Petar Segrt. “I’am the Simple One”
“Leva o Tom contigo”. O Tom é o Tom Kundert, vizinho inglês da minha mãe. É o dia da final da Liga dos Campeões entre Tottenham e Liverpool. Marco uma mesa para dois n’“O Reserva”, ali no Rato. A algazarra é total, entre camisolas de futebol de clubes lisboetas, revistas Panenka e cachecóis de todo o mundo. Voam pratos de tudo e mais alguma coisa: pimentos padrón, ovos com farinheira, chouriço assado, cogumelos à bulhão pato, picapau de atum. Peee peee peeeeee, intervalo. O amigo João Tibério, do podcat “O Brinco do Baptista”, convida-me para ir espairecer lá fora. ‘Quero apresentar-te o Petar Segrt’. Pet-quem? ‘O seleccionador das Maldivas’. Mal-onde? ‘Estou aqui com o Tom, deslarga-me pá’. E ele insiste. Ai ai ai.
Peço desculpa ao Tom e saio de cena. Junto o polegar e o indicador, como quem diz ‘é só um tiquinho’. Not. A química com Petar é imediata, o homem é o one man show em pessoa. Fala com graça e ri-se das suas piadas ou dos remarks de outros ilustres à sua volta. Quando volto à mesa, Tottenham e Liverpool jogam há já 79 minutos. Mil desculpas, Tom. Passa-se um mês e cresce o entusiasmo de entrevistar Petar no seu habitat natural, a treinar live n’kicking. Percorremos o calendário e vislumbramos um Maldivas-Guam para o Mundial-2022. Gotcha. Que sonho. Envio-lhe mensagem por whatsapp à tarde, responde-me na mesma moeda à noite. A essa hora, estou numa sala de cinema do El Corte Inglés para ver o último Rambo. “I love Ramboooooooo movies’, escreve-me. E remata com um cheeriooooooooooooo. É sempre assim, um cheerio com quatro, seis ou oito ós em jeito de despedida. Desta vez, é mais para dar ênfase à minha ideia de o visitar entre os dias 16 e 21 Novembro.
Domingo, 17 Novembro
Lisboa, Dubai, Malé. A magia de uma viagem de 15 horas dentro de dois aviões da Emirates tem a ver com o último documentário sobre a ascenção e a queda de Maradona no Nápoles, de Asif Kapadia. Os primeiros oito minutos prometem (com a batida do brasileiro António Pinto), os restantes 122 confirmam. Que trabalho notável. Para ver e rever. É isso mesmo, rever. Faço-o quatro vezes, de phones bem enfiados no ouvidos para ouvir loud and clear cada décibel. Na chegada a Malé, a fila dos estrangeiros é gigante em comparação com a dos maldivios. Resolvido o pseudo-dilema em meia-hora, com um selo bem dado na sétima página do passaporte, concentremo-nos na porta de saida para um novo mundo. Ups, afinal ainda não. Um senhor polícia trava-me o andamento.
– Stop stop. Passport.
(toma lá)
– Where do you go?
– Malé.
– Your bag?
(dou um jeito às costas para lhe mostrar a mochila)
– Only this one?
– Only.
– Alone?
– Alone.
– Girlfriend?
– No girlfriend.
– Ahhhhhhhhh. E pisca-me o olho enquanto manda um sorriso maroto.
Adiante. Malé, aqui vou eu. À saída do aeroporto, só vejo mar e barcos. De repente, um nome familiar: Rui Miguel Laureano. Apresento-me à frente do meu amigo e inicia-se a viagem até Huhlumale, a 6 km da capital. Na carrinha, três jovens do Bangladesh falam entusiasticamente de Petar. Coach para aqui, coach para ali, coach, coach. É ele quem me reserva o Hotel Lonuveli, longe da movida maciça de Malé e bem perto da praia. ‘I life a simple life, okay? Because I’am not the special one neither the normal one, I’am the simple one ?’. Onde é que ele andará? O pensamento é interrompido pela vivacidade do condutor da carrinha. ‘Já alguma vez foste ao Bangladesh?’ Nunca. ‘Ahhhhhh, devias ir. Sobretudo em tempo de Mundial. Há pessoas crazy, que metem bandeiras argentinas ou portuguesas e posters de Messi ou Ronaldo à janela. Um amigo fez uma bandeira da Argentina com dois quilómetros de comprimento.’ Dois quilómetros? ‘Dois, a maior bandeira da Argentina de sempre. Nem na Argentina.’ Acreditzzzzz
Segunda-feira, 18 Novembro
Desculpem, adormeci a meio da frase. Faz-se noite e cabuuum. Nada de jetlag, só sigo os ensinamentos da inglesa Jane Goodall, a primatóloga mais famosa do mundo. Certa vez, no programa “60 Minutes”, sai-se com esta a respeito da sua idade avançada (85 anos) e os imensos voos intercontinentais para continuar a estudar os chimpazés em África: ‘O jetlag não existe. O que acontece ao meu corpo é simples: quando o sol se põe, durmo; quando nasce, levanto-me’. Mai’nada. Às 0520 já estou a pé, com a praia à minha frente e uma série de mensagens do coach.
‘Are you happy with your room? I told you I life a simple life. And sorry for the bad weather ?’ O sol daqui é metálico. Até dói. Bate de chapa e impede-nos de pensar com clareza. Reposto o sono e respondida a mensagem, é hora do pequeno-almoço: ovos estrelados, feijões vermelhos, legumes cozidos e arroz doce. Agora escolha. Errrrrrr. Salvo por outra mensagem do coach. ‘Hello, how are you? Everything ok? We training at 1600 in National Stadium, you want to come and see? I will make contact with some journalist, one of them elected the best last year. If so, please speak with hotel people to get you a taxi and tell them you want to go national stadium, it costs 75 rupia’. Qualquer coisa como 4 euros e meio.
