Juskowiak. ‘O Figo cruzou mal e tive de fazer uma bicicleta’
Inesquecível, o primeiro pontapé de bicicleta da nossa vida. O meu é o de Juskowiak num Sporting-Boavista em 1993-94. Já está 1-0, golo de Figo. Às tantas, Tavares faz um passe demasiado curto e Peixe antecipa-se a Sánchez num corte limpo. Vujacic adianta para Paulo Sousa e inicia-se o contra-ataque. Balakov passa o meio-campo e desmarca para a direita. Figo recebe bem e adianta assim-assim, daí que tenha de cruzar em esforço, todo no chão, a meias com Rui Bento. O braço esquerdo de Juskowiak indica a pequena área, só que a bola faz um efeito caprichoso e é obrigado a sacar uma bicicleta na cara de Barny. O gesto é perfeito, o golo também. Ao ângulo Alfredo nem se faz ao lance. É o 2-0, é o delírio. O curioso dessa tarde é o 3-0 de Balakov. Uma obra de arte. Outra. O Boavista anda ali a trocar a bola de um lado para o outro, como se fosse senhor do jogo, e Balakov intromete-se na brincadeira. Ainda fora da área, faz um chapéu brutal a Alfredo com o pé esquerdo. É o 3-0, é a histeria. Problema (para Balakov, é claro): entre uma bicicleta e um chapéu, há dúvidas? Bom, vamos lá então telefonar ao Jusko.
Bom dia, tudo bem? (vamos arriscar o português, bem devagar)
Tudo, tudo.
Posso falar em português ou…?
Português, sempre. Gosto de praticar, ahahahah.
Daqui a uns dias, há um Polónia-Portugal. Lembras-te desse jogo no Mundial do México-86?
Desse, não. É curiosa, a nossa mente. Lembro-me bem do Mundial de Espanha-82, quando a Polónia acabou em terceiro lugar. E, quatro anos depois, não me lembro de nada, quase nada. Claro que sei que a Polónia ganhou 1-0 a Portugal, mas foi só. De resto, empatou com Marrocos, perdeu 3-0 com a Inglaterra mais 4-0 com o Brasil, nos oitavos-de-final. Como saímos cedo, sem glória, não tenho memórias desse Mundial. Sou selectivo, ahahah.
Quem era o teu ídolo dessa selecção polaca?
Boniek, hoje presidente da federação polaca. Era um jogador extraordinário, fora de série.
E fora da selecção, de quem gostavas mais?
O primeiro de que me lembro era o Van Basten. Ele fazia tudo bem: pé direito, pé esquerdo, cabeça. E depois não marcava só os golos, também fazia assistências. Era um craque de corpo inteiro.
Querias imitá-lo?
Ahahahahah, impossível. Van Basten é inimitável. Nunca houve ninguém como ele, sobretudo pela elegância e inteligência.
Boniek e Van Basten, dois craques do futebol italiano. Alguma vez sonhaste jogar lá?
Olha, convites não faltaram.
De quem?
Fiorentina.
Quando?
Logo a seguir aos Jogos Olímpicos-92, em Barcelona.
E então?
Já tinha assinado pelo Sporting.
Antes ou durante os Jogos Olímpicos?
Antes, assinei antes.
Como?
Fui fazer uma semana de testes ao PSV Eindhoven. Aquilo passou-se, pronto. De repente, o Bobby Robson apareceu no Sporting e levou-me. Fiz um jogo em Paris, com o Aston Villa. Estávamos em Maio.
Espera aí, jogaste antes de assinar?
Ahahahahahah, é a magia dos anos 90. Deixa-te ir.
Ahahahahah. E que tal?
Ganhámos 3-0, acho. Joguei com o número 8 e marquei dois golos. Estava o Sousa Cintra na bancada e contratou-me ali naquela hora. Impossível dizer não. Era novo e tinha o sonho de jogar fora da Polónia. Durante décadas, por causa do regime, um jogador polaco só podia jogar no estrangeiro a partir dos 30 anos. Depois, 28. A seguir, 25. Finalmente à vontade.
Entras tu nesse contexto?
Exacto. Assinei pelo Sporting e fui para os Jogos Olímpicos.
Marcaste nos três jogos da fase de grupos?
