Américo. ‘No ano do Mundial-66, estive três meses sem ver a minha mulher, de Maio a Agosto’

Mais You Talkin' To Me? 10/16/2020
Tovar FC

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Américo. ‘No ano do Mundial-66, estive três meses sem ver a minha mulher, de Maio a Agosto’

Hoje é dia de clássico em Alvalade. Em toda a história da 1.ª divisão, só há um jogo em que o guarda-redes é improvisado durante uma hora. Falamos do 4:0 em 1966.

Faltam duas jornadas para o fim e o Sporting lidera com um ponto de avanço sobre o tricampeão Benfica. Até aos 40 minutos, tudo normal e ainda 0:0. Nesse instante, canto batido pelo peruano Seminario. A bola voa perto da área e Américo sobe ao primeiro andar. Sofre um toque, desequilibra-se e a bola anda ali à solta, à mercê de um pontapé. Vitorioso ou…? Vitorioso. Oportuno. Cortesia Oliveira Duarte, 1:0 para o Sporting. A confusão é imensa, os portistas protestam airosamente a validação do golo pelo árbitro João Calado, de Santarém.

Durante sete minutos, ninguém joga à bola. Só protestos, protestos e mais protestos. Américo é o mais desvairado. E é expulso. Verbalmente, porque o cartão (quer o amarelo quer o vermelho) ainda é uma invenção a quatro anos-luz de distância. Como também ainda não existe a regra das substituições, é o médio Carlos Manuel quem assume a baliza. Durante uma hora, será ele o jogador mais interventivo. Ora pelos três golos sofridos (Figueiredo 41′, Lourenço 67′, Lourenço 72′), ora pelas defesas a soco ou a pontapé.

Carlos Manuel, meus amigos, impede uma goleada histórica. Américo é castigado com dois jogos de suspensão e só volta a jogar na época seguinte. Porque o Porto já havia sido eliminado da Taça de Portugal, curiosamente pelo Sporting, em Coimbra, cinco dias antes do 4:0 em Alvalade, e porque Américo faz cerca de zero minutos no Mundial-66.

Impõe-se uma entrevista com o senhor keeper, vencedor da 1.ª divisão em 1959 e da Taça de Portugal 1968, sempre no Porto, onde acumula 255 jogos, com mais vitórias que derrotas (150-45) e um número curioso de partidas a zero (101) em tempos idos, com Eusébio no Benfica. Matateu no Belenenses e Figueiredo no Sporting. Pelo meio, 15 internacionalizações pela selecção AA e ainda a tal convocatória para o Mundial-66, juntamente com outros dois portistas (Festa e Custódio Pinto). Como se isso fosse pouco, Américo joga com José Maria Pedroto e é treinado por ele.

Atenção, Américo é um doutor a falar. Animado, vivo, bem-falante e dotado de
uma memória de elefante, responde-nos em directo da Rua Ribeirinho 58,
em São Paio de Oleiros. É ele o proprietário e gerente da Clínica Boa-Hora, fundada por si no dia 6 de Março de 1989.

Como é que chega ao FC Porto?
Um dia, em 1949, decidi apresentar-me aos treinos do FC Porto, ali na Constituição – só pouco depois é que fomos para as Antas. Fui de olhos fechados, sem saber muito bem o que apanhar pela frente. Achava que tinha mérito para jogar na equipa da minha vida. Fui lá e conquistei o meu espaço. Joguei dois anos nos juniores e depois subi à primeira equipa, um sonho tornado realidade. Só via Porto à minha frente. Agora está a ver, um jovem de 16 anos vê o sonho de uma carreira à frente e não mais o larga. Aconteceu comigo e ainda hoje me sinto sortudo.

Quando lá chegou, à Constituição, já era para guarda-redes ou…?
Era o meu sonho de menino. Sempre joguei à baliza, até na escola. É uma profissão inexplicável. Gostava de estar ali, no meu canto, a defender e [começa a rir-se] a irritar os outros. Gostava mesmo disso. Eles rematavam, rematavam, rematavam e não marcavam. Às vezes, até me pediam para sair da baliza.

Com ou sem luvas?
Sem luvas. Só usava luvas nos dias de chuva. De resto, era com as mãos. Nada melhor que sentir a bola bem segura, sentir o couro. Se doía? Qual quê?! Nada disso, nada disso. A bola era macia [o homem diverte-se com a sua própria história e ri-se sem parar].

Nem com os remates do Eusébio?
Não, nem pensar. As pessoas falam muito da potência dos seus remates – e eram
fortes, lá isso eram – mas o mais terrível era a disponibilidade dele para atirar à baliza. É que ele rematava de qualquer lado e de qualquer jeito. Se a bola
viesse torta, ele fazia por atirá-la à baliza. Parte da sua genialidade é disso mesmo. Espontaneidade no remate. Aliado à pontaria, pois claro. De nada vale atirar com força e ao lado ou por cima. O Eusébio era diferente. Quanto atirava,
era para a baliza e eu que me entendesse com a bola. Outro pormenor delicioso do Eusébio era a lealdade. Fomos sempre amigos e eu costumava dizer-lhe que nunca me tinha marcado cara a cara.

