó e xadrez, contámos anedotas, vimos televisão e ouvimos rádio. Ele mesmo escolhia a ementa de almoço e jantar e comprávamos o que ele queria. Até apostámos em corridas de cavalos. Alfredo escolheu três e eu outros três.

E se ele tivesse acertado?

Disse-lhe logo que se ele ganhasse, o dinheiro era para nós. Não lhe íamos dar nem uma peseta [risos]

Qual foi o momento mais triste?

O dia do sétimo aniversário do filho dele, Alfredito. Foi duro, mas o Real Madrid ganhou ao FC Porto.

Não está arrependido?

Não, como me vou arrepender de fazer coisas boas? Sinto-me muito orgulhoso de tudo. Foi um acto de romantismo, de solidariedade mútua entre o refém e os sequestradores. Ele foi nosso convidado e só queria que ele entendesse o que estávamos a fazer. O nosso comportamento foi correcto e humano. Foi a prova da luta do povo e dos países.

Foi castigado pelo rapto?

Não, porque só me capturaram dez anos depois e o caso já estava prescrito por lei. Naquela época, as penas por sequestro da lei venezuelana eram muitos baixas e o sequestro político nem sequer estava contemplado no código penal.

E hoje em dia, o que faz?

Continuo a lutar pela Venezuela

O sequestrado

O que se passou naqueles três dias?

O tempo parou e a minha cabeça também. Ao fim de um dia, já me rendera a todos os meus ideais. Pensava que ia morrer, mas eles [sequestradores] nunca disseram nada sobre a morte. Aliás, quando me largaram na Avenida do Libertador, apanhei um táxi e cheguei à Embaixada de Espanha, vestido com um casaco castanho e uma camisola desportiva, dados por eles.

Foi um susto enorme?

Sim, nunca estive confortável naquele quarto. De olhos vendados ou de olhos abertos. Não sou político, nem me interessa a situação política da Venezuela. Mas, repito, nunca fui maltratado por eles. Até me deixaram ouvir o relato do Real Madrid-FC Porto e, pelo que sei, a nossa vitória foi apertada por mérito do FC Porto, que jogou bem e dificultou o nosso jogo.

O que disse Santiago Bernabéu quando o viu a são e salvo?

O presidente era um personagem. Inventava uma brincadeira a qualquer momento. Viu-me e disse-me: ‘Se fosse comigo, os sequestradores nem me aguentavam ouvir falar nem mais um minuto depois de um dia.’

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