Gentile, 23 faltas em 40 lances
Claudio até pode ser, Gentile é que não. Claudio Gentile é um dos defesas mais chatos da história, estilo Nobby Stiles, conhecido e reconhecido para sempre como o marcador mais implacável de Eusébio.
Único campeão mundial nascido na Líbia, o bom do Gentile faz-se notar na Juventus de Trapattoni, ao lado de figuras históricas como Zoff, Scirea e Cabrini. Se todos estes três transmitem uma áurea de gentleman e fair-play xxl, Gentile é totalmente o contrário. Irascível ao máximo, quer lá saber da educação. Daí que seja um marcador exímio. A sua fama remonta aos anos 70, na noite em que a Itália apanha 2:0 da Inglaterra em Wembley, a caminho do Mundial-78.
Steve Coppell conta-nos. ‘Gentile marcou-me e passou o tempo a cuspir-me na cara e a chamar-me ‘english pig’. Levou um cartão amarelo ainda na primeira parte por puxar-me a camisola. Já no chão, conseguiu dar-me um pontapé na cabeça com a desculpa de que a bola estava perto. Enfim, Gentile era este tipo de jogador. Numa outra jogada, já na segunda parte, a bola ainda ia no ar e ele apertou-me os testículos com tanta força que me deu vontade de pedir a substituição’.
Passam-se uns anos. Gentile aprimora a arte da marcação individual. No mercy. E quase zero vermelhos. Em toda a carreira espalhada por 677 jogos, só uma expulsão. E por duplo amarelo, em Brugge (Bélgica), para a Taça dos Campeões 1978. Na segunda fase de grupos do Mundial-82, a fama de Gentile atinge o pico. Há dois 10 exasperados. Um é Zico, o outro é Maradona. Se a camisola de Zico é rasgada nas costas (mal se percebe o número), a de Maradona até acaba o jogo intacta.
O problema (para Maradona, claro) é o número abusado de entradas desleais. Na primeira parte, 11 faltas. Na segunda, 12. Ao todo, 23 faltas em 40 duelos entre eles. Incrível, e inédito. Significa uma falta em cada quatro minutos. Nunca um jogador sofrera tanto aos olhos de toda a gente em pleno Mundial-82. Como se isso fosse pouco, o árbitro romeno Rainea comete a proeza de sacar primeiro o amarelo a Maradona do que a Gentile. O argentino vê aos 35 minutos, por refilar um puxão na camisola, o italiano aos 43′ por what else.
A intra-história da marcação individual também tem o que se lhe diga. A dois dias do jogo com a Argentina, o seleccionador Enzo Bearzot bate à porta do quarto de Gentile e pergunta-lhe sem rodeios se se importa de marcar Maradona. Isto porque Gentile é defesa e Maradona é meio. Ou seja, então e quem marca o avançado Ramón Díaz? Gentile responde-lhe ‘sem problema’. Bearzot vira as costas e Gentile passa as 48 horas seguintes a devorar vídeos de Maradona. E chega a uma conclusão, é impossível travá-lo lealmente. Diria mais tarde, num tributo a Maradona para a revista argentina ‘El Gráfico’, ‘se pestanejas meio segundo, já o perdeste’. E remata assim: ‘Ainda não percebi como é que dois seleccionadores com amplo conhecimento do jogo como Bobby Robson e Guy Thys deixaram-no à solta, sem marcação individual. Porquê? Como? Difícil de entender.’ Portanto, toma lá 23 faltas.
Com Zico, o relato é mais divertido. Porque Bearzot assinala-lhe Éder como marcador. No túnel de acesso ao relvado, Bearzot muda de ideias e diz-lhe ‘afinal é o Zico’ ao que Gentile retribui ‘Éder e Zico, os dois? Va bene’. É só rir, é a Itália no seu melhor, a caminho do tri. E Maradona, puteado com Gentile? Nada, nem um tiquinho. ‘Ele fez o seu jogo, o árbitro é que devia ter feito o seu trabalho’. Simples mais simples não há.
Quatro anos depois, no Mundial-86, Maradona sofre mais uma vez. Agora só sofre 11 faltas vs Coreia do Sul. ‘Desde pequenos que nos ensinam, em filmes e séries, a cultura oriental. E como são bem-educados e tal. Bem, desde hoje [2 Junho 1986], perdi toda a consideração pela educação oriental. Fui massacrado vezes e vezes sem conta. Sofri sei lá quantas faltas e olhem lá que eu toquei pouco na bola, já aconselhado pelo Bilardo [seleccionador da Argentina] em relação à agressividade dos sul-coreanos. Um deles, o número 17, fixei-o logo, porque me deu uma porrada daquelas de ficar a ver estrelas. Eu pensava que o nome dele era kung-fu e afinal era taekwondo”, ironiza Diego.
Coincidência das coincidências, Maradona reencontra o tal número 17 no Argentina vs Coreia do Sul para o Mundial-2010. Ambos seleccionadores. Diz Maradona, na antevéspera: ‘Eles não sabiam jogar futebol. A ver se estão melhores.’ A resposta de Huh Jung-moo: ‘Não entendo essa teoria da perseguição. Isso foi há mais de 20 anos. E digo mais, se voltássemos a jogar, eu faria o mesmo. Não me envergonho desses tempos.”