Olivier Bonamici. ‘Fui à varanda e mostrei o meu rabo ao mundo’

Mais You Talkin' To Me? 10/24/2020
Tovar FC

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Olivier Bonamici. ‘Fui à varanda e mostrei o meu rabo ao mundo’

Eles andem aí. Os ciclistas e os jornalistas, no bravo pelotão do Tour liderado pelo inimitável Olivier, franco-monegasco de ascendência italiana e com uma costela (ou mais até) portuguesa

Eddy Merckx, Jacques Anquetil, Bernard Hinault, Miguel Indurain, Philippe Thys, Louison Bobel, Greg LeMond, Chris Froome, Fausto Coppi, Alberto Contador, Laurent Fignon, André Leducq, Gino Bartali, Antonin Magne, Lucien Petit-Breton. Olivier Bonamici.

Que lista é esta? A de campeões do Tour, daqueles com dois ou mais camisolas amarelas. De Merckx a Bonamici, bien sûr. Merckx ganha cinco vezes entre 1969 e 1974. Bonamici ganha muitas mais. Basta ouvi-lo na Eurosport desde 2004, ano em que perde três jogos com a Grécia no Europeu, um pela França (seu país de nascimento) e dois por Portugal (seu país adotivo). Daí para a frente, o sotaque arranhado de Bonamici entra pelas nossas casas adentro. Das duas, uma: ou é futebol ou é ciclismo. Seja qual for, entre Tour, Taça Africana das Nações, Giro, MLS e Vuelta, a sua pedalada é digna de um camisola amarela. Voilà, c’est Olivier.

De onde és?

Nasci em Rennes, na Bretanha, a 23 Setembro 1972. Tenho 44 anos. Sou franco-italiano. Quer dizer, sou franco-monegasco. De origem italiana. Tenho dupla nacionalidade: francesa e monegasca. E sou de ascendência italiana, através do meu pai e dos meus avós. Portanto, tenho mentalidade italiana apesar de ter vivido em França.

Isso quer dizer o quê?

Sou mais ligado à família e ao futebol. Fui educado num colégio católico, em França, com alguns princípios de vida. Hoje em dia, já não sou católico mas é inegável que as raízes dessa educação continuem por aqui [Olivier é bastante expressivo e passa a mão direita pelo corpo todo].

Viveste sempre em França?

Até ir para Portugal, sempre. Só ia a Itália para passar férias.

E foi uma infância feliz?

Muito feliz, junto dos meus avós italianos, muito cultos, generosos e extraordinários.

O que fazias?

Tudo de bom e algumas maldades [Olivier emite um som maléfico e dá uma valente gargalhada para o ar]

Então?

Foi uma infância um pouco perturbada até entrar nos padres [faz uma careta engraçada e continua a falar com o entusiasmo de sempre]. Era um pequeno ladrão, fazia parte de um gang. Até aos 13, 14 anos.

A roubar o quê?

Uns discos e tal, nada de especial. Os meus pais, que depois se divorciaram, pensaram sobre aquele caos e disseram-me ‘acabou-se a brincadeira, já para os padres’.

Daí o colégio católico?

Exacto. Uma educação rígida, tramada. Mas, olha, cá ando.

És do Monaco, clube. Porquê?

Todo o lado do meu pai é de nacionalidade monegasca e assumi o culto do Monaco, ou através do futebol ou através da família da princesa. Os meus avós falavam-me sempre disso e, antes de de ir dormir, o meu pai até dava um beijo num copo especial com a fotografia da Grace Kelly e do Príncipe Rainier. O culto era grande.

Mas alguém era do Monaco mesmo?

Só o meu avô.

E viste algum GP do Monaco?

Não gosto de desportos motorizados. Nunca gostei, zero.

Então a tua paixão versava sobre?