Três pormenores das Maldivas: é um país muçulmano, conduzem à direita e há mais, muito mais motos que carros. Sento-me ao lado do taxista, com um turbante, e sou levado para o estádio nacional. Andamos uns 15 minutos e, de repente, entramos num beco estreito, só com motos estacionadas. A meio do beco, ele trava, pede-me o dinheiro e siga a marinha. Olho para o lado e vejo uma parede verde com uma placa amarela Gate 3. Isto é o estádio? Olho mais para cima e vejo holofotes. Tu queres ver? Vou para a esquerda e entro na primeira porta aberta à minha disposição. É a porta da federação de natação, judo e ginástica. Está uma senhora amável (soa a pleonasmo nesta altura do campeonato) a fazer um chá. Pergunto-lhe pelo relvado em inglês, ela responde-me em maldivio ou lá o que é. Avanço como quem não quer a coisa. Ela atira-me uma série de no no no no, no melhor estilo de Consuela, a empregada mexicana do Family Guy. Sorri, passa um cartão pela porta e indica-me o caminho para o relvado.
Lá ao longe vejo o coach a dar ordens aos jogadores na linha lateral, encostado ao banco de suplentes. Passo por uma baliza, contorno a bandeirola de canto e instalo-me na linha do meio-campo. Petar lança o grito de guerra juntamente com os jogadores e, acto contínuo, recebe-me de braços abertos. ‘Ruuui, how are you mafriend?’ Instala-me como se fosse um rei: duas garrafas de água fresca, uma cadeira (de sonho) e um convidado especial. ‘Rui, this guy is a maldivien journalist, elected the best one in 2018. Chat with him, you will enjoy’. Chama-se Ozone e falamos durante 60 minutos sem parar. Lembra-se bem do coach Manuel Gomes. Quem? Manuel Gomes, seleccionador das Maldivas. Caraças, Manuel Gomes? Só depois é que ‘ring a bell’: Prof Neca. Pois claro, master dos masters. Então o homem empata 0-0 com a Coreia do Sul na qualificação para o Mundial-2006 e contribui para o despedimento de Humberto Coelho, então seleccionador dos sul-coreanos. Mais, mais? Ozone desarma-me outra vez. ‘Sabias que as Maldivas foram de Portugal por 15 anos?’ Hein, como assim? ‘No século XVI, entre 1558 e 1573’. Great scott.
Acaba o treino e Petar abraça-me outra vez. Foto, foto, foto. Vamos tirar uma foto no relvado. Lembras-te da tua estreia aqui? ‘Of course, 7-0 ao Butão’ e parte-se a rir. Seven-zero, repete-se. ‘Agora tenho de ir para o hotel com a equipa, falamos amanhã depois do jogo, okay? O Ozone que te mostre o melhor café de Malé com vista para o mar’. Mais um abraço e, depois de deixar Ozone distanciar-se ligeiramente até à porta de saída, segreda-me: ‘Don’t let him pay, ele não ganha quase nada.’
Terça-feira, 19 Novembro
É o dia do jogo. Maldivas-Guam, quem diria?! Ao preço da chuva, 150 rupias. Só para esclarecer as dúvidas: do 11 das Maldivas, só três jogam futebol profissional, os outros oito trabalham durante o dia; do 11 de Guam, todos profissionais, todos norte-americanos. Que comece o espectáculo. Um-zero, dois-zero, intervalo. Nas bancadas, as duas mil pessoas animam qualquer um. Há muitas crianças, acompanhadas pelas mães. O estádio é do mais feminino que há. Na segunda parte, um-dois de Guam. A incerteza nunca existe, na verdade, o empate está longe. No último minuto, contra-ataque e 3-1. Até estala, o banco de suplente das Maldivas. Voa tudo e mais alguma coisa. Soa o apito final do árbitro e aparece um senhor do nada a cumprimentar Petar, à entrada para o túnel de acesso ao balneário. ‘É o presidente’, diz-me o coach. Da federação?, pergunto-lhe. ‘Do país, é o presidnete das Maldivas. Veio a pé de casa até ao estádio para ver o jogo’. Começa aqui o regabofe. Porque Petar é finalmente um homem solto, com tempo para nós.
Vi-te na wikipedia, o teu primeiro trabalho de selecções foi a Geórgia.
Funny story, very funny [parte-se a rir]
Então?
Trabalhei seis meses ao lado do Klaus Toppmöller, o seleccionador da Geórgia, mas sem me fazer notar. Ninguém sabia de nada. Ao fim de seis meses, lá apareci em cena e o presidente da federação da Geórgia disse-me espantado ‘olha o panthome’, o fantasma. Trabalhei undercovered. Tanto assim é que, um dia, na véspera de um Alemanha-Geórgia em Rostock, fui ver o treino da Alemanha. Sou amigo do Joachim Löw, então adjunto do Klinsmann. Ao fim de 15 minutos, o Klinsmann mandou todos embora. Todos, menos a mim. ‘Petar, tu podes ficar na boa.’ E eu fiquei. No fim do treino, grandes abraços, grande algazarra. Até que me fizeram aquela pergunta, o que estás agora a fazer? ‘Sou adjunto do Toppmöller’. Waaaaas? Eles julgavam que estava lá só como amigo, ahahahahahah. Ficaram incrédulos e eu a justificar-me: ‘what can i do? I want to tell you but you don’t let me’. Ahahahahah, very funny story, hein?!
