Paneira. ‘A gente fala do Mozer, mas e o Schwarz? Era pior, mau mesmo’
A noite é mágica. O Benfica chega a Londres com a necessidade de dar a volta ao empate 1:1 na Luz. O Arsenal acha-se favorito, porque é inglês e tal. O central Pates abre a contagem, na sequência de um canto. Acredite se quiser, é o único golo de Pates pelo Arsenal. E o último da sua carreira, estendida por mais seis anos. O Benfica enche-se de brio e dá a volta com inegável categoria. Isaías empata e força prolongamento. Nos 30 minutos extra, Kulkov e Isaías (sempre ele) garantem a primeira vitória do Benfica em Inglaterra, ao fim de seis derrotas seguidas.
Bom dia Vítor, tudo bem?
Tudo bem, obrigado, e o Rui?
Impecável. Viu a ficha de jogo que lhe enviei por whatsapp?
Grande jogo em Highbury. Entrámos 3-5-2, com Kulkov na direita. Quando sofremos o 1:0, passeu para lateral e o Kulkov foi para o meio. Fiz muitos jogos a lateral, um dos quais com o Barcelona, na Luz. O extremo deles chamava-.se Stoitchkov, ahahahah.
Espectáculo.
Mesmo.
Este 3:1 ao Arsenal é mesmo especial?
Sem dúvida, entrou para a história do Benfica e até do futebol português. É um jogo irrepetível, ainda por cima durou 120 minutos para esticar a emoção de todos.
Comecemos pela baliza. Neno, 1.
Uma figura inesquecível e uma das melhores pessoas no mundo do futebol.
Também tenho essa ideia.
O engraçado é que ele nem era muito falador dentro do campo, mas tinha sempre um sorriso que nos transparecia tranquilidade. E era um excelente guarda-redes. Dividia a baliza com o Silvino e, nessa noite, jogou com dois centrais baixíssimos, em comparação com os ingleses, claro.
Quem eram os centrais?
Paulo Madeira à direita, Rui Bento á esquerda.
Bem visto. Paulo Madeira, 3.
Jogador da formação do Benfica, equilibrado, eficiente, excelente profissional e bom timing no corte. Sempre sem dar nas vistas, low profile. Nesse jogo com o Arsenal, foi estranho vê-lo a saltar de igual para igual com jogadores mais altos, muito mais altos.
Rui Bento, 4.
Ainda era mais baixo que o Paulo Madeira, ahahahahah. Bom poder de impulsão e, acima de tudo, rápido. Tanto ele como o Paulo Madeira. Digo isto porque jogávamos subidos e eles recuperavam bem a profundidade. Ambos muito pouco falados e muitos humildes, justiça lhes seja feita. Sossegadinhos no canto deles.
Piccolo Baresi, não era?
O Eriksson tinha essas saídas e a verdade é que o Rui tinha essa capacidade de interpretar o jogo antes de tempo. Não é à toa que se faz campeão em anos seguidos por Boavista e Sporting em 2001 e 2002.
Kulkov, 2.
Era um 6, até um 8. Moderno, ainda hoje. Era um jogador de equilíbrio, de compensação. Podia jogar facilmente a central como podia construir a partir do meio-campo e até finalizar com naturalizar na área contrária. Isso notou-se, por exemplo, em Leverkusen.
Veloso, 5.
Um histórico. Jogava à esquerda, à direita, a trinco e até a central. Era conhecido pela regularidade e qualidade muito acima da média. E um dos mais chatos que já vi.
Então?
Nos treinos, passava por ele.
Sim?
Depois levantava a cabeça para cruzar ou o que fosse e lá estava ele à minha frente. Era compacto, rapidíssimo e jogava bem com os dois pés. Além disso, era um líder nato. Daí a braçadeira de capitão. Nunca falhou um treino. Que me lembre, nem um.
Thern, 6.
Outro 6, trinco. Boa meia distância, incorporava-se bem na segunda linha. Frio e inteligente a jogar, muito agressivo. Quando jogávamos com Kulkov e Thern, tínhamos uma capacidade de aparecer muito à frente. Dois 6, mais 8.
E fora dos relvados?
Brincalhão, bem-disposto. Aprendeu português bem rápido.
Com quem?