Desde pequenino, futebol e ciclismo. Lembro-me muito bem do fantacalcio [jogo virtual de futebol com notas a jogadores, como se fosse a Liga fantástica do jornal Record, criado em Itália por Riccardo Albini em 1988]. Jogava muitíssimo com os outros miúdos emigrantes, durante as aulas. Lá em casa, com o meu pai, adoptei uma certa independência de espírito. Adorava analisar o jogo, nada a ver com os árbitros e isso. Só o jogo em si. Adorava aquelas histórias que me transportam para o passado e fazem-me antever o futuro.

Um exemplo?

Um exemplo? Este aqui: o Monaco foi eliminado pela Juventus nesta edição da Liga dos Campeões e a primeira coisa que me passa pela cabeça é o ficar lixado. A segunda, a terceira e por aí fora já nada têm a ver com essa lógica de raciocínio. No dia seguinte, leio o L’Équipe e, baaaang, é exactamente aquilo que eu pensava e seria aquilo que o meu pai pensaria: seria tão bom o Buffon ganhasse finalmente a Liga dos Campeões. Desde os meus sete/oito anos, já pensava assim. Ficava lixado e, depois, deixava-me fascinar pelo outro lado da história. Quando me rio no ar, durante uma transmissão em direto de um jogo de futebol ou de uma etapa de ciclismo, lembro-me sempre do meu pai. Ele era igualzinho. Ou melhor, eu sou igualzinho a ele. Sabes o que ele me fez um dia?

Nem ideia.

Ele imitou a voz de um relator de futebol durante uma hora e meia num Bordéus-Monaco e fez ganhar o Bordéus por 11-0. Fiquei todo branco a ouvir o relato, a pensar que era mesmo verdade. E ele ‘Olivier, então pá, não reconheceste a minha voz?’ E não, não tinha reconhecido a voz dele. O meu pai estava sempre sempre sempre a brincar. E, já agora, esse jogo acabou 1-0 para o Bordéus.

Vocês eram de que clube?

Monaco, Rennes e, em Itália, Fiorentina. Ainda apanhei o Baggio.

Iam juntos ao futebol, tu e o teu pai?

Sim, fogo, claro que íamos. Ao Monaco.

O do Rui Barros?

E do Weah, o melhor jogador que vi no Monaco. Foi complicado gerir a saída dele, substituído pelo Klinsmann.

Vias o Rui Barros das bancadas?

Siiiim, sim [Olivier parte-se a rir]. O que acho inacreditável é que estava longe de acreditar na minha associação com Portugal. Gostava sobretudo do Rui Barros como ligação técnica ao Weah, isso era fascinante. O Rui Barros distribuía os caviares ao Mister George.

Essa equipa é do Wenger, não é?

Exactamente, e foi a melhor equipa de todas. Havia ainda o Ettori, o Petit, o Fonfana, o Passi. É o Monaco do futebol bonito e ofensivo, como este do Leonardo Jardim. Ao contrário de outros Monaco, como o de Claude Puel, mais fechados.

Esse Monaco chegou à final da Taça das Taças 1992, com o Werder Bremen, aqui na Luz. Foste ver?

Nunca pensei nisso, simplesmente porque não havia a mínima possibilidade. E fiquei lixado porque ninguém falou desse Monaco-Werder Bremen por culpa do drama do Furiani [uma bancada amovível do estádio do Bastia cai antes da ½ final da Taça de França vs Marselha e morrem 18 pessoas, além de 2.357 feridos]. Na primeira vez que o meu clube vai a uma final europeia, acontece um drama que tapa a vertente desportiva.

Quando é que começas a entrar no jornalismo?

O meu primeiro relato de futebol é aos 16 anos de idade, através de uma rádio associativa qualquer na Bretanha. Era o meu sonho.

Trabalhaste fixo onde?

Estudava direito, sabes? Só que a paixão era tão grande que fui bater à porta de uma rádio. Tinha de ser, era mais forte que eu. Durante as aulas, gastava quase todo o dinheiro a comprar o L’Équipe e a Gazzetta dello Sport para ler e debater o desporto nos restaurantes e bares.

