Villa Fiorito, o bairro privado

Kavorka Mais 10/29/2020
Tovar FC

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Villa Fiorito, o bairro privado

Onde estávamos a 22 Junho 1986? Na casa dos pais, dos avós ou de amigos? No cinema? No meio da rua? Na escola? Com quem? Vestidos com que roupa? Com que sapatos? Agarrados a uma bola de futebol? Não sabemos. Por muito que nos esforcemos, por muitas voltas que a cabeça dê, qual cubo rubik, não nos conseguimos lembrar. É ingrato, pois é! Não sabemos onde estávamos quando Maradona marcou o golo do século XX, o golo dos Mundiais, o golo que desequilibrou aquele Argentina-Inglaterra, e é uma pena.

Claro que investigar o passado é fácil. Aí, percebemos que a véspera do jogo foi tensa, com os jornais dos dois países a evocarem uma guerra absurda. “Não perca, domingo, 22, a repetição das Malvinas” escreveram os argentinos, enquanto os ingleses preferiram o igualmente chocante “Malvinas bis, há que voltar a ganhar”. Claro que investigar o passado dá trabalho mas encontramos reportagens sobre o estado periclitante da Argentina, o país que ia votar a aprovação (ou não) do divórcio. E ainda há o jogo, fragmentos dele, imagens dispersas. Mas isso não chega. Continuamos sem nos lembrarmos onde estávamos no 2:0.

Hey, calma lá… Estamos no meio desse jogo. Ele ainda não se agarrou à bola, temos tempo! Chegámos a Villa Fiorito, a vila (agora cidade) que viu nascer Diego (agora Maradona), no sul de Buenos Aires. A viagem não foi fácil. Na sede do diário desportivo Olé, à pergunta do quanto seria em pesos uma viagem do centro para Villa Fiorito, respondem com sobrancelhas arqueadas, rugas na testa, nariz franzido, boca torta. Não é uma questão de ser perigoso, explicam-nos, simplesmente não é aconselhável. Se eles soubessem o sol que estava em Portugal e nós com protector 15, isso sim, é desaconselhável. Agora Villa Fiorito, baaaah. Vamos confiar num taxista. Um que diga “libre”. Aí está, mão estendida, fecho de portas activado e cá vamos nós. Alfredo. Chama-se ele, o taxista. Tem 58 anos e tem uma vontade enorme de falar.

Com esse sotaque, és de que parte da Argentina?

De Portugal?

E o que fazes aqui?

Vais fazer o quê lá para baixo [Villa Fiorito]?

Quando Maradona é a resposta, abrem-se algumas portas. Não aquelas cujo fecho se activou há pouco quando estendemos a mão para nos sentarmos neste pedaço de história que é o táxi de Alfredo. Falamos de outras portas. “Já lá vivi, sabes. Quando aquilo era engraçado, havia espaço, campos de futebol, cumplicidade entre os vizinhos. Agora são centenas de casas amontoadas sem ordem nem hierarquia nenhuma. E o que queres de Maradona? Onde ele cresceu? Nã, nã, nã. Vou levar-te a um sítio e depois voltamos à casa de partida, ok?”

“Este é o Don Juan”, que nos aperta a mão, desconfiadíssimo, e revira os olhos ao amigo. “É o Don Juan, porque apaixonou-se pela primeira mulher que conheceu e nunca mais a largou, não foi? Hããã, Don Juan?” Isto ‘tá bonito ‘tá. Olha que dois… Este Don Juan está sentado e vai mostrar-nos a sua garagem. E o que é que vai sair de lá? O Ferrari preto de Maradona quando o Nápoles renovou lhe renovou o contrato a pensar que Diego ia aceitar a proposta de Berlusconi (Milan) em Novembro de 1987? O Mini Cooper preto com que Maradona se apresentou na sede da federação argentina quando foi nomeado seleccionador em Novembro de 2008? Não e não.

