Um terramoto nunca vem só

Kali Ma Mais 09/19/2020
Tovar FC

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Um terramoto nunca vem só

O México tem a sua piada. Vejam lá isto do casamento. Enquanto a noiva lança o ramo de flores para trás, um costume muito visto aqui em Portugal, o noivo está devidamente autorizado pelos sogros em tirar com os dentes a meia de liga da sua mulher. E depois? Os convidados aguardam pelo atirar da meia de liga.
Sem os dentes.

Outra do México. Numa mão, o frasco do sal. Na outra, uma rodela de limão. Mete-se o sal em cima do limão e toma lá disto. Afinfa-lhe o dente, uma trinca é
o suficiente. Agarra-se então num copo de shot cheio de tequila e pumba. E? Não,
nada de engolir. Bocheche. Muito. O sal, o limão e o álcool encontram-se por aí e
depois tudo lá para baixo. Assim é que se bebe uma tequila à séria, à mexicana.
Sem mariquices.

Posto isto, falemos do México-86. Do Mundial. Um dos melhores de sempre.
Aliás, o México tem a sorte de juntar as duas peças mais improváveis: Pelé e
Maradona. O brasileiro é rei e senhor em 1970, o argentino imita-o em 1986.
Dois Mundiais inesquecíveis. Se o de 1970 é tranquilo, em organização etc e tal, o
de 1986 já não é bem assim. E a culpa é de um tremor de terra. Vai lá vai.

Há 35 anos, na madrugada de 19 Setembro 1985, um violento sismo abala o país. O epicentro é no mar de Michoacán, litoral do México, e alcança a capital em tão-só 50 segundos. Chega à magnitude 8,1 a 8,3 na escala de Richter e deixa um rasto de destruição por onde passa. Na Cidade do México, há edifícios destruídos e outros quase. Tudo, tudo sem remédio. Ao todo, 412 desmoronam e outros 3124 seriamente danificados. O número oficial de mortes é de 10 mil. Oficiosamente, 40 mil.

E feridos? Mais de 30 mil. E desalojados? Mais de cem mil. A comunidade internacional acode o México como pode, a FIFA também. Dali a menos de um ano (oito meses para ser mais preciso), há o Mundial. E agora? Com 18 milhões de
habitantes naquela época, a Cidade do México vira estado de sítio, sem luz nem
água. A área mais afectada é a do lago de Texcoco, na antiga Tenochtitlán.

Como se isso fosse pouco, 36 horas depois regista-se uma réplica de magnitude 7.3, que gera um tsunami com ondas de três metros. E mais zonas afectadas, como Jalisco, Michoacán, Colima, Guerrero, Morelos e Veracruz. A FIFA, lá está,
intervém. Os delegados amontoam-se nos aeroportos e partem para o México.
É deveras importante sentir o pulso àquela gente e, mais importante, ver se há
condições para levar avante o Mundial.

Um Mundial conturbado, aliás. Em 1974, a FIFA atribui a organização do evento à Colômbia. Oito anos depois (1982), os colombianos entram numa crise económico-financeira sem precedentes e não se sentem preparados para o
evento. Vai daí, o México é o primeiro país a sediar duas vezes o Mundial. Ao
de 1970, junta-se-lhe o de 1986.

Será? Sim, é. As autoridades desportivas do México e as da FIFA reúnem-se horas e horas para chegar à conclusão que tudo, sem excepção, está operacional. Nenhum estádio é tido e achado no terramoto e o próprio presidente mexicano Miguel de la Madrid Hurtado sublinha a importância de o país se levantar sozinho, sem ajuda internacional, para reacender a chama do orgulho. Meu dito, meu feito.

O Mundial do México é um dos mais bem organizados de sempre, sem uma falha.
A esse pormenor acumulam-se muitos outros. Como a mão de Deus e o golo do século de Maradona no Argentina vs Inglaterra. Como o incrível França vs Brasil só resolvido nos penáltis. Como o hat-trick insuficiente de Belanov vs
Bélgica (4:3). Como o aparecimento da Dinamáquina (6:1 ao Uruguai, 2:0 à
RFA). Como o póquer de Butragueño, o primeiro desde Eusébio em 1966. Como a greve de Saltillo. Como os dois golos portugueses da Moita (Carlos Manuel e Diamantino). Como a expulsão mais supersónica de todos os tempos (Batista, do Uruguai, aos 55 segundos). Como a presença de Alex Ferguson como seleccionador da Escócia. Como a primeira selecção africana além da fase de grupos (Marrocos). O México-86 começa a desenhar-se com mais força que nunca há precisamente 35 anos.

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