Entraste nessa rádio e depois?

Bati à porta e deram-me um contrato até as 24 anos. Nesse período, encontrei uma mulher portuguesa em França, que estava a estagiar nessa rádio.

Uau, e depois?

Ela acabou o estágio e voltou para Portugal.

E tu?

Hesitei. Tinha acabado de receber uma ótima proposta para ser editor de uma rádio em renovação, na Bretanha. Eram umas oito/dez pessoas numa redação, seria um trabalho brutal, liderado por mim e nada mal pago. Só que

Só que?

[Olivier endireita-se na cadeira e diz com o ar mais solene deste mundo] O amor ganhou.

Vieste para Portugal?

Estávamos em 1995.

Sabias falar alguma coisa de português?

Rien de rien, zero.

Ficaste onde, lembras-te?

Num dormitório de cegos, onde morava um primo da minha mulher.

Hããã?

[Olivier mete a mão à frente da cara, entorta-se ainda mais na cadeira e parte-se a rir] É surreal, agora que penso nisso. Não tinha dinheiro, nada, zero. E fiquei nesse dormitório. Passava os dias com eles. Ia aos restaurantes com eles, cortavas-lhe a carne, o peixe.

Durante quanto tempo?

Quinze dias.

E não falavas nada de português?

Nada. A minha primeira ligação a Portugal foram as cassetes do Tony Carreira, entregues por um cego, no meu último dia no dormitório.

Depois aprendeste como?

De ouvir na rua, lá em casa com a minha mulher, nos almoços e jantares com os meus amigos e, depois, com os meus dois filhos.

Dois filhos portugueses?

Nasceram cá os dois, sim. O Lucas e a Ema. Tivemos de escolher nomes que dessem em três línguas: francês, português e italiano. Não podia ser Miguel, porque os franceses não sabem dar o jeito à língua para dizer Miguel. Não podia ser Jean Pierre, porque os italianos não sabem dizer Jean-Pierre. Decidimo-nos por Lucas e Ema.

Estavas cá quando a França ganhou o Mundial-1998?

Sim, sim, e a mostrar o meu rabo à janela.

Como?

Como nenhum vizinho ligava para a França e queria ser o único a fazer a festa, fui à varanda e mostrei o meu rabo ao mundo. Na verdade, imitei o meu pai que baixou as cuecas de contentamento pelo 2-0 à Espanha na final do Euro-1984 e saiu a correr pelo jardim fora. Catorze anos depois, lá estava eu a fazer quase o mesmo. Na altura, torcia 100% para a França e zero para Portugal.

Dois anos depois, a França ganha o Euro-2000.

Aí já não mostrei o rabo.

E ainda estavas 100% para França e zero para Portugal?

Sim. Espera, não, não, já não. Naquele 2-1 a Portugal na meia-final, o meu sentimento já começava a ser dividido. Não diria que senti pena dos adeptos portugueses, mas houve algo que me atraiçoou a alegria plena da vitória.

Que ideia tinhas de Benfica, Sporting e Porto antes de chegares cá?

Agora é mais fácil, tudo está mais à mão. Na altura, não sabia rigorosamente nada. Zero. E quando as pessoas me perguntavam se conheciam o Carlos Lopes, respondia-lhe ‘estás a brincar, não? Conheces o campeão olímpico italiano ou francês deste ou daquele desporto?’ É como hoje perguntarem-me se o Rui Costa do ciclismo é conhecido lá fora. Não, não é. Se em França, há franceses que não conhecem Bardet ou Pinot. [Olivier esbraceja à medida que avança na narrativa] Há até quem arrisque uma resposta tipo ‘é um ciclista, não é?’.

Ficaste impressionado com o que viste aqui à tua chegada?

