Kulkov. ‘Adeus, abraço e não bebas água da torneira’
Como se escreve exactamente em cirílico? Perguntamos isto porque Kulkov não se cansa de repetir esta palavra para responder a questões que merecem um vocabulário mais variado. Ao que parece, seis anos em Portugal (cinco a jogar, entre Benfica, FC Porto e Alverca, mais um a treinar, como adjunto de Byshovets no Marítimo) não serviram para Kulkov, um russo de Moscovo, estabelecer uma connection connosco. Não o levamos a mal. Afinal, ele é simpático, reconhece as suas limitações e pede desculpa de quando em vez. Quando lhe telefonamos, atende à primeira, como se estivesse à nossa espera. O sorteio da Liga Europa já foi e juntou FC Porto e Spartak Moscovo. Nas Antas, a participação de Kulkov foi curta mas memorável com a conquista do título de campeão nacional em 1994-95, o que a juntar ao da época anterior, ao serviço do Benfica, o cataloga como um dos dois estrangeiros da história do futebol português que venceram o campeonato em anos seguidos e por clubes diferentes. O outro é Serguei Yuran, que percorreu o mesmo caminho desportivo que Kulkov. Mas agora estão separados. E Kulkov voltou a Moscovo, onde é adjunto da equipa de reservas do Spartak, onde jogou antes de se transferir para o Benfica (89-91) e depois da aventura no FC Porto (95-96).
Kulkov, tudo bem. Falamos de Portugal
Olá, tudo bem [com um português carregado]. Estás bom?
Quero entrevistá-lo a propósito do Spartak-FC Porto.
Claro, tudo bem. Digo-te já que o FC Porto não passa cá em Moscovo.
Mas ganhou aí ao CSKA.
Sim, mas agora não vai passar.
E se passar?
Então vai ganhar a Liga Europa. Se passa outra vez aqui na Rússia, é campeão. Escreve isso.
Não posso. Estou cá fora, na rua, e os meus dedos estão quase enregelados.
Exactamente [e lá começa ele com os exactamentes]. Havias era de estar aqui. Está frio, muito frio. Queres trocar comigo?
Agora não, obrigado.
Mas então queres falar do quê?
Da tua experiência cá em Portugal. Chegaste quando?
Em 1991.
Onde?
Ao Benfica.
Quem era o treinador?
O Eriksson. Gente boa, muito simpático, compreensivo.
E como é que um sueco e um russo recém-chegado a Portugal se entediam?
[silêncio, depois risos] A linguagem do futebol.
Okay. E como foi a tua estreia?
Fala mais devagar. Outra vez
Co-mo foi a tua es-tre-ia?
Ahhhh. Perdemos com o Boavista, na Luz. Joguei a lateral-direito na ausência do… espera aí… do José Carlos.
E depois jogaste onde?
No meio-campo, a minha posição do Spartak Moscovo.
Mas não foi a lateral-direito que jogaste naquela noite em Londres, com o Arsenal?
É verdade. Foi um grande jogo, não foi? Empatámos 1-1 na Luz mas depois ganhámos 3-1 em Highbury, a perder por 1-0.
O Kulkov marcou o segundo golo.
O 2-1, a meio do prolongamento. Grande ambiente em Londres e nós passámos. Foi uma época louca porque chegámos muito longe na Liga dos Campeões. Jogámos com o Barcelona e tudo.
Esse jogámos é para o Benfica? Ou és tu e o Yuran?
Ahahahah. Os dois, os dois. Eu e o Yuran éramos inseparáveis, não éramos? Vocês nunca tiraram essa ideia da cabeça.
Mas é verdade. Vocês foram juntos para o FC Porto, depois para o Spartak Moscovo e ainda para o Millwall.
Exactamente, exactamente [parte 2]. Sim, somos grandes amigos. Éramos inseparáveis e fomos bem recebidos por Eriksson. Deu-nos tudo para ficarmos bem.
Mas o Eriksson foi embora no final dessa época e entrou o Ivic.
Tchiiii, esse tinha a cultura da intriga. Muitos sermões, muitos castigos. Não esteve lá muito tempo. Saiu e entrou o Toni.
Foi com ele que jogou aquele 4-4 com o Bayer Leverkusen?
Sim, esse jogo louco. Isso foi na outra época [1993-94], em que fomos campeões nacionais e chegámos às meias-finais da Taça das Taças. Eu era o médio recuado. À minha frente, Paneira, Rui Costa, Isaías, João Pinto e Yuran.
Nessa noite, marcou dois golos.
Pois foi [com desinteresse].
Qual foi o jogo que mais o marcou?
