Dolores. ‘Se o Ronaldo fosse inglês, era o rei de lá’
Fácil, tão fácil. É de memória, sem puxar pela cabeça por aí além. Celeste Arantes, Dalma Salvadora Franco, Antonie Beckenbauer, Petronella Bernarda Draaijer, Sónia dos Santos Barata, Celia Maria Cuccittini, Eulalia Laulhé Gilmont, Margit Biró, Maria Carolina dos Santos e Anne Best. Que desfile é este? É o top 10 das mães mais importantes do futebol. Que o digam Pelé, Maradona, Beckenbauer, Cruijff, Ronaldo fenómeno, Messi, Di Stéfano, Puskas, Garrincha e Best. Como o futebol é um jogo de 11, falta só um elemento. Que entra directamente para o primeiro lugar. Só pode. Por simpatia, discernimento, cortesia e à vontade, Maria Dolores dos Santos Aveiro é a maior. Ponto final. Parágrafo.
A conversa começa por telefone, de viva voz. Vamos à Madeira em regime de férias-laborais. Uma chamada e já está.
– Bom dia, tudo bem?
– Bom dia? Boa tarde, ahahah.
– Pronto, seja, boa tarde.
(…)
– Quando chegar, ligue-me e combinamos. É melhor ser cá em casa para não dar bandeira.
(espectáculo, o “não dar bandeira” é precioso)
Aterramos no Funchal e ligamos-lhe do nosso hotel, onde estão hospedadas as 16 equipas do Mundial feminino júnior de pólo aquático. Just saying. And diving. Nada de resposta. Segue então um WhatsApp e lá vem a chamada.
– Já tomou o pequeno-almoço?
– Vou agora lá abaixo.
– Então esteja à vontade e, quando acabar, vá ter à loja CR7 na Ajuda.
– Obrigado, até já.
– Bom pequeno-almoço.
(divinal, o detalhe do ‘bom pequeno-almoço’)
Chegamos à Ajuda sem ajuda e a loja está mesmo à nossa frente: CR7 escrito à esquerda, Elma à direita. A entrar naquele preciso instante, uma senhora toda de verde. Um beijo para aqui, um beijo para ali e vamos para a sala de reuniões da loja. Uma secretária separa-nos, Dolores tem a mala ao colo e sorri como quem quer dar o pontapé de saída na conversa. Com o tempo contado, preparem-se para 15 minutos à Dolores.
É a primeira vez que vem cá?
Uyyyyyy, não, não. A primeira foi em 1994.
Ahhh, então já conhece isto bem. Antes, para chegar à Ribeira Brava era [faz uma careta cómica], agora é um instante. É tudo perto. As vias rápidas ajudam, o Alberto João fez algumas coisas em condições, ahahahah.
Para mim, a maior diferença de 1994 para agora é a Calheta. Antes só tinha um restaurante e um hotel, agora…
Agora está uma cidade bonita, muito bonita.
Quando falo em si, toda a gente, em especial o Aurélio Pereira, define-a como a mãe perfeita de um jogador de futebol. Como é que reage a isso?
Sou órfã desde garota, tinha seis anos quando perdi a minha mãe. Quando me tornei adulta e mãe, privilegiei sempre a família e quis dar aos meus filhos tudo aquilo que não tive: carinho. E agora também transmito esse sentimento para os meus netos. Quero dizer com isto que só quis o melhor para o meu filho e sempre respeitei as decisões do Sporting.
Ainda se lembra do dia em que conheceu o Aurélio Pereira?
O senhor Aurélio é uma pessoa muito especial, é como se fosse do meu sangue. Tudo aconteceu num torneio da Páscoa, ali na Câmara de Lobos. Por acaso, nem sei se esse campo ainda se mantém. O Cristiano estava a jogar e foi detectado pelo senhor Aurélio. Logo nesse dia, encontrei-me com o senhor Aurélio num hotel aqui perto e ele manifestou o interesse de levar o Cristiano para o Sporting. Ainda bem, foi o melhor que aconteceu na nossa vida.
Em que hotel, lembra-se?
Foi aqui na Ajuda, não me lembro qual. Sei é que nunca mais fui a esse hotel. Tivemos uma conversa e o senhor Aurélio queria levar o Ronaldo para fazer provas no Sporting. Como sportinguista que sou, aceitei. Ahahahah.