Admito, fiquei impressionado com a relação entre os adeptos e o futebol. Há um conhecimento do futebol. Não digo de análise, e sim de conhecimento. Jornalisticamente falando, há agora uma nova geração de jornalistas com uma visão menos sensacionalista. A anterior geração era mais complicada. Lia coisas e ficava uau, como é possível escrever isto?

O quê?

Tratam o Ronaldo como se fosse o Dom Sebastião. Quando há um jogo com a Inglaterra, é o slogan do vamos comer os bifes. Quando há um jogo com a Holanda, é o vamos chupar a laranja. Coisas sem sentido. Quer dizer, quem sou eu para dizer isto, mas ler coisas deste tipo na década 90 e século XXI faz-te mal.

Qual foi o primeiro estádio português visitado por ti?

O da Luz. E aconteceu uma coisa curiosa: estava com um amigo nas rulotes perto do estádio e apetecia-me uma sobremesa, depois da bifana.

Que tal a bifana?

Boa, boa. Agora, adoro. Na altura, era-me indiferente e desconhecida.

Então e a sobremesa, que tal?

Queria uma tarte de framboesas. Claro que não havia nada disso e esse meu amigo ainda hoje me fala disso: tu pediste uma tarte de framboesa numa rulote perto do Estádio da Luz.

Seguiram-se os outros estádios?

Lembro-me de ir a Alvalade ver um Sporting 3 Monaco 0 para a primeira jornada da Liga dos Campeões. Mas a pior recordação de um jogo entre o Monaco e equipas portuguesas é a final de 2004, com o Porto. Ainda mais inacreditável porque esse Monaco do Puel era claramente inferior ao deste do Jardim.

Havia o Rothen, Morientes, Giuly, certo?

Só esses três. E o Rothen não é um Mbappé. Claro que o Monaco apanhou algumas equipas em baixo de forma, como Real Madrid e Chelsea. Tudo depende do contexto, um pouco à imagem do sucedido em Dortmund esta época. É impossível desvalorizarmos o atentado ao autocarro do Borussia antes do jogo. Isso tem implicações evidentes num jogo de futebol, seja ele europeu, nacional ou regional. O que mexe com os jogadores, mexe com tudo.

Quando é que começas a trabalhar na televisão portuguesa?

Em 2004, na Eurosport. Enviei o currículo, almocei com o Luís Piçarra e acho que ele gostou da minha pancada. Como ele é anárquico como eu, pensou ‘vou arriscar’. E cá estou, com este sotaque.

2004 é o ano do Europeu.

Trabalhei durante o Euro para a Radio France.

Então perdeste duas vezes?

Três: Portugal-Grécia na abertura, França-Grécia nos quartos e Portugal-Grécia na final. Aí já era mais tuga e o 1-0 na Luz bateu-me forte.

Ficaste tuga quando?

Em 2006. Quando a França ganhou a Portugal no Mundial, não estava lá muito contente com o 1-0. Já senti o meu coração partilhado.

Efeitos da portugalidade. Foi a comida?

Nem me fales.

Lembras-te da primeira experiência?

Cheguei aqui em 1995 e estava cheio de fome. Entro numa loja e vejo uma sandes de ovo. Uma omelete no meio de uma sandes?! [Olivier faz outra careta] Não havia nada disso em França. Depois instalei-me e comecei a aventurar-me na culinária.

E?

Foi a loucura. Se calhar é a minha costela italiana, de gostar da comida familiar, das quantidades, da cultura do azeite. A verdade é cheguei aqui a pesar 78 quilos e já tinha 105 quando me casei.

Cento-e-cinco?

Em França, não comia muito. Aqui, comia tudo entre cozido à portuguesa, dobradas, rojões, polvos etecetera etecetera etecetera. Gosto de todas as comidas do mundo e gosto de experimentar tudo. No fundo, é um pouco a minha personalidade. Adoro entrar num restaurante, sentar-me à mesa para ler o menu e dividir-me em mil enquanto leio as entradas, as carnes, os peixes. [Olivier entusiasma-se de tal maneira que quase fala de pé] É terrível, uma doença. Peixe, massada, caldeiradas. Se me ligares a meio da noite e disseres ‘vamos a um libanês amanhã à meia-noite e comer tartarugas com molho tal’, eu vou. Sem problema nenhum.

