Jorge Mendonça. O português mais espanhol de siempre

Kali Ma Mais 10/07/2020
Tovar FC

author:

Jorge Mendonça. O português mais espanhol de siempre

Época nove, episódio 501. Os Simpsons falam de soccer e a cidade de Springfield
recebe o Mundial. A final é Portugal vs México e o jogo nem acaba, porque os adeptos não gostam nada de futebol sem balizas e tudo desencadeia uma cena de
pancadaria. Ficção? Sim, a parte do México. Deveria ser Portugal-Espanha, uma rivalidade com 99 anos de vida. Começa em 1921 e já houve uma série de não sei
quantos “to be continued”. Trinta e quatro, para ser mais concreto. Hoje, é o 40.º
duelo ibérico.

De Alberto Augusto em 1921 até Ronaldo em 2018, a história futebolística de Portugal confunde-se com a de Espanha, atravessa gerações, é mais velha que a própria 1.ª divisão. Todo e qualquer jogo entre Portugal e Espanha dá pano para mangas, mas um há, em Abril 1958, que dá mais nas vistas que outros. Porque parece saído de um episódio dos Simpsons, se bem que aqui tenha havido golos – ou melhor, golo, do argentino Di Stéfano, recém-naturalizado espanhol.

Também afastada do Mundial-58, a Espanha convida Portugal para um particular em Madrid, no Chamartín (futuro Santiago Bernabéu), que redunda num dos maiores festivais de pancadaria de que há memória, com os jogadores e o público espanhol em aceso despique. Cenas de pugilato e agressões de toda a ordem são a nota comum da partida, ante a excessiva complacência do árbitro francês Lequesne, completamente ultrapassado pelos acontecimentos.

A táctica cerradamente defensiva de Portugal acabaria por não resultar, pois a poucos minutos do final o genial Di Stéfano marcaria o ponto solitário, na transformação de um livre directo. Só seis anos e meio mais tarde as duas equipas voltariam a encontrar-se, aí já com o grande Eusébio em acção e a marcar os dois golos da vitória.

Em 1958 (regresso ao passado), a vida de outra pérola da metrópole poderia ter
sido diferente. O angolano Jorge Mendonça, então avançado do Braga, com
13 golos na 1.ª divisão 1957-58, é convocado pelo seleccionador José Maria Antunes e não sai do banco de suplentes – em detrimento de outro estreante,
Augusto Rocha, da Académica.

No mês seguinte, Jorge Mendonça assina pelo Atlético Madrid, depois naturaliza-se espanhol e nunca mais volta a ter oportunidade de jogar pela selecção nacional, um dos seus grandes sonhos, a par de vestir a camisola do Sporting, com a qual foi é campeão de juniores, antes de ir para Braga. Conta o próprio. “Foi um dia triste. Pela confusão que se viu. Sabias que o Carlos Gomes foi atingido por um isqueiro atirado das bancadas? Bem, foi um sarilho dos grandes. O público assobiava estrondosamente a nossa selecção e para sair de lá foi um problema. E foi um dia triste porque foi a única vez que estive perto de jogar por Portugal. E nessa tarde estava lá o Matateu. Que prazer teria sido… Mas pronto, ninguém ficou zangado. A vida continua.”

E de que maneira. Jorge Mendonça faz-se craque em Espanha. É o primeiro português a jogar na 1ª divisão no estrangeiro (Atlético Madrid 58-59), é também o primeiro a entrar em acção no clássico espanhol, em Dezembro 1967, então
como avançado-centro do Barcelona. A sua história dá um livro. Ou uma entrevista.

Como primeiro português no estrangeiro, é pioneiro numa série de situações, como primeiro campeão, primeiro vencedor de Taça, primeiro a ser expulso…
Xiiii [gargalhadas sonoras]. Isso foi em Vigo, num Celta-Atlético [16 Novembro
1958]. Imagine lá que uns amigos e familiares deram-se ao trabalho de viajar até
Vigo para me ver e só joguei 24 minutos.

Viajaram de onde?
De Braga.

Mas porquê de Braga?
Ah, pois é, tenho de explicar. Vou tentar simplificar. O meu pai João fundou o Sporting em Luanda. Jogou e treinou lá. Por isso, o meu desejo era jogar no Sporting. O de Luanda e também o de Portugal. A minha maior ambição era jogar na equipa principal com os meus irmãos João e Fernando. Mas isso não aconteceu, embora tenha sido campeão português de juniores, com o Fernando Mendes e o Bispo.

