Tiago Goes. ‘O Ronaldo era um chavelha’
Gerd Müller, Beckenbauer, Beckenbauer, Rummenigge, Rummenigge, Matthäus e Sammer: Alemanha, sete. Cruijff, Cruijff, Cruijff, Gullit, Van Basten, Van Basten, Van Basten: Holanda, sete. Eusébio, Figo, Ronaldo, Ronaldo, Ronaldo, Ronaldo e Ronaldo: Portugal, sete.
Portugal, uma fábrica de jogadores por excelência. Sete Bolas de Ouro é muito jogo e Ronaldo é o rei. Mais uma vez. Craque da cabeça aos pés. Desde sempre. Conta-nos Tiago Góes Ferreira, madeirense como Ronaldo e figura do nosso contentamento. Jornalista da RTP, tem um percurso pelo futebol jovem ao serviço do Nacional (ele que até é maritimista). É lá que encontra um chavelha chamado Cristiano Ronaldo, em 1995. Juntos, sagram-se campeões regionais da Madeira na época de estreia. É o único título de Tiago e o primeiro de Ronaldo. O nosso desejo é juntar a dupla, só que Ronaldo está ocupado a marcar golos, a acumular Bolas de Ouro e a juntar mais faixas de campeão de tudo e mais alguma coisa. Ou quase. A faixa do campeão do bitoque em Alvalade é de Tiago. “Vou levar-te a um restaurante em que o bitoque vale três bicicletas do Cris.” Challenge accepted. Uma hora e tal depois, confirma-se a qualidade. Do bitoque e da conversa.
É o primeiro título de campeão do Ronaldo. Vê lá se o descobres?
É este aqui, com o fio no pescoço.
Boa, boa. E agora descobre-me.
Huuuuum.
Vai ser difícil descobrires-me porque jogava à baliza e a minha estatura não era assiiiiim muito condizente com o lugar.
Ahhhh, estás aqui.
Isso. Tenho quase mais dois anos e ele, já aí, era mais alto que eu.
Isto é o quê?
É o primeiro título de campeão do Ronaldo.
Qual é?
O de regional da Madeira nos infantis, em 1995-96. O Nacional já não era campeão há cinco ou seis anos, era sempre o Marítimo. Este dia foi histórico, a primeira vez de muita desta gente no Estádio dos Barreiros. Este aqui de bigode, acredites ou não, é o Rui Alves. Ao lado dele, o treinador.
Como se chama?
Mendonça, foi o primeiro treinador a sério do Ronaldo.
Como é que era esse campeonato regional da Madeira?
No Continente, o campeonato é divididos por distritos, certo? Na Madeira, o campeonato é com todas as equipas federadas. Começámos bem e acabámos melhor. Nesse percurso, a AF Madeira prometeu que o campeão ia jogar ao Continente com o campeão nacional. Isso motivou-nos, e de que maneira.
E então, vieram cá?
Não deu em nada, nada. Uma tristeza. Prometeram-nos também novos equipamentos e tal, nada. Reza a história, não sei se é verdade, que uma das exigências do Ronaldo quando assina pelo Sporting é a entrega de novos equipamentos para os colegas de equipa do Nacional. Nunca confirmei com ele nem com ninguém, mas a verdade é que os equipamentos novos apareceram na sequência da sua saída para o Sporting. E ele, embora muito novo, ainda com 10 anos, tinha assim umas coisas de companheirismo bem vincadas.
De volta ao campeonato regional, era renhido?
Boas equipas, muitas. O Marítimo, campeão crónico, mais o Nacional, o União e o Câmara de Lobos. Esta última era uma equipa tramada, feita exclusivamente de miúdos de rua. Agora já não é assim tão evidente, mas era naquela altura e os gajos eram bem tramados. Nós jogávamos com eles e as mães dos putos atiravam-nos pedras.
Hã?
Era horrível.
Tu, como guarda-redes, imagino o sofrimento.
Sofri um bocadinho, levava com todo o entulho.
Como é que fazias?
Jogava um pouco à Neuer, ali na meia-lua. Essa equipa do Câmara de Lobos era boa, mas nós estávamos imparáveis.
Vocês eram o quê, na verdade?
Nós éramos os infantis B. Herdámos dois jogadores do infantis A e fomos buscar dois putos, um era o Futre, o outro era o Ronaldo.
Futre?
Alcunha. O nome dele é Fábio.
O que é feito dele?