Já falámos de futebol, comida. Falta o ciclismo. Tens heróis no ciclismo?

No futebol, fui educado com o culto de Cruijff, depois Bielsa e Guardiola. E dos números 10: Platini é o pai dos dez e é de origem italiana, como eu. Depois, Roberto Baggio. Alessandro Del Piero, Zidane, Rui Costa, Ronaldinho. A minha filosofia de futebol é a do Ajax, depois Barcelona. Não sou adepto do Barça, não posso dizer isto, mas sou defensor daquele estilo de jogo, adoro o tiki-taka. Em Portugal há um anti-guardiolismo primário e eu sei porquê: Mourinho. É como aquela teoria entre Messi e Ronaldo. Dizem-me que o Ronaldo é melhor porque foi corajoso e aventurou-se noutro campeonato, o espanhol, enquanto o Messi sempre ficou no Barcelona. Pois bem, e o Maldini jogou sempre no Milan e não deixa de ser um dos melhores por isso. Os gostos discutem-se e há sempre quem queira desvirtuar um pouco a categoria superior dos outros. Disso, não gosto. Se é bom, é bom. Se é para elogiar, é para elogiar. Isto tem a ver a tua pergunta. Vê bem. No ciclismo, sempre fui a favor dos atacantes, como Greg LeMond, Claudio Chiappucci e Bernard Hinault. E sempre tive dificuldade em gostar dos mais calculistas, como Miguel Indurain. Nunca fui fã do Indurain, mas apercebi-me com o tempo que era um senhor e esta é a grande diferença entre o público do futebol e o do ciclismo: o respeito. No ciclismo, há respeito.

E o Lance Armstrong?

Nunca caí na armadilha, na fraude Armstrong. Nunca gostei dele e comecei a bater-lhe no ar. Na altura, as pessoas metiam-se comigo e eu não tinha provas. Mas tinha tantas tantas tantas suspeitas, através de colegas meus do L’Équipe, que tinham feito trabalhos exaustivos sobre ele. Nunca gostei dele como pessoa, a dar lições de moral e com aquelas pulseiras amarela. Ele era falso moralista como os conservadores americanos a falar sobre a fidelidade. São sempre os piores. E isso veio ao de cima.

Ias ver as etapas do Tour ao vivo?

Cheguei a ir com os meus avós. O que adorava mesmo era comprar o L’Équipe e ver a distância entre os ciclistas por segundos e minutos.

Já falámos de futebol, comida e ciclismo. Só falta o cinema.

Aaaaaah, muito bem. Vamos a isso.

És cinéfilo desde pequeno?

A minha família é cinéfila e puxou-me desde cedo: fui educado com Frank Capra, todos os grandes westerns, Pasolini, Fellini e sou tarado por Tarantino. Completamente doido. É um gajo violento, mas nunca daria um murro a alguém. Como eu. É fã de bd, como eu. Revejo-me na sua violência, nos seus fétiches, na sua luta pelo racismo, na sua ligação às artes marciais, aqueles filmes japoneses do antigamente, das lutas de espadas – os Kurosawas, no fundo.

Qual foi o primeiro filme que viste no cinema?

Um Indiana Jones, Os Salteadores da Arca Perdida. Fui com os meus avós e com os meus pais. Eles ainda estavam juntos e lembro-me perfeitamente disso nem tanto pelo filme, mais por ver os meus pais a beijarem-se.

Viste esse Indiana Jones dobrado, certo?

Nem me lembres. A dobragem só é boa para a indústria da dobragem. De resto, é péssimo, péssimo. Por isso é que os franceses falam mal qualquer língua. Hoje já não sou capaz de ver um filme assim. Porra, ouvir o De Niro com um sotaque francês. Nunca mais.