Não era o Américo conhecido como o guarda-redes…?
Suicida. Isso foram pessoas como você, jornalistas, a chamarem-me isso. Nunca
soube de onde isso veio. E tive mais, muitas mais. Era o suicida, depois as mãos disto, as mãos daquilo e até fui o leiteiro, porque, diziam vocês, tinha uma vaca em casa para tirar o leite e ter sorte. A verdade é que saía muito da minha área, fazia por isso. Se visse que a bola estava ao meu alcance, ia lá para afastá-la da área. Os guarda-redes de hoje jogam muito na sua área. Eu jogava aí mas também saía da minha zona de conforto.

Só não pôde sair dessa zona no Mundial-66. Portugal fez seis jogos e utilizou dois guarda-redes. Primeiro o Carvalho, depois o José Pereira. Só o Américo não jogou. Porquê?

Uns anos depois, o senhor que tomou essa decisão pediu-me muitas desculpas pelo facto. Estou a falar do Manuel da Luz Afonso, o seleccionador. Sim senhor, o Otto Glória era o treinador de campo e decidia muitas coisas mas a última palavra era sempre do Manuel da Luz Afonso. Começou o Carvalho e até nem esteve mal. Não percebi o porquê de o tirarem assim de repente, a meio da prova. Depois entrou o José Pereira, que quase não era internacional nem jogou assim tão bem. E eu sem jogar. Veja lá bem: o Otto Glória foi treinador do Benfica e do Sporting, o Manuel Afonso tinha sido director do Benfica e o Gomes da Silva, o coordenador da selecção, era do Belenenses. Por isso, os jogadores eram
quase sempre os mesmos, sobretudo do meio-campo para a frente, e nós, os suplentes, a ver a bola desde a bancada.

Da bancada?
Naquela altura, só jogavam onze. Não havia suplentes. Esses iam para a bancada. Podíamos, isso sim, visitar o balneário ao intervalo e no final do jogo. Muitos atribuem a mudança de local à última hora da meia-final com a Inglaterra de Liverpool para Londres, mas o nosso grande erro foi não poupar jogadores imprescindíveis nos quartos-de-final com a Coreia do Norte. Ainda por cima, entrámos convencidos que íamos ganhar fácil e apanhámos um valente susto. A perder por 3-0, tivemos de jogar mais que o dobro para passar a eliminatória e isso custou-nos fisicamente. E por quê? Só jogavam os mesmos: Jaime Graça, Coluna, Simões e outros.

Depois desse Mundial, volta à baliza da selecção e até brilha em Itália, não é?
Empatámos 1-1 [Março de 1967] e ninguém previa esse resultado, até porque a Itália estava a preparar-se para o Euro-68, que haveria de ganhar em casa, e era francamente favorita. Os jornais até falavam em quatro ou cinco de diferença. Foi um a um e só porque o José Augusto lembrou-se de fintar dentro da área. Ele perdeu a bola e o italiano [Capellini] marcou. Ainda me lembro bem daquilo que o seleccionador deles disse depois, na conferência de imprensa: ‘com o guarda-redes de Portugal na baliza de Itália, tínhamos sido campeões do Mundo [em 1966]’. Nesse jogo, há outro detalhe. Eu lesionei um grande jogador, o Riva [avançado do Cagliari, um dos bambino d’oro de Itália]. Sem querer, parti-lhe
a perna: eu saí da baliza a olhar para a bola, no ar, e choquei violentamente com ele. A tristeza invadiu-me completamente e nem a visita ao hospital diminui. Só fiquei completamente aliviado quando ouvi falar do seu regresso. Até foi a tempo de ser campeão europeu em 1968 e tudo.

Havia estágios nos anos 60?
Se havia! De sexta a segunda-feira. Com o Pedroto, de quinta a segunda. Eu e o Pedroto fomos campeões nacionais como jogadores em 1959, treinados por um brasileiro pesado de aspecto e feitio, o [Dorival] Yustrich, e depois ele treinou-me no Porto. Entrávamos no estágio à quinta e, às vezes, com jogos europeus do Porto ou com a selecção pelo meio, só ia a casa 15 dias depois. Era uma vida muito complicada. No ano do Mundial, veja bem, estive três meses sem ver a minha mulher, de Maio até Agosto.

E quando voltou a Portugal, agarrou-se ao seu Triumph Spitfire? Li isso no
site Bibó Porto.

[lá está a gargalhada por antecipação] Tinha um Simca e sugeriram-me trocá-lo
por esse Triumph Spitfire. Nem pensei duas vezes, aceitei logo. Era uma acção
promocional. Bastava-me andar com ele e pronto. Era um carro original, raramente visto em Portugal. Guiá-lo era uma maravilha.

Qual a sua maior alegria desportiva?
O ser campeão, o ganhar a Taça 68 no 2:1 ao Vitória FC, o ir à selecção, mas
amigo, desculpe lá, não posso falar mais. Estão todos a olhar para mim aqui na clínica e eu tenho de trabalhar, tal como você, não é? Portanto, vamos ao trabalho. Se quiser, apareça aqui e falamos mais um pouco, o que você quiser. Agora é que não dá, tenho de desligar. Abraço, abraço.

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