Aulas privadas com o Magnusson, ahahahah-. Eles costumavam vir juntos de Cascais.
Paneira, o 7, claro.
Na minha carreira, levei três camisolas antes de me ficar com o 7.
Quais foram?
O 11 em Portimão, o 6 um jogo ou dois, e o 10. Depois fiquei com 7, um número com o qual me identificava bastante. Nesse tempo, o 10 era para o génio, o 9 para o goleador e o 7 para o rápido. Como sempre gostei de jogar à linha, escolhi o 7 como meu.
Até no Euro-96, mesmo com Figo.
Esse 7 foi por sorteio. Não um sorteio puro e duro, e sim um sorteio de bate-boca. Quem quisesse um determinado número, dizia de sua justiça. Eu e o Figo fomos a leilão e ganhei, porque o Figo também percebeu a hierarquia. O dinheiro reverteu para o adepto do Sporting morto pelo very-ligh no Jamor durante a final da Taça de Portugal desse ano, em Maio.
Schwarz, 8.
Podia fazer três posições: lateral-esquerdo, 8 e 6. E se fosse 6, era-o sozinho. Na boa.
Ele corria por todos. E batia também, sejamos justos.
Ahahahahah. Dois mais agressivos que conheci. A gente fala do Mozer, mas e o Schwarz? Era pior, mau mesmo. Na bola dividida, não me parece que perdesse para muita gente. Fora isso, era fortíssimo na recuperação, tinha um bom pontapé e cruzava muito bem.
Iuran, 9.
Beeeem. Por falar em mau, o que vou chamar ao Iuran?
Ahahahahahah.
Tinha um pé esquerdo fantástico. Num dia bom, um jogador extraordinário. Quando arrancava, dificilmente o travavam. A não ser em falta. Jogava a 9 e descaía para as linhas, fosse direita ou esquerda. Fortíssimo no 1×1, não dominava érea o jogo de cabeça. Num dia mau, era do piorio.
Era porreiro?
Porreiro? Um bom coração dos diabos. No bom sentido, atenção. Já o Kulkov era fechado.
Rui Costa, 10.
É a sua estreia europeia. Estava vai-não vai. No dia do jogo, ainda de manhã, durante um passeio no parque, hpouve a indicação de que ia jogar de início. Foi óptimo. Para ele e para nós. Quando recuo para lateral, depois do 1:0, é ele quem joga à minha frente., Um talento puro. Via-se que a sua carreira ia levá-lo para patamares elevadíssimos. Excelente meia distância, sabia bem o que queria da bola. No passe curto, perfeito. No passe longo, perfeito. Génio. Um 10.
Isaías, 11.
Pá, o Isaías era um grande profissional. Jogava a 8, atrás do ponta-de-lança, ao lado dele ou na meia esquerda. Era uma locomotiva, de explosão, possante. Atropelava quem lhe aparecesse à frente e tecnicamente muito bom.
Rematava a torto e a direito.
Tal como nos treinos. Para ele, qualquer sítio era bom para rematar. Completo, o Isaías.
Treinador, Eriksson.
É a sua segunda era no Benfica. Na primeira passagem, já tinha deixado uma marca em matéria de mentalidade e metodologia. Na segunda, continuou esse legado porque era um homem que gostava de dar liberdade e entregar responsabilidade a quem de direito. Quem? A nós, jogadores. Depois há outro aspecto importante, o adjunto Toni. Um conselheiro por excelência e um conhecedor como ninguém do futebol e futebolista português.
Neste jogo, o Eriksson preparou uma táctica diferente?
Defesa baixíssima, ataque robusto. O de sempre. Queria o jogo com qualidade, muita pressão e constante movimentação. Qualquer jogador podia rematar à baliza.
Grande vitória, 3:1.
Jogar em Inglaterra era especial por todo o ambiente à volta. Eles levam, de facto, o futebol para outra dimensão. Quando marcam o 1:0, o ambiente foi de pura loucura. Depois empatámos e demos a volta. E o que fizeram os adeptos do Arsenal? Aplaudiram-nos a caminho dos balneários. Na chegada a Lisboa, outro banho de multidão
A sério?
Fomos recebidos por milhares na Portela. Foi uma vitória histórica. E importante porque colocou-nos na recém-criada Liga dos Campeões.