Perdeu-se para a bola e trabalha nas obras. Era um grande jogador, que decidia os nossos jogos com livres diretos. Ele conseguia atirar a bola ao ângulo mesmo de longe. Repara, éramos putos de 10/11 anos. Era uma proeza. Aquilo era simples: bola para o Ronaldo, que fintava, driblava e marcava. Se fosse travado em falta antes de entrar na área, livre direto para o Futre e golo. Ia sempre dar ao mesmo, golo, golo, golo. Grandes tempos.
E o Ronaldo não marcava livres?
Ainda não. Ele jogava ali a segundo avançado, como falso 10. Jogava assim porque a capacidade dele para driblar toda a gente era enorme. Claro que era muito fuso e, às vezes, perdia a bola, mas resolvia-nos muitos problemas. O gajo jogava em todo o lado. Tenho histórias dele bem engraçadas.
Desembucha rapaz.
A do primeiro treino, por exemplo. Ainda na pré-época, ali no campo da Escola Jaime Moniz.
Pelado?
Agora sintético, na altura pelado. O gajo aparece, muito pequeno, muito magrinho. Um chavelha.
Um quem?
Cá é o mitra, lá é o chavelha. Isto tem uma história: os barcos de Câmara de Lobos têm esse nome de chavelhas e alargámos esse nome para todo o pessoal rufia, que falam mesmo madeirense.
E ele?
Coitado, e ele nem era de Câmara de Lobos. Eheheheh. Chamávamos-lhe chaveirinha. Estávamos sempre a gozar com o gajo, os putos são terríveis, não é? Lembro-me dele ser muito franzino, que caía ao mínimo contacto com a malta mais experiente. No fim do treino, peladinha. O gajo agarra na bola e finta uns cinco ou seis. Ta-ta-ta. Já com os trejeitos de hoje, o de passar o pé por cima da bola e tudo. Muito rápido, muito veloz. E nós, uns para os outros, quem é este gajo? Na segunda vez que ele tocou na bola, outra vez o mesmo baile. Ta-ta-ta. A partir do segundo treino, já ninguém gozou com ele. Começámos a conhecê-lo melhor e conquistou o nosso respeito num piscar de olhos. O engraçado dele era a sua competitividade.
Em quê?
Tudo, desde o futebol até aos matraquilhos.
E o que é que ele fazia?
Chorava. Ele chorava imenso, a gente chamava-lhe o chora. O gajo ficava lixado e chorava mesmo. Nos treinos, quando o treinador lhe dava na cabeça, o gajo chorava.
Como é que funcionavam os treinos?
Só não treinávamos à segunda-feira.
A sério?
De terça a sábado, sempre à noite. Ao domingo, jogo. O futebol foi a minha tropa, por assim dizer. Saíamos da escola, íamos a um ponto específico, onde uma carrinha nos levava para a Choupana ou o Jaime Moniz. E depois o treino, fizesse chuva, vento ou trovoada. Siiiiga. Ainda me lembro do nome do motorista, que ainda trabalha com o Nacional: é o senhor Paulo.
Iam todos os jogadores nessa carrinha?
Todos, o Ronaldo incluído. Era um regabofe. A carrinha só tinha nove lugares e levava os jogadores todos, uns 16, vê bem. Só quando o Nacional percebeu que podíamos ser campeão regionais, começámos a ir no autocarro dos iniciados. E aquilo era a Madeira antiga, sem vias rápidas. Lembro-me de um jogo com o São Vicente, no outro lado da ilha, em que demorámos três horas para chegar ao campo.
E?
Os primeiros 15 minutos à nora. Quando chegámos ao campo, uns vomitavam, outros andavam de lado. Estás a ver, 16 gajos numa carrinha só para nove, em estradas com buracos, tudo aos saltos. O que o sr. Paulo nos aturou, foooooge. Merece a medalha de campeão.
E o jogo do título é com quem?
Com o Marítimo, na Choupana. Éramos campeões se ganhássemos.
Ganharam então?
Um-zero, golo do Futre.
Livre direto?
Claro.
E tu na baliza?
Errrrr.
Então?
Comecei a época a titular, só que depois parti o braço e nunca mais recuperei o lugar.
Quem entrou?
O Faria, mais alto que eu. Na altura, custava-me reconhecer que ele era melhor que eu. Depois, com o tempo, percebi isso na boa, eheheheheh.
E como é que partiste o braço, hein?
Foi o Ronaldo, eheheheh.