Ai é do Sporting? Boa, boa, o vestido não o desmente.
Ahahahah, foi coincidência, mas muita gente já me disse isso hoje. Sou sportinguista por causa do meu pai. Foi o bichinho. O Ronaldo também era do Benfica por causa do pai. Mas mal chegou ao Sporting, tornou-se sportinguista. Até hoje.
E ele passou as provas no Sporting?
Claro, era uma pérola que estava ali.
E daí para a frente?
O senhor Aurélio ajudou-nos sempre, tratou de tudo e fez o contrato com os dirigentes do Sporting. Tínhamos três viagens por ano e, às vezes, eu aparecia uma quarta ou quinta vez quando o Ronaldo entrava naquela crise.
Então?
Foi prestar provas aos 11 anos e ficou a viver em Lisboa a partir dos 12. Era muito novo e aquilo foi duro, muito duro. Tanto para nós, família, como para ele. Mais para ele, claro.
E telefonava-lhe?
Todos os dias. Numa primeira fase, ainda nem havia telemóvel. Umas vezes a chamada corria bem, outras nem tanto e chorava. Podia perceber o seu estado de ânimo no primeiro segundo do telefonema. Mal ele atendia, já sabia. Nas chamadas mais chorosas, eu dizia-lhe ‘Filho, a mãe vai aí, mas tens de continuar a lutar pelo futebol se é isso que queres’.
E ele?
Está aí, mais palavras para quê? Meteu na cabeça que ia ser jogador de futebol e trabalhou para ser o que é. Chegou o mais alto possível e ainda tem muito para dar.
Como foram os primeiros tempos de Ronaldo em Lisboa, tem memória?
Então não tenho?! Lembro-me bem até da primeira vez dele no Funchal, como jogador do Sporting.
E então?
Não veio.
A sério?
Ficou de castigo. Más notas na escola, desatenção nas aulas.
Já sabia desse comportamento?
Ai sim, sim. O senhor Aurélio contava-me tudo, sempre. É como lhe digo, acompanhou-me constantemente. Ele e o Leonel Pontes, agora treinador do Sporting e também madeirense. Foram dois bons portos de abrigo, sempre prontos para ajudar. Dessa vez, o senhor Aurélio telefonou-me e disse-me que o Ronaldo ia ser castigado. Por isso, falharia o jogo Marítimo-Sporting.
E o Ronaldo?
Ficou revoltado, até quis abandonar.
O que lhe disse?
“Se estivesses com a mãe, eu castigava-te. Com eles, do Sporting, é igual. Tens de saber dar a volta.” Foi pena, claro. A verdade é que ficámos frustrados, todos nós, a família e os amigos. Até tínhamos feito cartões de boas vindas para esperá-lo no aeroporto, como ‘Força Ronaldo’. Foi pena, mesmo. Mas se fez asneiras, tinha de ser castigado. E ele aprendeu a ser homem nessas alturas.
E a senhora ainda se lembra da primeira viagem a Lisboa?
Claro que sim, foi uma aventura. Para mim, daqui a Lisboa era como daqui é Venezuela. Era outro mundo.
E gostou?
Muito, gostei muito de Lisboa. E passei a viver lá com ele, a partir do momento em que passou a jogar com os adultos. Até me lembro da fase em que se afirmou como jogador profissional e pediu-me para acabar com os estudos. Porque aquilo era duro: treino de manhã, treino à tarde e aulas à noite, das 7 às 11, se não me engano. Ele ligou-me a dizer que não queria mais estudar. Insistia nessa ideia e, às tantas, convenceu-me. Disse-lhe ‘se é isso que queres, a mãe vai assinar e serás jogador de futebol’.
Já o imaginava a jogar futebol?
Desde sempre, ele dizia-me que seria o futuro dele desde os cinco, seis anos. Dizia-o com uma certeza absoluta. Às vezes, até penso que tudo isto ainda é um sonho.
E ia aos jogos dele aqui na Madeira, ainda antes do Sporting?
Quase sempre. Às vezes, estava a trabalhar e não podia sair do serviço.
E quando ele caía?
Ficava aflita. Quem não fica? Ainda por cima, naqueles pelados que hoje já nem existem. Mas, como dizem, é parte do ofício.
Acompanhou o Ronaldo na estreia?