Nem mais: dois ao Kuwait, um à Itália e outro aos EUA. e, depois, ainda fiz um hat-trick vs Austrália, na meia-final. Perdemos a final com a Espanha de Guardiola e Kiko, 3-2. Fui o melhor marcador dos JO e instalei-me em Portugal.
Vivias onde?
Estoril.
Uyyyyyyy, imagino o trânsito.
Não imaginas, não. Aquilo em Monsanto era o caos. Chegava muitas vezes ao treino e os jogadores todos já estavam a caminho do balneário para ir tomar banho, ahahahahahaha. Agora está muito melhor, a estrada de Monsanto.
Ai vais a Portugal?
Temos casa em Cascais, vou todos os anos. Como sou consultor do Lech Poznan em Portugal, fui aí muitas vezes este ano. Daí que Pedro Tiba e João Amaral estejam a jogar aqui, ahahahahah. Tinha de mostrar serviço, não é? Tinha de justificar as viagens a Portugal.
Foi fácil a adaptação a Portugal?
Mais ou menos. A barreira linguística era grande, mas passei os primeiros meses a aprender português e comecei a dar-me melhor no balneário, no sentido em que já percebia as bocas e as piadas privadas, ahahahah.
Quem era o teu companheiro mais porreiro?
Dividia quarto com o Stan Valckx, porque ele falava inglês e, assim, era melhor para mim.
E Robson?
Que dizer, é o homem que acreditou em mim, que mudou a minha vida.
E Mourinho, também falava inglês.
Também. Era duro nos treinos. Quando era para trabalhar, fechava a cara e dava-nos ordens com uma cara séria. Fora dos treinos, era simpático. Punha o braço à nossa volta, perguntava pela nossa família, interessava-se pela gente.
E o resto do plantel?
Tudo gente impecável: Balakov, Figo, Iordanov, Paulo Sousa, Vujacic. Havia muita matéria-prima.
E do outro lado, quem era o inimigo mais intratável?
Couto, Fernando Couto. Uma vez, nas Antas, deu-me quatro porradas. O árbitro, nada. Dei-lhe uma e fui expulso. Incrível [2-0 em 1994, a dez dias do 6-3].
E golos, qual o mais bonito?
O mais bonito? Huuuuum. O primeiro foi ao Famalicão, 4-3 em Alvalade. O segundo ao Porto, de cabeça, com o Baía na baliza: 1-1 em Alvalade. Agora mais bonito, mais bonito…
A bicicleta ao Boavista?
Esse? Ainda me doem as costas, ahahahahah. O Figo cruzou mal, muito mal, ahahahahahah, e tinha de emendar aquilo. Fiz a bicicleta, assunto arrumado.
Vais ver o Polónia-Portugal no dia 11?
Vou fazer os comentários para a televisão polaca. Tenho mesmo de ver esse jogo, ahahahahah.
Portugal sem Ronaldo.
Mas com Bernardo Silva e André Silva. A vossa selecção é boa, muito boa.
E a tua?
Mudámos de seleccionador [Brzeczek] e estamos a ver soluções para o futuro. O empate com a Itália em Bolonha foi bom, para início de conversa na Liga das Nações. A imprensa gostou do que viu, os adeptos também. Os elogios ao seleccionador foram imensos. Três dias depois, empatámos em casa com a Irlanda e choveram críticas. Temos de ir com calma.
Antes do Juskowiak, um polaco já tinha feito história em Portugal.
Claro que sim, Mlynarczyk. Vai ao encontro do que eu dizia no início da entrevista: esse só saiu da Polónia aos 31 anos. Foi para o Bastia, depois Porto. Foi campeão europeu em 1987, com 34 anos. É um guarda-redes sensacional, dois Mundiais nas pernas.
Conheces bem o Mlynarczyk?
Claro que sim. Os ídolos são para se conhecer. Ele foi treinador de guarda-redes da selecção polaca e cruzei-me muitas vezes com ele. Para que saibas, continua igual.
Como assim?
Fisicamente, continua como se estivéssemos em 1987: seco, seco, seco.
Grande Mlynarczyk. Obrigado Juskowiak, grande abraço e boa sorte para a Polónia
Obrigado eu, boa sorte para Portugal.
In Sábado, Out 2018