A garagem é um eufemismo para toda a tralha possível e imaginária de Maradona, a começar por-sei-lá-quantos-posters iguais, tamanho XXL, de uma formação com onze Maradonas, seis de pé e cinco agachados. “Isto é do documentário de 2005. Este é o Maradona loiro, este é o doido [este, só este? pergunto para os meus botões da t-shirt], este é o da mão de Deus, este é o da droga, este é o de Havana, Cuba, este é o gordo, este é a criança a dar toques na bola que aparece naquele vídeo muito conhecido, este é o adolescente, este é o da apresentação no Nápoles e este é o melhor que o Pelé.” Onze, certinho.

Ao lado de uns dos posters, uma revelação que impõe o regresso aos bons velhos tempos. Àqueles que não nos lembramos onde estávamos, com quem, com que roupa e sapatos. Isso mesmo, 1986. É uma cassete (vaya com Dios!) do Spectrum com Peter Shilton’s Handball Maradona, um jogo que saiu logo após o Mundial-86. “Nunca joguei isso, mas comprei duas cassetes, uma por cada golo d’Ele à Inglaterra. O meu neto é que experimentou mas não ficou animado por aí além. Falou-me numa linguagem estranha. Critica os efeitos sonoros, a digitalização. Viejo, isto é de 1986, o que é que ele quer? Bem… adiante, explicou-me que tu és o guarda-redes e tens de defender a baliza. Agora não me perguntes mais, por favor. Só sei que o meu neto é melhor à baliza que o Shilton, isso de certeza. Mira, um arquero [guarda-redes] que pode usar as mãos, salta com elas levantadas e mesmo assim é batido pelo jogador mais pequeno em campo, que arquero es?”

Don Juan abre uma caixa e retira de lá uma centena de folhas A4. Todas parecem estar passadas à máquina de escrever. “Prefiro assim, do que ao computador. Nem sei onde é o botão para imprimir, quanto mais… Toma, ofereço-te.” É uma lista das melhores frases de Maradona ao longo da história. Porquê 21? “É o número de jogos d’Ele em Mundiais.” E porquê abrir e fechar o capítulo com duas frases sobre o Pelé. “Para mostrar a decadência desse brasileiro. Eu vi-o jogar em Buenos Aires, e até fui a Montevideo só para o ver jogar com o Peñarol. Um fenómeno, hein? Mas vendeu-se e Ele tem razão. Mas antes de Diego saber disso, idolatrava-o. Como eu.” Ok, ok, já percebemos, o Pelé é um “cafajeste”.

“Eu sabia que Pelé era um Deus como jogador. Agora conheci-o e sei que ele também é o como pessoa” (1979)

“Houve apenas um Pelé. Os outros vieram depois” (antes do Mundial do México, em 1986)

1. “O primeiro golo à Inglaterra? Foi a mão de Deus” (1986)

2. “Jogar sem público é como jogar dentro de um cemitério” (depois de Nápoles e Real Madrid jogarem à porta fechada, para a Taça dos Campeões 87-88)

3. “Não sou contra os homossexuais. É bom que eles existam, porque assim há mais mulheres livres para os machos de verdade” (1987)

4. “Não concordo com os comunistas que se passeiam de Mercedes e andam com um Rolex” (alusão a César Luis Menotti, 1989)

5. “Nunca imaginei que houvesse tanta gente que se alegrasse com a minha tristeza” (após a derrota na final do Mundial-90)

6. “A rinoscopia, o cabelo curto… Qualquer dia, os jogadores da selecção querem coçar os tomates e o Daniel Passarella vai mandar cortá-los” (1995)

7. “Com a cocaína não existo. Sou como Oscar Ruggeri que não sabe dar dois toques seguidos. A droga deixa-te rígido” (1996)

8. “Eu queria ir jogar para os Estados Unidos, mas o idiota do Clinton não me deixa entrar” (1996)

9. “Eu tenho uma vantagem sobre os políticos. Eles são públicos, eu sou popular” (1996)

10. “Os dirigentes do Boca são mais falsos que um dólar azul” (1997)

