Pasión, tanta pasión: Maradona

Kavorka Mais 10/29/2020
Tovar FC

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Pasión, tanta pasión: Maradona

O filme é dos melhores do século XXI. Sem pestanejar. Chama-se “O Segredo dos Seus Olhos”, é argentino. Ganha o Óscar de melhor filme estrangeiro em 2010. Sem pestanejar. Benjamín Espósito (interpretado por Ricardo Darín) trabalha na Justiça e tem um assistente chamado Pablo Sandoval (Guillermo Francella). Os dois querem apanhar o responsável por uma brutal violação sexual, só que o homem em causa mais se parece com o homem invisível.

A não ser…

A não ser que o assassino tenha uma paixão. É isso que Sandoval faz ver a Benjamín num encontro (dos muitos) num bar taciturno, propício para bebedeiras de meia-noite à luz do dia. Sandoval explica então a Benjamín onde procurar o tal violador. A sessão de esclarecimento conta com a ajuda de um terceiro elemento, escrivão no tribunal e verdadeiramente entretido a beber uns canecos ao balcão.

Começa então Sandoval a ler-lhe passagens das cartas do desaparecido em combate à mãe.

– Juro-te que com tanta chuva acabei pior que Oleniak. (lê Sandoval)

– Juan Carlos Oleniak começou a jogar no Racing nos anos 60. Em 1962, passou para os Argentinos Juniores. Em 1963, voltou ao Racing. Num clássico com o San Lorenzo, deram-lhe um empurrão e ele caiu de cabeça no fosso. Saiu todo empapado. (explica o tal escrivão, uma autêntica IBM do futebol argentino)

– Mãe, eu vou trazer-te aqui e, juntos, vamos fazer uma bela dupla como Anido e Mesías.

– Anido e Mesías, defesas do Racing, campeão em 1961. Na baliza, Negri. À sua frente, Blanco, Peano, Sacchi, Corbatta, Pizzutti, Mansilla, Sosa e Belén.

– Não te preocupes, mãe, sou como Manfredini e não como Babastro.

– Pedro Valdemar Manfredini foi comprado ao Mendoza por dois pesos e acabou por ser um jogador extraordinário para a época. Julio Babastro, ponta-direita. Jogou entre 1962 e 1963 sem nunca ter marcado um golo.

– Não quero terminar como Sánchez.

– Ataúlfo Sánchez, eterno suplente do grande Negri. Só fez 17 jogos entre 1957 e 1961

– O que é o Racing para o senhor? (de Sandoval para o escrivão)

– É uma paixão, meu amigo.

– Mesmo que não vença há nove anos?

– Uma paixão é uma paixão.

Sandoval dirige-se a Benjamín e: “As pessoas podem mudar tudo: de cara, de casa, de família, de namorada, de religião, de Deus. Mas há uma coisa que não se pode

mudar: pasión.”

Segue-se uma cena imperdível (vista de cima) de um jogo de futebol, entre o Hurácan e, claro, o Racing. E? Sandoval e Benjamín apanham você-sabe-muito-bem-quem nas bancadas. Porquê? Pasión, tãosó pasión. A paixão do futebol, neste caso específico. Paixão. Siga assim. Siempre.

Vem isto a propósito do 60.º aniversário de amanhã de Maradona. Claramente no meu top 3 de desportistas de sempre, atrás de Muhammad Ali (um poeta de categoria internacional e um homem de princípios desde que se recusa a combater no Vietname porque desconhece o inimigo e não vê lógica em ocupar um território alheio) e Michael Jordan (porque voa como uma borboleta e ataca como uma abelha). Atenção, Maradona não é o melhor futebolista de todos os tempos. É só o maior – longe de ser um revolucionário de corpo inteiro como Cruijff ou um fora de série goleador como Pelé. Repetimo-nos, Maradona é o maior.

Por ainda ser o único capitão a levantar a taça de campeão do mundo nos sub20 e AA (1979, 1986), por ser ainda o recordista de faltas sofridas em Mundiais (139), por ainda ser o único a sagrar-se cinco vezes melhor marcador do campeonato argentino, quatro delas seguidas (Metropolitano 1978, Metropolitano 1979, Nacional 1979, Metropolitano 1980, Nacional 1980), por ser ainda o recordista de jogos a capitão em Mundiais (16), por ainda ser o único a driblar cinco adversários até marcar golo em Mundiais (1986, Inglaterra), por ainda ser o único a fugir ao fora-de-jogo de Baresi para marcar um golo de cabeça fora da área ao Milan (1988) e por ainda ser o único jogador eleito melhor jogador nos Mundiais sub20 e AA. E, vá, por ser Maradona, um personagem irrepetível.

Dentro do campo, e também fora. Veja lá dois exemplos de flagrante grandeza: em Maio 1983, ainda combalido pela pancada do ‘butcher’ Goikoetxea do Athletic, desloca-se a Viseu (ya, Viseu, a capital das rotundas em Portugal) para receber um Gandula, prémio anualmente atribuído pelo jornalista brasileiro Wilson Brasil a quem mais se destaca. O meu pai aproveita e entrevista-o. A quem, ao Wilson? Ou ao Gandula? Nem um nem outro, ao Diego himself. Em Viseu, repetimo-nos. O homem sai do conforto de Barcelona para ir a Viseu. Desculpem lá a insistência: V-i-s-e-u. Porra, é d’homem.

Em Janeiro 1985, na primeira época em Itália, um suplente do Nápoles organiza um jogo particular com o Acerra, uma equipa dos distritais, a 20 km do Estádio San Paolo. O motivo é singular: uma criança de Acerra tem uma doença raríssima e precisa de dinheiro/visibilidade para pagar a operação. Maradona é o primeiro a morder o isco. O presidente napolitano Corrado Ferlaino diz não. Como é que é? Não? Essa é boa. Maradona paga do seu bolso o valor da cláusula do seu seguro, qualquer coisa como 12 milhões de liras (uns 1,2 milhões de escudos) e joga num campo de batatas. Até marca um golo belíssimo, é mesmo o golo do século (antes daquele à Inglaterra no ano seguinte).

Pasión, sempre pasión, tão-só pasión, tanta pasión. A palavra é estimulante. Como Maradona.

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