Indeed.
Perdemos 2-0. Depois assumi os sub21 da Geórgia. O Toppmöller propôs-me e aceitei. Um dos primeiros jogos é em casa, com a Rússia, de qualificação para o Europeu. Big event.
Então?
O clima entre Geórgia e Rússia estava péssimo. Só para veres, o Putin enviou uma mensagem: ‘if something happens to one of our players, I’ll immediately came to Georgia with my tanks. Era muito mais que um jogo.
E tu?
A ouvir opiniões de todos os lados, havia quem sugerisse que não jogássemos de todo para evitar problemas. Alguém de cima, poderoso.
E tu, repito-me?
Disse-lhe que noooooooooo, come on, vamos jogar. E o presidente da federação apoiou-me na decisão de sair do país com os jogadores para treinar em Trabzon, na Turquia. Voltaríamos na véspera do jogo. Muito bem, vamos a isso. Como a Rússia é a Rússia, estádio vazio e 3 mil polícias. A pressão desportiva e política era enorme. Só para entenderes, o presidente do país disse-me só isto: se não ganhares, está fora.
O presidente do país?
Yaaaa, o [Mikheil] Saakashvili.
Uauuuu.
Além disso, cinco jogadores dos nossos recusaram-se a jogar.
Então porquê?
Eram filhos de russos, sobrinhos de russos, primos de russos. Entendi-os a todos, sem excepção. E protegi-os, não os puni. Era o que faltava.
Sem cinco titulares, e agora?
Vamos meter os do kindergarten. Disse isso na conferência de imprensa na véspera do jogo e os jornalistas perguntaram-me directamente ‘are you crazy?’. Tentei acalmá-los com o ‘vamos tentar ganhar’. Em vão, ninguém acreditou. Para cúmulo, ligaram-me a dizer que as minhas coisas de casa estavam todas no aeroporto.
Whaaaaaat?
Assim mesmo, Rui. Eu no hotel a preparar o jogo e eles a despacharem-se as coisas.
E depois?
No dia do jogo, fiz um discurso especial. ‘Boys, why fear? How many wars against Russians? 78? And you lost what 78? Hoje é 11 contra 11 e dizem-me que têm medo? Temos uma chance de ganhar, podemos fazê-lo. Se alguém não acreditar nisso que saia desta sala.’ Silêncio total. ‘Hoje é a vossa oportunidade’. Na primeira parte, 1-0 num lance praticado umas cem vezes nos treinos e zero de resultado. Naquele jogo, deu golo. Ahahahahahah. Halfitme.
Intervalo.
E eu para eles, ‘only 1-0? Whats wrong with you? Não quero ver-vos a recuar, têm de marcar o 2-0, têm de jogar o tudo por tudo. Nesse entretanto, toca o telefone. Era o Toppmöller. ‘Pára de jogar ao ataque, o resultado está bom’. Ahhhhhhhh, no way, disse-lhe. O árbitro é grego, ortodoxo, vai ajudar a Rússia de certeza. Desligo o telefone e volta a tocar. Agora é o president da federação. ‘Please, save the result, play defense’. E depois ainda me ligou o presidente da Geórgia. ‘Draw is ok, draw is ok’.
E a Geórgia?
Atacámos atacámos atacámos, 2-0. A partir daí, catenaccio. O mais belo catenaccio de todos, ahahahahahahah. Rui, acabou 2-0. Nem imaginas a festa descomunal. Passei a ser um rei na Geórgia. Não havia ninguém que não me conhecesse. Ahahahahahah.
Imagino.
Com a saída do Toppmöller, ofereceram-me a selecção principal. Eles insistiram bastante e fiz dois jogos, um com a Estónia e outro com Portugal.
Portugal?
Ya, Portugal. Viseu, 2008. Vocês, jornalistas portugueses, alcunharam-me de ‘o simpático’.
E que tal o jogo?
Fizemos um acordo, o Scolari e eu. Dada a proximidade do Euro-2008, nada de entradas duras para poupar os jogadores. Ao intervalo, 2-0 para vocês e eu indignado com o vosso jogo duro. Avisei o Scolari, ‘vai ser diferente, a segunda parte’. E foi. Acabou 2-0 e o Scolari virou-se para mim: ‘Gostei, agressividade, boa boa’. Good memories de Portugal. Já tinha ido em 2000 e, depois, em 2004 para o ver o Europeu.
Porquê só dois jogos pela selecção principal?
Os jogadores mais importantes, como o Kaladze e o Kobiashvili, queriam-me na selecção, só que a federação preferiu Hector Cúper. Convidaram-me para adjunto de Cúper e recusei. No dia seguinte, começou a guerra entre Geórgia e Rússia. Toda a gente preocupada comigo, a telefonar-me e a pedir-me para sair dali, inclusive a minha namorada. ‘Já tiveste a tua guerra, na Jugoslávia. Aí era a tua família, o teu país. Mas agora é diferente sai daí’.
E tu?
Continuei em Tbilissi. O presidente da federação ligou-me e ofereceu-me os últimos bilhetes de avião mais 10 mil dólares para sair de Tbilisi.
E?