E do Sporting foi para o Braga?
Exactamente. Como no Sporting não havia lugar para mim, porque estava tapado
por dois craques de craveira internacional como Vasques e Travaços, fui para o
Braga. Tive de esperar um mês para fazer 18 anos e estrear-me no campeonato. Na altura, eram essas as regras. No primeiro ano [56-57], subimos à 1ª divisão como segundos classificados da Zona Norte, atrás do Salgueiros e à frente do Vitória SC por um ponto. No segundo ano, ficámos num honroso quinto lugar, atrás de Sporting, Porto, Benfica e Belenenses. Foram tempos maravilhosos. Eu jogava futebol, na 1ª divisão portuguesa e com os meus irmãos.

E chegaram os três a marcar no mesmo jogo?
Uyyyyy, sim, sim. Uma vez, ao FC Porto, para a Taça de Portugal [1ª Eliminatória]. Fomos eliminados, porque perdemos lá 3:0 e ganhámos 3:1 em Braga, mas
a satisfação que nos deu marcar golos no mesmo jogo. Eu fiz o 1-0, alguém empatou, o João fez o 2-1 e o Fernando o 3-1 já muito perto do fim.


Lembro-me também de um 7:0 ao Torreense [3 Novembro 1957]. O Fernando marca, o João também e eu bisei. Grandes tempos, divertidos.

Mas como se dá a ida para Espanha?
O campeonato português desse ano acabou para aí em Março. Um empresário,
amigo da nossa família, convidou-nos a mim e ao Fernando para jogar na Corunha, no Deportivo.

O Jorge e o Fernando. Falta aí o João.
Só podia haver dois estrangeiros.

Ahhhhh.
Ora bem, dois estrangeiros contratados à pressa para manter o Deportivo na 2ª divisão. Eles estavam em risco de descer e faltavam seis jornadas. Nesses, ganhámos cinco e empatámos um, em Ourense, onde fomos roubadíssimos. Anularam-me um golo do meio-campo, veja lá bem [e ri-se
com vontade].

Mas calma lá. Antes de avançarmos, estava a falar-me do tal jogo em que é
expulso pela primeira vez, em Vigo.
Ah, é verdade. Então, amigos de Braga alugaram quatro autocarros e lá foram a Vigo para ver-me jogar. Naquele tempo, ainda não havia cartões amarelos nem vermelhos [apenas instituído em 1970]. Como eu jogava com a bola colada aos pés, os defesas recorriam bastantes vezes à falta. E era normal que houvesse uma tendência para responder a uma ou outra entrada mais cruel. Normalmente, era calmíssimo mas às vezes… A verdade é que das quatro vezes em que fui expulso, levei sempre o defesa comigo. Como quem diz, foram expulsos o provocador e o provocado. Menos mal [mais risos].


Na primeira expulsão, o árbitro dirigiu-se a mim e disse-me apenas fuera. Saí obviamente triste. Que injustiça! Então aquela gente toda de Braga estava ali e só joguei 24 minutos? Vi o resto do jogo na bancada, ao lado do meu pai, e ganhámos 1:0. A segunda expulsão também teve piada.

Conte lá.
Foi num Las Palmas-Atlético. Ouvi um fuera por razões que desconhecia. Não fiz
nada. Nada mesmo. No voo para Madrid, o árbitro voou connosco e desculpou-se:
‘se não te expulsasse, não saíamos de lá vivos.’

Portanto, já estamos no Atlético Madrid.
Aqueles seis jogos no Deportivo foram importantes para captar a atenção do Atlético Madrid. Eles quiserem contratar-me e nem pensei duas vezes. Ainda hoje tenho um sentimento muito forte pelo clube.

Como foi a adaptação ao Atlético?
Não custou nada, é o que lhe digo. Nos primeiros três jogos, três golos [um ao Valencia, outro ao Saragoça e mais um à Real Sociedad]. O quinteto atacante era Miguel, Vavá, eu, Peiró e Collar.

E o primeiro dérbi com o Real?
Uiii, apanhámos 5:0 no Chamartín.

Vingaram-se?
Nessa época, não. Nem na outra. Esse Real Madrid era um portento. Era a equipa de Di Stéfano, Puskas, Kopa, Gento. Gente que jogava de olhos fechados. O
Di Stéfano, então, dominava a bola com todas as partes do corpo: cabeça, coxa,
peito, pé direito, pé esquerdo, calcanhar direito, calcanhar esquerdo. Um fenómeno sem igual. A minha vingança terá sido na final da Taça do Rei em 1961. Ganhámos 3-2 no Chamartín. Na altura, as finais da taça eram na capital e era comum serem no estádio do Real Madrid. Dessa vez, foi assim e ganhámos.