11. “É evidente que tenho linha directa com o Barba [Deus]” (1997)

12. “Blatter quer-me como um filho. Sim, como um filho da p…” (1998)

13. “Se minhas filhas chorarem duas ou três vezes por causa de seus namorados, eles vão sofrer um acidente” (1998)

14. “Se o Havelange tivesse uma página na internet, chamar-se-ia ladrao.com” (2000)

15. “Ganhar ao River [pelo Boca] é como a tua mãe despertar-te com um beijo” (2000)

16. “Chegar à área e não rematar à baliza é como dançar com a tua irmã” (2001)

17. “Não tenham medo de Bin Laden, os ianques inventaram-no para combater os russos” (2002)

18. “Eu cresci num bairro privado. Privado de água, de luz e de telefone” (2004)

19. “Na clínica, existe um [paciente] que acha que é o Robinson Crusoe e não acreditam que eu sou o Maradona” (2004)

20. “Quem disse que o Demichelis está mal? Só se foi o Andrea Bocelli” (2010)

21. “Sinto como se tivesse levado um murro de Muhammad Ali. Não tenho forças para nada” (após o 0-4 da Alemanha nos quartos-de-final do Mundial-2010)

“Pelé é um escravo. Vendeu-se à FIFA e faz-se amigo dos jogadores” (1997)

“A primeira vez do Pelé foi com um homem” (1997)

O telemóvel de Alfredo toca. Há um cliente para apanhar no centro. Já não há tempo para mais nada. Nem para revistar devidamente as mais de 100 camisolas de Maradona, em todas as versões possíveis e imaginárias dos clubes por onde o argentino passou.

Don Juan até se deu ao trabalho de mandar fazer uma réplica do Estrella Roja, o primeiro clube de Diego. Do Cebollitas, a segunda equipa e aquela que o tornou famoso pela invencibilidade de 136 jogos em torneios locais, nacionais e até além-fronteiras (Peru e Uruguai), Don Juan tem quatro camisolas. Julgamos que é tudo, queríamos mais mas é pena.

Alfredo despede-se do amigo e Don Juan faz um gesto com a mão, como quem diz “adeus ò vai-te embora”. Depois, agarra-nos pelo braço esquerdo. Dobra um molho de folhas A4. “Para leres no táxi, se ele deixar… Conduz mal, sempre foi péssimo condutor e diz que conhece a cidade com as suas próprias mãos. Só que elas estão sempre sujas de óleo, daí já percebes” e acena, divertido, para o amigo. Este bate no pulso esquerdo, onde está o relógio. Por falar nisso, o relógio de parede de Don Juan tem o formato da cara do Maradona, com o brinco e tudo.

Confirma-se, impossível ler no táxi. Faz mal à vista. Confirma-se, ele é mau condutor (diz um encartado) e isso também faz mal aos olhos. Voltamos ao jornal Olé, desembrulhamos o molho de folhas A4 e vemos isto. Título a preto: o melhor telefonema para Deus. É uma entrevista a Maradona? É. Deliciosa.

Cruzas-te com Shilton no meio da rua. O que é que lhe dizes?

Arquero [guarda-redes], arquerazo. Bahh, não me convidou para a sua festa de homenagem. Já não vou poder dormir com ele, que pena!

Porque é que começaste a drogar-te?

Por curiosidade. E correu-me mal.

Tinhas quantos anos?

22.

Tomaste o quê?

Cocaína.

O que mais te divertiu: Inglaterra-86, Brasil-90 ou Itália-90?

Itália, por todas as conotações que teve, por todas as coisas que se passaram depois, porque vivia em Itália, porque a Gazzetta dello Sport titulou “Maradona é o diabo” e porque os eliminámos. Que prazer!

Qual foi o melhor futebolista que viste enquanto eras jogador?

Está entre Romário e Van Basten.

E o mais chato?