Daqui não saio, disse-lhe. O Joachim Löw também me ligou, very serious. Deixei-o sem resposta: ‘como posso ser um exemplo para os jogadores e as pessoas deste país se sair agora? Não, não posso, tenho de ficar com eles’. E fiquei. Montei o meu bunker. Se morrer, morro aqui no apartamento. Com o dinheiro oferecido pelo presidente, tive a oportunidade de tirar alguns jogadores do país. Uns para Trabzon, outros para Riga [Letónia].
E os russos invadiram mesmo, certo?
17 dias de guerra. Houve um momento engraçado.
En-gra-ça-do?
A caminhada pela paz na praça principal de Tbilisi. Eu fui, muita gente ficou surpreendida e perguntou-me o que estava ai a fazer. ‘Sou velho demais para correr’. Houve quem insistisse ‘you must speak to us’. De repente, estava no centro das atenções, no topo de um palco com um microfone na mão. Havia um jornalista que traduzia de inglês para geórgio. Se estivesse um snipper à coca, seria a altura ideal para me mandar ao ar, ahahahahahah.
E o que lhes disseste?
Tens de ver no youtube, ahahahahahahahah. Agora a sério, e resumidamente: ‘juntem-se, dêem as mãos e fiquem unidos sempre, mostrem ao Putin de que são feitos’. Os jogadores da selecção filmaram-me e meteram no youtube. Olha, já não posso ir à Rússia.
Então, e depois?
Ah, good question, mafriend. Com a guerra, o Cúper não apareceu em Tbilisi. E fui reconduzido ao cargo de seleccionador. Havia um jogo em Gales, com o Toshack. Era a oportunidade perfeita para a Geórgia fazer-se notar. Convoquei os jogadores e pedi-lhes a opinião para saber de sua justiça sobre o local de treino. Afinal de contas, ainda estávamos em guerra com a Rússia. O plano passou a ser: autocarro para o azerbaijão, treinos no azerbaijão e voo para Inglaterra.
Correu tudo bem?
Tudo mal. Na fronteiras da Geórgia com o Azerbaijão, pediram-nos dinheiro a mais. Ao fim de duas/três horas, lá conseguimos entrar. Treinámos normalmente e voámos. À chegada, uma surpresa inesperada.
Qual?
Hector Cúper.
Estava lá?
Ya, e a federação ‘decidimos que ele vai ser o treinador’. Can you imagine? It was very hard. Ainda por cima, o Cúper foi muito arrogante, porque não parava de perguntar onde estavam os melhores jogadores, como Kaladze e tal? Muitos não estavam, a contas com a guerra, preocupados com a família.
Óbvio.
Óbvio. Mesmo assim, disse ao Cúper ‘believe it, you can win’. Ele não acreditou nem sequer viu os jogadores com olhos de ver. Queixou-se imenso. Sentei-o à mesa e falei-lhe ao coração. Ele acedeu e lá falou com os jogadores. Em castelhano. Eu traduzia para inglês. Acabado esse momento, os jogadores saíram da sala e ele voltou a falar-lhe da ausência dos melhores jogadores. Arrogante. Perguntou-me por um tal de Beka, dizia que era um jogador baixo, sem capacidade para fazer a diferença com Gales. Discordei e disse-lhe que era um dos meus jogadores da maior confiança dos sub21, que iria fazer a diferença. Ele só abanava a cabeça. Perguntei-lhe então porque é que ele estava ali e sabes o que me respondeu? Por dinheiro. Fiquei a olhar para ele.
Uyyyyy.
E ele ‘and why you are here?’ Porque um dia quero jogar e ganhar as equipas treinadas por homens como Hector Cúper que estiveram em finais europeias. Nesse momento, ele respeitou-me. Fomos a jogo, em Gales. Os jogadores queriam-me no banco, mas eu fui para a bancada. Não fazia sentido estar ali com o Cúper, embora ele tenha jogado com o meu onze e ter feito as minhas substituições.
Resultado?
Ganhámos 2-1. Começámos a perder, que erro do Loria [guarda-redes], e demos a volta. Imagina quem faz o 2-1?
Beka?
Beeeeeeeeka. E de cabeça. Hein, para jogador baixo. Hein? Hein? [Petar solta um cabeceamento no vazio]
Que festa.
Nem tanto. O Cúper viajou de Gales para Maiorca. Furou o combinado e não voltou com a equipa para Tbilisi, com medo. Sabes quantas vitórias do Cúper à frente da Geórgia em dois anos? Zero. Só três empates e sei lá quantas derrotas. Bem, Rui, continuamos amanhã, ok? Estou cansado e ainda tenho de jantar com o presidente da federação.
Quarta-feira, 20 Novembro
O dia repete-se, um atrás do outro. Madrugada às 0520, nascer do sol às 0540, banho de praia às 6-e-pouco, pequeno-almoço do best a partir das 0730, actividades várias durante o dia. Desta vez, Petar intromete-se à tarde. E bem. De frente para o mar, com um panamá e de charuto italiano em punho, convida-me a sentar para continuar a falar da sua vida extraordinária. É um conversador nato, ri-se por todos os poros, é incrível a sua energia. Ao seu lado, o adjunto geórgio Gela Shekiladze e o preparador físico montegrino Vladimir Krunic.
Acabámos na Geórgia.
You know you know. É quando a Alemanha lança-me o desafio de treinar os sub21, com possibilidade de ser o adjunto do Löw no Mundial-2010. As negociações para uma reunião fazem-se por email, através da minha namorada.
Da tua namorada, então?
Ainda estava na Geórgia e o contacto com o Bierhoff não podia ser directo. Então foi por interposta pessoa. Só depois é que avisei a federação da Geórgia. Os jogadores não queriam, mas a federação manteve a aposta no Cúper. Lá fui à reunião com a federação alemã. Estavam lá o Bierhoff, o Matthias Sammer, que era o director técnico, e o Löw. Correu às mil maravilhas e parecia tudo bem encaminhado. Tanto que me disseram que iam oficializar o negócio no dia seguinte. Nem se chegou ao dia seguinte.
Was?
À noite, liga-me o Bierhoff. ‘Temos um grande problema: tu és croata e o Sammer diz que o seleccionador tem de ser um alemão’. Houve um braço-de-ferro e não fiquei com o lugar. O Löw, que me conhecia há anos e anos, queria-me, o Sammer preferia o Herrlich. Acabou por ser um terceiro elemento, o eleito.
Tu és croata, isso é asim?
You see, Rui, já estou habituado a isso. Desde criança.
Onde é que nasceste?
Jugoslávia, há 53 anos.
Nasceste em…
Ahahahahahah, 1966.
É o ano do Cantona. E do Romário.
Yeaaaaaaaah, estou em boas mãos.
Indeed. Aos dois anos de idade, os meus pai deixaram-me sozinho em casa.
Hein?
Não os levo a mal, eles precisavam de dinheiro e foram trabalhar para a Alemanha. Deixaram o meu irmão mais velho com uma família e a mim com outra família. O deixar é ao cuidado de, não é viver com essa família. Eu orientava-me com os meus vizinhos, aparecia-lhes em casa e almoçava, lanchava, jantava e tal.
Chi-ça (assim mesmo em português) (ele entende o desabafo pelo tom de voz)
Agora já sabes porque é que sou tão social, hein? Social, i’am the social one, ahahahahahah. Fiquei sozinho dois anos.
Chi-ça (again)
O meu avô, que não o avô de verdade e sim o homem que estava com a minha avó, era muito presente. Ele batia em toda a gente, criava imensos problemas. Comigo ao lado, acalmava-se automaticamente. O meu efeito sobre ele era incrível e nunca entendi o porquê.
Dos 2 anos 4 anos, sozinho?
Praticamente, sim. A minha vida era tão solitária que, um dia, vi quatro pequenos lobos em cima do gelo ao pé de um bosque e fui ter com eles naquela de ter companhia. O gelo partiu-se e caí dentro de água. Não me afoguei, porque o fundo era baixo mas senti imensas dificuldades para me agarrar a qualquer coisa que me fizesse subir à tona. Esse meu avô soube disso e percebeu-me. Então deu-me um cão pequenino e disse-me olhos nos olhos: ‘é o teu companheiro para sempre, trata-o bem’. E tratei-o, aquele cão era um tratado. Alimentava-o, passeava-o, brincavámos e até dormia comigo. Sempre que me via, era uma alegria só. Aos quatro anos, eu e o meu irmão fomos viver para a Alemanha, com os meus pais.
Já era hora.
Ya, ahahahahah. Estava na hora de entrar para o kindergarten e lá fomos ao primeiro que nos apareceu. Um kindergarten católico. Nada feito.
Como assim?
Não podiam inscrever alunos estrangeiros.
Alunos? Eras uma criança, quer dizer.
I know i know. Nada. No segundo kindergarten, outro ‘no chance’. Então passava os dias em casa e aprendi a ler através das garrafas. Coleccionei umas 16.
What?
Coca-Cola, por exemplo: sabia o valor do c, do o, do a, do l e sabia o som de cada uma dessas letras. Depois outra garrafa, Schweppes, por exemplo. E aprendei a ler assim. Ainda hoje o meu irmão está espantado com isso. Quando se conseguiu encontrar uma escola para mim, já sabia ler. Era o melhor aluno da turma. Pudera, estava apaixonado pela Patrícia. Ahahahahahah. Só durou um ano, a paixão.
Tu trocaste de escola?
Antes fosse. Chumbei a gramática, tive 6 a alemão. Os meus pais ficaram espantados, porque tinha sido o melhor aluno no ano anterior. A questão é que só sabia ler, não sabia nada de gramática. Entao chumbei, lógico. E perdi a Patrícia. I lost my first love, ahahahahahah. My first disapointment. Sem problema, apaixonei-me por uma aluna. Que não me deu bola nenhuma. Então apaixonei-me uma terceira vez, aos 8/9 anos. Era mais alta que eu, lembro-me bem. Fui duas vezes a casa dela e acabou-se. Os pais dela não me queriam deixar vê-la, porque era um estrangeiro. Isto tudo para dizer-te o quê, Rui? Aprendi bem depressa o que é um outsider. Quando ouvi o Bierhoff dizer-me aquilo do ser croata não me beliscou quase nada, é ouvir e seguir em frente.
E esses tempos da escola, que tal?
Nada de especial. O especial era andar com o meu irmão e os seus amigos. Durante anos, o meu irmão era quem cozinhava para mim. Que shitty cooker, i tell you. And i tell him. Mas era o que se podia arranjar. Fora de casa, o meu irmão levava-me aos jogos de bola dele, lá do bairro. Geralmente era estrangeiros vs alemães. Mais uma vez, a questão da separação. Os meus melhores amigos eram portugueses, vê tu bem: Joaquim Matos e José Tavares. Passava a vida com eles. Ou então estava com o meu irmão mais velho. Era mais cool, como imaginas. E eu queria participar nos jogos deles, só que nunca havia uma vaga. De repente, alguém faltou e eu saltei para o jogo. À baliza, claro. Guarda-redes de improviso. Ia às bolas todas. I jump and I fight for every ball, I jump and I fight. Às tantas, comecei a fartar-me de defender e comecei a driblar uns quantos amigos do meu irmão quando a bola me foi parar aos pés. Puseram-me a avançado num instante, ahahahahah. Mas não era um avançado assim tão bom, porque era um pouco lento e falava muito. Foi assim até aos 17 anos, quando tive a primeira lesão séria no joelho. Perguntaram-me então se queria ser treinador porque o meu perfil encaixava-se e tal. Aceitei, sem saber muito bem ao que ia. Treinei os sub15 e animei-me bem depressa.