Vi todas as estreias dele em Alvalade.
Todas, como assim?
A estreia oficial, com o Inter. A estreia a marcar, com o Moreirense. E a estreia no novo estádio, com o Manchester. [g’anda baile, da Madeira, está visto]
Já vivia com ele em Lisboa?
Jááááá. Desde que foi chamado à equipa principal, ele pediu-me para acompanhá-lo a tempo inteiro.
Viviam onde?
Na Expo, num apartamento que era do Hugo Viana. Fazia-lhe o pequeno-almoço, antes do treino. E fazia-lhe o almoço, depois do treino. A mesma táctica em Manchester.
E ia aos jogos todos?
Só em casa, tanto no Sporting como Manchester, Real e Juventus.
Fora, nada?
Nada. O Ronaldo pedia-me para não ir. Sobretudo ao City. E também ao Atlético, que até era perto de casa. Ainda agora, quando foi o sorteio da Liga dos Campeões, pediu-me para não ir ver o Atlético-Juventus.
E que tal os jogos em casa?
Em Manchester, é a loucura. Nada a ver com Portugal: podem estar a perder que estão sempre a apoiar até ao fim. Até nas derrotas, os adeptos querem ver os jogadores no final do jogo. Mesmo aqueles que se demoram muito a tomar banho e a pentear-se, ahahahah. Se o Ronaldo fosse inglês, era o rei de lá. Se ele voltasse ao Manchester, nem quero imaginar: seria o regresso de um herói.
E a senhora era reconhecida nas ruas de Manchester?
Mommy Ronaldo. Nem sabia falar inglês, mas percebia o carinho daquelas pessoas, fosse ao shopping, ao supermecado ou ao café. Desde que tenho instagram, as pessoas estão mais atentas ainda. E o respeito está sempre presente.
Qual foi o jogo do Ronaldo que mais a marcou?
Sem ser as estreias, tenho de dizer o Portugal-Inglaterra na Luz.
O do Euro-2004?
Em 2004, sim. A seguir ao golo do Rui Costa, a emoção foi tão forte que desmaiei. Quando estava a ser vista pelos médicos, já fora da bancada, disseram-me que Portugal tinha ganho nos penáltis. Foi uma alegria imensa.
E a maior desilusão?
Também nesse Europeu, o jogo da final com a Grécia. Porque tinha desmaiado com a Inglaterra, o Ronaldo pediu-me: ‘mãe, por favor, não vejas o jogo no estádio, vê em casa’. Fiquei em casa e fiquei destroçada com as imagens do Ronaldo a chorar. Outro jogo que o Ronaldo pediu-me para não ir foi a final da Liga dos Campeões na Luz, entre Atlético e Real. Fiquei em casa e desmaiei.
Outra vez?
Outra vez. E, desta vez, fiquei com a cara toda negra.
Bolas.
É verdade [Dolores faz uma careta engraçada], a culpa é do Sergio Ramos. Ahahahah, quando ele marcou o empate nos descontos.
E o prolongamento?
Peguei no meu neto e fomos dar uma volta a pé. Quando chegámos a casa, soubemos que tinha acabado 4-1. Foi uma alegria ilimitada. Olhe, lembrei-me agora de outro momento triste, o da final do Euro-2016 com a França. Digo triste quando ele desatou a chorar no relvado, lesionado e sem forças para continuar. Custou-me muito, muito, muito. Mas depois valeu a pena, ganhámos a taça. Outro momento de muita tensão foi quando se descobriu que um problema no coração. Ele cresceu muito depressa e o coração não acompanhou. Felizmente, o doutor resolveu o problema.
Como?
Operação a laser. Foi um sucesso e um alívio enorme.
[a porta abre-se, é Elma]
– Isto é assim? [no gozo]
– Vim para aqui, é mais sossegado.
– À vontade, vou ali ao café.
[Dolores vira-se para mim]
Vamos beber um café?
Vamos a isso.
[no café, a conversa é sobre o Portugal-Luxemburgo em Alvalade, dia 11 Outubro, para o Euro-2020; depois do café, segue-se a boleia a pé para o táxi, ali no Fórum: ‘este tempo é uma maravilha, nem é preciso o casaco de abafo’] Que craque. Bola de Ouro para Dolores, já.
in MaisFutebol, Set 2019