E marcou algum golo?
Sim, o 3-1. A alegria era tanta que saí coxo nos festejos do golo. A malta toda saltou para cima de mim e fui a cambalear para o meio-campo [as gargalhadas soltam-se facilmente]. Outro dia especial com o Madrid foi em Março 1965, quando colocámos um ponto final na invencibilidade do Real Madrid em Chamartín. Eles não perdiam há 131 jogos. Desde 1957, antes de eu ter
chegado a Madrid veja lá. Garanto-lhe, não fiz nada de jeito nesse jogo mas aquele remate de primeira saiu-me particularmente bem. Os adeptos do Atlético ficaram loucos, como deve imaginar. Foi um golo histórico, numa jogada muito comum entre eu e o Luis.

Luis?
Sim, o Luis Zapatones.

O Luis Zapatones?
O Luís Aragonés, o seleccionador de Espanha no Euro-2008. Ele jogou comigo no
Atlético. Fomos campeões espanhóis em 1966, no ano em que o Real Madrid conquistou a sexta Taça dos Campeões.

O Aragonés, sim sim, brutal. Como era ele a jogar?
Jogava mais recuado que eu e ficava indignado pela forma como eu apanhava pancada dos defesas contrários e não refilava. Então, às vezes, pedia-me para trocar de posição e lá ia ele para a frente, onde se batia com os defesas de forma mais física que eu, batia a mãozinha marota na cara deles ou deixava o pé para trás.

Alguma característica particular?
Para começar, era muito ossudo. Os ossos estavam ali, à vista de toda a gente! E tinha uns pés grandes e feios. Era o Zapatones. Para cúmulo, andava às
dez para as duas, como Charlot. E isso, veja bem, era-lhe prático para ser tremendamente eficaz na marcação de livres directos, a sua especialidade. Quantos, mas quantos golos, marcou ele de livre? Pfffff, muitos e muitos. Uma vez, na final da Taça dos Campeões-74 entre Atlético e Bayern, já eu nem jogava futebol, ele marcou um livre e mal a bola passa a barreira, ele vira as costas à baliza e levanta o braço a festejar. Já sabia que ia ser golo. E repare que o guarda-redes era o Maier, hein!

É o primeiro português a jogar o clássico Barca-Madrid, sabe?
Hombre, sim. As nove épocas no Atlético foram sensacionais. Ganhámos um campeonato, três Taças do Rei e uma Taça das Taças, em que marquei um golo na finalíssima, à Fiorentina. Mas esse até nem foi o meu momento europeu mais glorioso no Atlético. Esse foi em 65-66, quando marquei três golos ao Dínamo Zagreb, no Metropolitano. A loucura foi tal que os adeptos invadiram o campo e levaram-me em ombros até aos balneários. E queriam levar-me a casa, que era ali perto do estádio. Ora bem, estava eu muito bem no Atlético quando o presidente Vicente Calderón chamou-me a casa. Fui, claro, e estava lá o presidente do Barça [Llaudet]. Eles já tinham negociado e só faltava a minha assinatura. Na altura, estava lesionado e não foi uma negociação muito ética. Para cúmulo, o primeiro jogo do campeonato foi com o Atlético, em Madrid. Fui apelidado de tudo e mais alguma coisa. Traidor e essas coisas.

No Barça, perde uma final da Taça das Taças.
Para o Slovan Bratislava. Uma final raríssima. Jogámos muito melhor, criámos mais ocasiões de golo mas sofrer o 1:0 aos 30 segundos abalou-nos e não mais nos recompusemos. Entrei ao intervalo, porque vinha de lesão, e foi o meu último jogo pelo Barça. Daí fui para o Maiorca, onde só fiz uns três/quatro jogos até romper o menisco. E abandonei. Mesmo lesionado, uma equipa suíça foi a Palma de Maiorca e só jogava comigo no onze. Lá fui, fazer figura de corpo presente para o Maiorca receber o cachet, e ganhámos 1:0. Golo meu. A equipa suíça, já não me lembro do nome, quis contratar-me. Mas não dava. Por isso, adiós futebol.

Espere aí, espere aí. Antes disso, ganhou uma Taça do Rei pelo Barcelona.
Ahhhh, ao Real Madrid [67-68]. Um clássico ainda hoje presente na memória de todos. Ganhámos 1:0, com um autogolo [Zunzunegui], mas foi uma final pobre. Pura e simplesmente não se jogou futebol. Os adeptos andavam nervosos e aquilo ficou conhecido como a final dos botellazos, porque o relvado encheu-se de garrafas e mais garrafas. Não se podia andar ali e nem pudemos fazer a festa do título. Um dos nossos [Zazalba] foi atingido por uma garrafa que lhe abriu a cabeça. Uma final triste, com um final feliz. Ganhámos. E no Vicente Calderón, espécie de segunda casa para mim.

Leave a comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *