Do José Mário Branco ao Jorge Palma, a negligência vai nua
FMI. O José Mário Branco é que a sabe toda. O homem canta e encanta durante 20 minutos. É prodigiosa, a letra. Reúne alma, coração e sentimento. O hat-trick perfeito.
FMI, dizia. FMI, aaaarghhhhhhh. Éfe éme i, o hat-trick mais que imperfeito, o hat-trick da desgraça. Semeia ventos, colhe tempestades. O que mais interessa para uma sociedade em constante evolução? Saúde, muita saúde. Educação, muita educação. E, já agora, boa informação. O que faz o FMI em 1977, 1983 e 2011, com a conivência do Governo? Corta na saúde, corta na educação. Sem saúde, andamos às aranhas e só queremos curar-nos sem prestar atenção ao que nos rodeia. Sem educação, andamos para trás (à caranguejo) e nem sabemos a quantas andamos. Sem saúde nem educação, somos um país doente e embrutecido. Com o patrocínio estatal. Ponto. Final.
Parágrafo. Vejamos este caso aqui ó: a Gabriela decide cortar o seu cabelo, no quarto. Às tantas, tem um tremelique e a tesoura bate de raspão no olho esquerdo. Nada de mal. Passa uma hora. Duas. Quatro. Oito. Quando madruga no dia seguinte, alarme total. O olho está inchado, a dor é insuportável à luz. Seja solar ou eléctrica. Derrama uma lágrima. Duas. Quatro. Oito. Quando a mãe toma conta da ocorrência, Centro de Saúde com elas. Ali na Alameda, paralelo ao lendário Café Império. O relógio diz-nos oito e meia. Fila à porta. Normal. Quando entramos, zero de controlo de temperatura. Subimos de elevador, entramos noutra sala e, novamente, zero de controlo de temperatura, se bem que aqui, vá lá, rola a pergunta do ‘tem febre?’. A assistente de serviço ouve o problema e chuta-nos para uma consulta ao meio-dia. Hein? Ya, a Gabriela já nem abre o olho, chora sem parar e vai esperar (sentada) só mais umas três horas e meia.
Brincamos?
Ou então…
Atenção a isto: ‘temos outra vaga às seis da tarde’.
Grrrrrrrr.
O sobrolho franzido é mais-que-elucidativo. A assistente percebe e passa-nos então para uma médica, que nos informa da ausência do serviço de oftalmologia naquele centro de saúde. Uma hora e meia depois.
Uma hora e meia, 90 minutos a ver navios, à espera de um oftalmologista salvador e, afinal, nem sequer há serviço naquele centro.
Aaaarghhhhhhhh.
Acto contínuo, a médica reencaminha-nos para o Hospital São José e entrega-nos uma carta de admissão, espécie de requisição.
Repetimos, Hospital São José.
Ariops, é arrepiar caminho o mais depressa possível. Taxi, ‘bora. O Hospital São José é aquele gigante lá em cima, perto do Martim Moniz. Primeiro espanto, e dos grandes: ninguém nos vê a temperatura à entrada. Não há batas nem uniformes que nos obriguem a parar à frente daquela máquina xpto antes de empurrarmos instintivamente o pescoço para a frente como se quiséssemos ver mais de perto a nossa temperatura.
Brincamos?
Segundo espanto, e dos enormes: não há qualquer separação entre pessoas saudáveis e pessoas infectadas. Ah pois é, senhoras e senhores: no guichet das urgências, há duas filas lado a lado, uma para Covid, outra sem Covid.
Grrrrrrrrrrrrr.
Terceiro espanto, e dos gigantes: o Hospital São José não tem serviço de oftalmologia.
Aaaaarghhhhh.
‘Esta semana é no Santa Maria’, diz uma senhora zangada com a indicação errada da médica na Alameda. Dinheiro do táxi, quem nos devolve? Chapéu. Tempo perdido, quem nos devolve? Chapéu. Irritações, quem nos devolve? Chapéu. É como diz o outro, chapéus há muitos, seu palerma. É isso mesmo, estamos apalermados com toda esta confusão.
Santa Maria, aí vamos nós. Mais umas moedas (para o táxi), mais uma voltinha. Urgência, se faz favor. À porta, uma fila imensa. Mais uma vez, só Covid’s. Nenhuma linha a separar ninguém de alguém, é tudo ao molhe. O filme, outra vez. Guichet, sala de espera e tal. E a máquina para ver a temperatura? Nem uma, zero.
Aiiiiii, brincamos?
Detalhe: a carta do Centro de Saúde diz oftalmologia. Simples mais simples não há. Qual quê. Como a Gabriela é under-18, é reencaminhada para a pediatria, lá no outro lado do hospital. Acumulamos passos entre a chuva miudinha. A miúda já está danada. E com razão. Uma vez no contentor da pediatria, mais um guichet, mais uma receptora, mais uma sala de espera. Às tantas, uma voz salvadora no altifalante: Gabriela. Cravo e canela, lá vai ela. Abre-se uma porta, vira-se à direita, depois à esquerda, novamente à direita. Uma jovem atende-a e sai um (pseudo) eureka: tem de ir a um oftalmologista.
Grrrrrrrrrrrrr.
De novo aquele guichet, de novo aquela sala de espera. De novo, aquele Gabriela no altifalante. Já está mais cravo que canela. Pudera. O segurança indica-nos o labiríntico trilho até à oftalmologia. É só descer as escadas, percorrer todo o corredor até ao fim e virar à direita, percorrer outro corredor até ao fim e virar à esquerda, aí sobe-se de elevador até ao piso 2. Ufffff. Anda-se, anda-se, anda-se e anda-se. Pelo meio, cruza-se com máscaras. Umas andantes, outras espalmadas no chão, porca miséria.
Aarghhhhhhhhhhhh.
Piso 2, e agora? Tchan tchan tchan tchaaaaaaaan, uma sala de espera. Aaaarghhhhhhh. Cheia de pessoas naquele registo do cadeira ocupada, cadeira vazia, cadeira ocupada, cadeira vazia e por aí fora. Num piscar de olhos, todos fora dali com os seus problemas resolvidos. Na sala, só você-sabe-muito-bem-quem. Zero canela, cravo até dizer chega. Grrrrrrrrr. Um, vai explodir. Dois, vai explodir. Três, vai expl… Gabriela, chamam-na. Um jovem oftalmologista ouve-a, vê-a e diagnostica dois tipos de gotas. Acaba a maratona de quase cinco horas, com um centro de saúde e dois hospitais públicos sem qualquer controlo de temperatura nem as condições mínimas para a tentativa de minimizar o Covid.
Ai Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Maria João Lourenço
retrato perfeito da desgraça e das falhas do sistema, toca-nos a todos, queiramos ou não, por mais discursos politicamente correctos à hora dos telejornais. na mouche!
José Rafael da Cunha Maltez
Tenho um grande amigo que passa a vida a dizer que o SNS é do melhor que há no país e não só. Vou-lhe mandar este email. A negligência vai nua...