Já falámos de futebol, comida, ciclismo e cinema. Falta algum desporto, o ténis?

Quando era pequeno, via o golfe na televisão à noite mais o ténis. Mamava tudo. Agora já não. Lá está, gosto do futebol ofensivo do Monaco e já não vou à bola com o Monaco defensivo do Puel. Com o ténis é a mesma coisa. Quando cresci, havia Noah, Connors, McEnroe, tudo muito estimulante. Agora o ténis é sem graça, sem piada nenhuma.

E os jogos Olímpicos?

Liguei muito em criança e, hoje em dia, há só alguns momentos que não quero falhar como a final dos 100 metros, até para partilhar com o meu filho. Com o passar dos anos, mudamos o chip. Trabalho com o desporto o ano inteiro e, por estranho que possa parecer, quero descansar nos dias de folga. Tenho amigos meus que trabalham o desporto durante cinco dias a fio e passam os outros dois a ver jogos do campeonato inglês, francês, italiano, espanhol pela televisão. Uauuuuu. Eu já não consigo, já não consigo [Olivier endireita-se no sofá à procura de conforto nas suas palavras]. Nos dois dias de folga, só quero descansar através de outras artes. Ou, então, vou à bola com os meus filhos. Isso é um desporto completamente diferente.

Como é que é isso?

É tudo. É o antes do jogo, o preparar o cachecol, o petiscar nas rulotes do estádio. É o jogo em si, as emoções de um lance perigoso, a análise de um lance duvidoso e as reações aos insultos de outros adeptos. É o depois do jogo, a sandes na rulote, a escolha do melhor em campo.

Os teus filhos são muito do futebol?

O Lucas é vidrado em bola. Há dias, perguntou-me ‘Papá, diz-me uma coisa: achas que o Ronaldo vai ganhar a Bola de Ouro este ano?’ Fez-me lembrar a mim quando perguntava esse tipo de coisas ao meu pai. E então lembrei-me das respostas do meu pai. Disse-lhe: ‘Só há um jogador capaz de lhe tirar a Bola de Ouro, o Buffon.’ E o Lucas estava espantado, o Buffoooooon? Argumentei e a piada de ser pai é mesmo essa, traçar a nossa linha de pensamento aos filhos. No dia seguinte, ou depois até, a capa do France Football era precisamente a falar desse tema, de como o Buffon seria o único capaz de tirar a Bola de Ouro 2017 a Ronaldo. E o meu filho muito espantado, ‘mas como é que tu sabias disto?’

A empatia é grande, já vi. Estavam juntos na final do Euro 2016?

Isso foi uma noite inacreditável, ali no Bairro Alto. Ele é franco-português e assume a portugalidade à minha frente. Havia um grupo pró-França e um pró-Portugal. Quando o árbitro acabou o jogo, o meu filho chorou de alegria. Foi um momento forte para mim, mexeu definitivamente comigo.

E tu, choraste?

Quando o Éder marca, vieram-me as lágrimas aos olhos por ver a alegria do meu filho e a dos portugueses à minha volta. Depois, fiquei menos contente. Se fosse com a França, seria igual [Olivier pensa um pouco]. Ou melhor, seria pior, pior. A verdade é que há determinadas atitudes que não gostei, como as críticas ao L’Équipe e France Football. A imprensa francesa está sempre a bater na seleção francesa e a dizer que os franceses têm muito a aprender com os portugueses. Também não gostei do ‘e foi o Éder que os fodeu’. Entendo esse lado, mas não gostei. Em resumo, foi uma noite mágica. Saí com o meu filho no Bairro Alto e sonhámos alto sobre o que iria mudar em Portugal depois dessa vitória? Afinal, não mudou grande coisa. Como a França em 1998: quatro anos depois, Le Pen chegava à segunda volta.

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