Lembras-te da estreia?
Se me lembro? Tenho tudo na cabeça. Acordei bem disposto, vesti o melhor fato de domingo e fui a jogo. Afivina o resultado.
15-0?
17 a zero. Cheguei a casa e todos a gozar comigo. Quis desistir, Rui. Mas continuei. Na semana seguinte, 8-0. Na outra, seis. Fiz então uma alteração que me pareceu importante, a inclusão de um libero. Estamos em 1983-84: três jogadores numa linha e um atrás. Já perdíamos só por 2-0 e tal. Depois, acrescentei mais uma coisa: disciplina táctica. Se atacaramos e a bola estiver na direita, o lateral esquerdo não vai ao encontro da bola, deixa-se ficar na esquerda para esticar o jogo. O mesmo para o lateral-direito se a bola estiver na esquerda. Três anos depois, fomos campeões regionais sub17.
Fomos, quem?
FV Calw, o clube da minha segunda terra. E sabes com quem jogámos a final?
Nem ideia.
Com a equpa que nos deu 17-0 na minha estreia.
Mesmo à filme.
Os mais velhos começaram a dar-se conta da minha táctica. Havia quem perguntasse que táctica era aquela do libero. Explicava-lhes e eles ficavam à nora.
(quem está à nora sou eu, uma soneira descomunal; só dou cabeçadas no ar, é uma vergonha)
(Petar só se ri e pergunta-me se estou bem e se quero continuar)
(digo-lhe que sim, ora essa)
(no quadradinho seguinte, já estou a dormir profundamente)
(Petar bate palmas, acorda-me e quase me leva ao quarto)
(entre o primeiro e o segundo cabeceamento no ar, Petar fala e felizmente o gravador grava)
Só que depois veio a guerra dos Balcãs e tive de esquecer o futebol. Fui lutar contra os sérvios, fui salvar a minha família, levei remédios da Caritas de um lado para o outro. Quando acabou, voltei ao futebol. Aos 27 anos, já era conhecido como o Mister Tape porque tinha tudo gravado em cassetes. E visionava-as uma e outra vez para corrigir imprecisões táctica ou detectar erros do adversário
Quinta-feira, 21 Novembro
Quatro e meia. Da manhã. Acordo a pensar onde estou, dia, horas e tal. Nem um segundo depois, recuo no tempo e a vergonha apodera-se de mim. Então deixei o coach pendurado, a falar sozinho? Passa-se uma hora, duas. Às seis e meia, subo ao terraço do hotel, ao quarto andar, local da conversa do dia anterior. Petar está lá, a curtir as ondas ao longe e a fumar o seu charuto italiano. Mal me vê, uma algazarra de todo o tamanho. Heyyyyyy, Rui, how are you mafriend? Sit, sit, enjoy the view.
A conversa acabou aos teus 27 anos de idade.
Estava em 1993, ano em que vendi tudo o que tinha e fui ao Mundial-94
A sério?
Ya, ya. Sai da Alemanha no dia 27 Novembro 1993. Fui motorista na Austrália, professor de futebol na Nova Zelândia, fui mil e uma coisas em vários sítios: Tonga, Fiji, Havai. A ideia era chegar aos EUA em Maio para ir aos jogos do Mundial sem ter qualquer bilhete. Quando chegasse a altura, iria pensar no que fazer. Aterrei em Los Angeles e fiquei assustado. A andar na rua, normalmente, vi alguém matar outro alguem. Foi mesmo à minha frente, como daqui para ali [aponta para o fim da varanda, a 30 metros]. Los Angeles era muito perigosa naquele tempo, mesmo Hollywood era o cabo dos trabalho com os gangues e tudo isso. Aí pensei que não podia andar sozinho, então colei-me a dois sul-africanos da minha idade. Começámos a andar juntos e eu tinha que ganhar dinheiro para ir aos jogos do Mundial. Então comecei a trabalhar.
Em quê?
Como condutor de carros de um Estado para o outro, a troco de cinco mil dólares. Só bstava pagar 300 d+olares de caução e ter uma cartão de condução com mais de seis anos. Check and chec, no problem. Ganhei imenso dinheiro a conduzir Chevrolets, Jaguares e Porsches. A minha primeira viagem foi de Los Angeles para São Francisco num Porsche. Com esse dinheiro
(a conversa é interrompida por um empregado do hotel)
(do Bangladesh, obivamente)
(coach, bebe o quê?)
(coffee)
(how do you want?)
(black, like my soul) (e parte-se a rir) (deve ter acordado todos os hóspedes do hotel)
Com esse dinheiro?
Instalei-me em Las Vegas, é a cidade mais segura e barata dos EUA. Conseguia-se dormir 10/20 dólares por noite e all you can eat inclusive. E depois ia de avião para as cidades dos jogos. O meu primeiro foi um particular do Brasil em San Diego [Honduras, 8-2]. Antes do Mundial começar, via muitos os treinos: Brasil, Itália do Sacchi, Suécia.