[com outra voz, mais animada] Um Sporting-FC Porto em que festejámos o título de campeão nacional em Alvalade. Ganhámos 1-0, golo do Domingos, e atirámos o Bobby Robson ao ar.
Como era o Robson?
Exactamente [irra].
O Robson era bom?
Muito amigo, muito próximos de nós.
Foi ele que pediu a vossa contratação?
Sim, mais ou menos. Foi tudo muito rápido. No Benfica, não contavam connosco [Artur Jorge tinha acabado de chegar para o lugar de Toni] e tínhamos de encontrar rapidamente um clube na Europa, porque o mercado de transferências estava a fechar-se.
E aí apareceu o FC Porto?
Infelizmente sim.
Infelizmente?
Sim, infelizmente. O FC Porto apareceu na nossa vida [dele e de Yuran] porque o Cherbakov teve aquele acidente brutal que o deixou assim [avançado russo do Sporting que ficou tetraplégico depois de um acidente de viação na Avenida da Liberdade]
[pausa longa]
Kulkov, está aí?
Sim, sim. Estou só a recordar isso. Às vezes, pensamos nisso ao de leve, outra é mais forte.
Compreendo.
Como dizia, ele teve o acidente e nós íamos vê-lo todos os dias ao hospital [São José, em Lisboa]. Cruzávamo-nos sempre com o FC Porto.
Como assim?
Com o Robson e com o Mourinho, que treinaram o Cherbakov no Sporting. Ficámos amigos aí e trocávamos mensagens. Quando soube que estávamos livres, o Robson nem hesitou.
E foram para o Porto. Havia diferenças?
Exactamente [pronto, lá está ele]
Entre Benfica e FC Porto, como foi?
Duas cidades diferentes e tão perto uma da outra. Dois clubes do mesmo país e tanta rivalidade. Mas lá foi bom. Muitos jogadores bons, um plantel unido e campeões nacionais. Eu, por exemplo, marquei logo no segundo jogo [3:2 ao Vitória FC, no Bonfim]. O Yuran demorou mais tempo, mas quando o fez, foi com estilo [1:1 ao Benfica, na Luz]. E foi expulso. Eheheheh
Foi divertida a expulsão?
O Yuran é maluco. Fazia coisas incríveis com a bola, depois zangava-se com outro jogador e toma.
Toma lá, vai buscar!
Exactamente [isto é rir a bom rir]
E o Mourinho era bom adjunto?
Sim, defendia-nos sempre. Organizava almoços para o pessoal. Bom orientador e grande psicólogo. Quando ele ganhou a Liga dos Campeões [2004], telefonou-me e fomos almoçar! Pagou ele! [eu bem digo que é rir a bom rir]
E a selecção? O Yuran ainda foi ao Mundial-94 mas tu nem isso
Como? Pergunta outra vez, se faz favor.
Claro. Porque nunca foste a um Mundial?
Azar.
De quem?
De todos. Em 1990, não fui convocado. Em 1994, é uma longa história.
Exactamente.
Eheheheh
A sério, tenho tempo.
No último jogo da fase de qualificação, em Atenas, o presidente da federação entrou no balneário e, com o seleccionador [Pavel Sadyrin] ao lado, disse que teríamos de assinar um contrato de patrocínio com a Reebok. Todos, sem excepção. Ora, 11 jogadores não queriam assinar esse contrato [Kulkov, Yuran, Mostovoi, Shalimov, Dobrovolsky, Kolyvanov, Onopko, Khlestov, Kiriakov, Nikiforov e Salenko mais três que não estavam presentes nesse jogo: Karpin, Ivanov e Kanchelskis] e escrevemos uma carta que enviámos ao Ministro do Desporto. Organizou-se uma conferência de imprensa em que expusemos os nossos argumentos.
Que eram?
Queríamos como seleccionador o Byshovets, que era do Euro-92, queríamos prémios de jogo mais altos no Mundial-94 e melhores condições de apoio logístico.
E então?
O seleccionador [Sadyrin] falou com todos a fazer-nos passar a ideia que não podíamos perder aquela oportunidade nos EUA. Eu fiquei na minha [como Shalimov, Dobrovolsky, Kolyvanov, Kiriakov e Kanchelskis], os outros foram aos EUA. Agora já é tarde.
Pois, já lá vão 17 anos…
Não, já é tarde para mim. Tenho de ir embora. Adeus, abraço e não bebas água da torneira.
Como?
Eheheheh, era uma piada do FC Porto. Não bebas água da torneira.
Mas quer dizer o quê?
Exactamente [agora é que me tramou]