Pietro Vierchowod. Parecia russo, era um animal. Tinha músculos até nas sobrancelhas. Jogava na Sampdoria e na selecção italiana. Era muito difícil ultrapassá-lo, porque quando o fintavas e levantavas a cabeça ele estava novamente à tua frente. E repetia essa brincadeira umas duas ou três vezes. À quarta vez, eu passava a bola porque já estava cansado de o ver à minha frente.

A Argentina foi prejudicada na final do Mundial-90?

Um dia antes da final, Julio Grondona entrou no balneário da Argentina [que acabara de fazer o reconhecimento ao relvado do Olímpico de Roma], apanhou-me a meio do duche e disse-me: ‘Está difícil mañana, eh.’ Eu perguntei-lhe: ‘Que quer dizer, Julio?’. E ele: ‘Nada, só isso, Diego…’

Porque crês nisso?

Porque estava tudo armado. Chateámos Matarrese [italiano, integrante de Comité organizador do Mundial], chateámos a Itália inteira. Aquilo era para ser Itália-Alemanha mas acabou por ser Argentina-Alemanha. ‘Cagámos’ o negócio todo, ‘cagámos’ 180 milhões de liras, ‘cagámos’ a bandeira deles, ‘cagámos’ a festa antecipada, ‘cagámos’ a festa da televisão, pusemos-lhe os chifres. Tínhamos de pagar por tudo isso.

O dia mais feliz da tua vida?

Quando fui campeão mundial pelos AA e sub-20. E quando fui campeão italiano pelo Nápoles e argentino pelo Boca.

E os mais infelizes?

Quando me cortaram as pernas em 1994, porque íamos ser campeões do mundo. Depois desse Mundial, cruzei-me com Romário e Bebeto e eles disseram-me: ‘Quando vos vimos a remontar aquele jogo com a Nigéria [de 0-1 para 2-1, bis de Caniggia], demos conta que nós teríamos de jogar a final com vocês.’

Que farias se fosses presidente da FIFA?

Daria muito mais importância aos jogadores. Respeitava-os. Faria calendários que se ajustassem a eles em benefício do espectáculo. Se os Mundiais de râguebi duram 45 dias, porque é que os de futebol só são de 30?

Quando a Argentina se sagrou campeã mundial em 1978, onde estavas?

Fui ao estádio ver a final com a Holanda.

Estavas contente ou ‘puteado’ por teres sido preterido dos convocados?

Fiquei contente, claro, mas sentia que devia estar ali, lá dentro, na cancha. Naquela altura, eu não jogava, voava. Na semana seguinte, retomámos o campeonato argentino e marquei três golos do Argentinos Juniors ao Chacarita [5-3]. Mas festejei o título mundial, claro. Fui ao Obelisco.

Que significado actual tem o golo da mão de Deus à Inglaterra?

Vou contar-te uma coisa. Há tempos, o Lineker veio cá fazer uma reportagem sobre mim com enfoque nesse golo. Recebi-lhe e preparei-lhe um asado na casa da minha mãe. A meio do almoço, ele pergunta-me se eu roubei os ingleses. Respondi-lhe que não, porque nós jogamos assim desde pequenos. Para nós, aquilo é um jogo, só um jogo, não estamos ali a prejudicar ninguém. Passado uns minutos, ele diz-me que os ingleses não roubam. Ai não? Então olha lá o que fez a McLaren à Ferrari, que lhes roubou informação ultra-secreta. Mas está tudo bem, Lineker é sócio da igreja maradoniana.

Como é ser Maradona?

Jodido. Tenho de pagar um preço altíssimo, porque sou argentino e vivo num país de futebol. Por isso, quando ia de férias com a família, escolhia sempre locais onde não se jogava futebol. Ia à Tanzânia ou isso. Mas joga-se futebol em todo o lado. Até na Polinésia. Uma vez, fui lá com a minha filha e sabes o que acontece mal aterro? Um português reconhece-me e convida-me para um jogo de futebol no dia seguinte! A minha filha resmungou-lhe: ‘Pára, português, o pai é meu. Trouxe-o para estar comigo.’

in jornal i, 16 Jul 2011

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