Alemanha?
Nããããã. Não gostava por aí além do Berti Vogts.
E os jogos?
O primeiro foi o Brasil-Rússia. Cheguei ao estádio e vi um tipo com uma série de bilhetes na mão. Fui lá e perguntei-lhe: 100 dólares, No way, queria gastar uns 30, no máximo. Então, esperei, esperei, esperei pelo apito inicial. Quando soou, fui lá e perguntei-lhe outra vez: 30 dólares. Antes de entrar no estádio, perguntei-lhe o porquê daquele maço de bilhetes e ele disse-me que trabalhava na Coca-Cola, onde lhe davam bilhetes à borla. Como o pessoal da Coca-Cola não se interessava nada por bola, comecei a ir à Coca-Cola antes dos jogos para sacar bilhetes. Sabes, Rui, quantos jogos vi?
Nem ideia.
17.
Espectáculo. E a final?
Ohhhhhh, you pushing my heart. Fucking and crazy Italians.
Então?
Os italianos pagavam a qualquer preço, largavam tudo ali por um bilhete. E eu fiquei sem hipótese. Vi o Brasil-Itália numa loja perto do estádio.
Também não peeerdeste nada.
Ahahahahahahahaha. Mas sabes uma coisa? Vi quem fez o Brasil campeão.
Quem?
Dunga.
Como?
Estava lá no treino em que o Romário e o Bebeto se pegaram. Eles não passavam a bola um ao outro nem sequer se olhavam. Nesse treino específico, um 6 para 6 ou 7 para 7 bem físico, há um contra-ataque e o Romário não dá a bola ao Bebeto. No outro contra-ataque, o Bebeto não dá a bola ao Romário. Bem, o Dunga avança sobre os dois e começou uma fight de todo o tamanho. After some minutes, everything is ok. No jogo seguinte, com os EUA, o Bebeto isola-se e passa ao Romário. É o 1-0 e os dois abraçam-se. Conheci o seleccionador desse Brasil há uns seis anos, Virei-me para o Carlos Alberto Silva e falei-lhe desse treino. Sabes a resposta? ‘Ganhámos o Mundial nesse dia’. E o Brasil nem precisou de jogar com o Ronaldo, o fenómeno.
E depois da final?
Queria continuar a viagem para África, mas adoeci e pressenti algo de mau. Viajei directo para a Alemanha e encontraram-se bastante fraco. Comi algo que não devia nas zonas mais simples dos EUA e estive três dias de cama.
(aparece o empregado do Bangladesh com o black coffee-like-my-soul)
(you safe my life, you safe my life, diz o coach aos abraços)
(hey, diz o coach ao empregado, where is your sun? this is England)
Voltaste para a Alemanha e?
Comecei a fazer currículo: Bochum, Waldof Mannheim, Duisburgo. Aqui, perdi a final da Taça da Alemanha 1998 no último minuto para o Bayern Munique.
Como?
Adjunto. Mas também fui treinador das camadas jovens, sub17, sub19 ou olheiro..
Nunca treinador principal?
Houve uma oportunidade, em 2010: West Ham a convite do Avram Grant. Estava tudo tratado com o West Ham, ia assinar no dia seguinte. Ligam-me à noite.
Outra vez?
Outra vez. Uns empresários meteram-se ao barulho e pediram mais dinheiro. Quando soube, fiquei furioso e perguntei-lhes, aos empresários, o porquê daquela acção. Se quissessem mais dinheiro, pediam-me a mim e dava-lhes. O meu sonho era jogar na Premier League, jogar com Liverpool, Arsenal, Manchester City, Manchester United, Chelsea. E eels destruíram-me. Sabes o que eles me disseram? Não se preocupe, temos aqui o Galatasaray. Sabes o que lhes disse? Fuck off, não quero. Não quero o Galatasaray nem quero mais empresários na minha vida. Comecei então o fazer o caminho à minha maneira. Indonésia, Afeganistão.
Afeganistão?
Vi coisas inimagináveis. E construí relações fora do comum. Estamos a falar de um país diferente de todos os outros. Presenciei três ataques bombistas. Um dia, quando regressámos a Cabul de uma vitória no Líbano, houve cinco explosões na cidade. Vivi momentos arrepiantes.
Piores que os da Geórgia?
Far worst. Vivia com dois guarda-costas permanentemente. Ou talvez não. Às vezes, durante a noite, pintava a cara com graxa e saía do hotel sem darem conta. Queria conhecer Cabul à minha maneira, sem guarda-costas nem nada. Conhevi imensas pessoas que me ajudaram bastante em momentos aflitivos.
Tais como?
O presidente da federação afegã gostava muito de um jogador, como se fosse o seu ídolo. Eu não era assim tão fã dele, até porque ele manipulara jogos por anos e anos. A corrupção é uma forma de estar no Afeganistão. Portanto, afastei esse jogador. O presidente não gostou, claro. Eu ameacei com a minha saída e uma queixa à FIFA.
Siiiim?
Roubaram-me o passaporte, na véspera de um jogo fora, e fiquei indefeso. A minha equipa partiu e eu fiquei em terra. Foi uma life-threatening situation. Os meus jogadores telefonaram então aos seus familiares e foram eles quem me protegeram durante o tempo em que não me devolveram o passaporte.
Por causa de um jogador?
E não só, Rui. O Afeganistão cresceu imenso no meu tempo, ganhámos seis jogos seguidos e chegámos à final da Taça da Ásia do Sul. Só perdemos no prolongamento, com a Índia. A selecção ganhou uma projecção enorme e começou a ficar bastante popular, ao mesmo tempo que se tornou um alvo apetecível dos terroristas. Nunca joguei no Afeganistão, é simplesmente impossível. Então a FIFA organiza os jogos no Irão, no Qatar, onde der. Fomos sempre bem recebidos nesses países, porque há um respeito enorme pelos afegãos e percebi porquê: é realmente um povo orgulhoso, que continua a caminhar no passeio apesar dos bombardeamentos constantes e da guerra intermitente há mais de 40 anos. Felizmente saí de lá.
(Rui, a que horas é hoje o teu voo?)
(2250)
(Então fazemos assim: um break agora e retomamos às 1600 para irmos a um evento no Estádio Nacional com o Yaya Touré e daí levo-te ao aeroporto)
(muito bem, vamos a isso)
(boa, vou nadar)
(onde?)
(onde? ahahahahahahah, ali ò: aponta-me para o mar)
(de facto)
(ahahahahahahaha)
No Estádio Nacional, 1500 crianças jogam descontroladamente à bola naquele relvado imenso. Quando aparece Yaya, é uma festa. A quantidade de apertos de mão e fotografias é infinita. Tanto para o Yaya como para o coach. Os dois já se conhecem de outras andanças e cumprimentam-se efusivamente. O evento dura 90 minutos, com o ministro do Desporto lá no meio. Continuam as fotos. Às tantas, esbarro numa senhora com o filho e peço-lhe desculpa com um toque no ombro. O coach, a tirar fotografias com as crianças, avisa-me. ‘Não lhe toques, não lhe toques, é proibido’. Mais tarde, a olhar para o mar e a caminho do aeroporto, Petar explica. ‘Se fosse no Afeganistão, pobre Rui: matavam-te.’ Rio-me. ‘A sério, já eras’. Páro de rir. Petar dá-me um toque do ombro e relaxa-me. Mafriend, espero que tenhas gostado. Fico só à espera do barco que te leve ao aeroporto e vou à minha vida, temos treino dos sub23 às oito da noite.
Sub23?
Maldivas, Jogos Asiáticos no Nepal. O campeonato começa a 1 Dezembro.
E a selecção principal?
Está bem. Tu viste, hein? Três-um a Guam. Já tinhamos ganho 1-0 lá.
Quantas horas de voo até lá?
Umas 22 horas, muito cansativo. O pior nem foi isso.
Então?
Primeiro, as autoridades alfandegárias do Guam não aceitaram o visto US de dois jogadores importantes da nossa equipa. Fizemos um protesto à FIFA e nada.
Visto US?
Guam faz parte dos EUA.
Oh diacho.
Depois, a notícia trágica de um barco que se virou. A maior tragédia de sempre nas Maldivas. Dentro do barco, dez pessoas, cinco das quais familiares de um dos nossos melhores jogadores, o Ibrahim Waheed. Ele recebeu as notícias aos pedaços. No primeiro telefonema, a notícia era a de um barco afundado com cinco familiares. No segundo telefonema, informaram-no da morte do irmão. No terceiro, da morte da irmã. Depois, o filho dele e dois primos. Foi um choque gigantesco, inimaginável. Estávamos em estágio no Sri Lanka e ele só queria vir para casa. Naturalmente. Que choque, que tragédia, que história. Há coisas, pfffffff. Lembras-te da nossa primeira conversa? Interrompi-a de repente sabes porquê? A mulher de um jogador da selecção tinha acabo de morrer. Sentiu-se mal, foi para a hospital, detectaram-me uma infecção e morreu ali, na hora.
Pffffff.
A vida dá-nos cada murro no estômago. Claro, há momentos óptimos, gloriosos. Já te contei os da Georgia e os Afeganistão.
E os das Maldivas?
Também, claro.
Ganhaste a Taça da Ásia do Sul, um ano depois de ires à final pelo Afeganistão?
True story. Ganhámos à Índia, no Bangladesh. Foi um feito enorme. E sloube-me melhor ainda porque abdiquei do número 7. Sabes o jogador que marcou o 3-1 a Guam, anteontem?
Sim, claro.
Ele é a estrela maior das Maldivas, é profissional e bom jogador mesmo. Só que julgava-se acima dos outros. Não o queria assim. Falámos no início e ele continuou o mesmo. Afastei-o da equipa. Toda a gente atacou-me, até o presidente do pais. Fomos para a Taça da Ásia do Sul e o meu slogan era o pensamento na vitória. Os jornalistas torciam o nariz. Sem o número 7 é impossível, diziam-me. Na conferência de imprensa antes da final, disse-lhes. ‘Vamos ganhar sem ele, acreditem. Agora escrevam o que quiserem.’ E a verdade é que ganhámos. Foi uma recepção e tanto aqui em Malé. Nas ilhas, mais do mesmo. Melhor ainda. Lembro-me de desembarcar numa ilha com 1006 habitantes. Rui, se não estavam todos à minha espera no porto, quase todos. Apertei a mão a todos, agradeci-lhes imenso. A sua dedicação é imensa e são mais genuínas que as pessoas da capital. Merecem tudo e mais alguma coisa. Quando vieres uma próxima vez, levo-te às ilhas. Ali é descontracção pura.
Mil obrigados por tudo, grande abraço
(quando chego a Portugal, já tenho uma mensagem do coach)
(now i’ll go swim) (where i can swimming here? Com uma foto do mar à frente do hotel)