A sério?
A culpa é minha, mas costumo dizer que foi o Ronaldo que me partiu o braço. É mais vistoso, não é?
Como é que isso aconteceu?
Num treino na escola, no cimento. O gajo fez-me um remate e eu meti mal a mão. Olha, tramei-me.
Sentiste logo na hora?
Não, estava bem. No aquecimento para a peladinha, o treinador dos guarda-redes lança-me a bola e eu caí para trás. Percebi aí que estava arrumado. Fui logo para o hospital, radiografias e isso tudo.
Falavas do jogo do título com o Marítimo?
Campo do treinos do Nacional, em baixo do estádio principal, cheio, à pinha.
Pelado?
Pelado, sim. Só pessoal do Marítimo nas bancadas improvisadas ali em cima, onde agora é uma estrada.
Então e o pessoal do Nacional?
Era muito raro alguém seguir-nos. Olha, os meus pais nunca ligaram nenhuma ao futebol. Quem lá estava sempre era o pai do Ronaldo. Tinha cá uma paixão pelo filho, acompanhava-o sempre, sempre, sempre. Bom, golo do Futre, viemos todos para trás a defender o 1-0 e fomos campeões. Ora bem, estávamos a jogar em casa e tivemos de ser escoltados pela polícia porque os pais dos jogadores do Marítimo estavam a atirar pedras. Lembro-me de estar no autocarro e ver pessoal do Marítimo a atirar pedras, outra vez. Só para veres, um regional da Madeira. Isto sem falar no árbitro, que roubou-nos a torto e a direito. Árbitro esse que, três anos depois, estava na equipa técnica do Marítimo.
Ouch.
É só histórias. Havia lá um clube que era a Juventude dos Salesianos, cuja massa adepta era inteiramente composta pelas mães dos jogadores. Não eram os pais, eram só as mães. Bem, não estás a ver aquilo. O curioso é que é nesse jogo com a Juventude que o olheiro do Sporting, que não o Aurélio Pereira, veêm o Ronaldo. O nosso treinador esteve bem, antes do jogo, e disse-nos que o olheiro estava a ver quatro jogadores nossos. Mentira, era só o Ronaldo. Agora é fácil, claro, eheheheh.
Quais eram os quatro?
O guarda-redes, um defesa, um médio e um avançado. Nós bem queríamos que ele nos dissesse, mas o nosso treinador esteve bem e guardou segredo.
E que tal esse jogo?
Beeeeem, jogámos bem como nunca. Ganhámos com categoria.
E o Ronaldo já marcava golos?
Não me lembro se ele foi o melhor marcador da nossa equipa. Se não foi, andou lá perto, embora jogasse a 10 e fizesse um monte de assistências. E há outra: ele era o nosso melhor jogador e ainda jogava os torneios das escolas e também jogava nos iniciados. Eu tinha 12 anos, ele só tinha 10 e já jogava em três escalões.
Como é que era no dia a dia?
Era rebelde e rufia, igual a todos nós. Nem era aquele que mais vezes respondia de forma torta ao treinador.
Brincalhão?
Muuuuito. Havia um jogo em que ele era rei. No final do treino, já no balneário, costumávamos enrolar a toalha molhada e dar no pirilau dos outros assim de repente. O gajo era dos mais lixados, apanhava sempre o pessoal distraído. Era terrível. Há mais histórias. Uma que até nem conto muito.
Carrega.
Eu tinha medo que o Ronaldo e um outro, por serem mais pobres, roubassem a malta no balneário. Ironia do destino, somos campeões e o Nacional prometeu-nos oferecer o equipamento do jogo da final. No dia seguinte ao tal 1-0 ao Marítimo, era o último treino da época e todos estávamos a ver que ninguém nos ia oferecer o que quer que seja. Então, os jogadores diziam entre si que iam roubar o equipamento de treino. O equipamento, não; só a camisola. Na altura, era muito menino e tinha medo de roubar, de fazer coisas à socapa. Então saí do treino sem nada. O pessoal safou-se todo e perguntou-me se me tinha safado. Para não dar parte de fraco, disse que sim, que a camisola de treino estava comigo. O Ronaldo, não sei como, topou a mentira e chegou-se ao pé de mim: ’tás parvo? leva lá a merda da camisola’. Roubou-me a camisola por mim. Grande gesto.
Ainda tens a camisola?
Não, não sei onde ela anda. Só tenho a faixa de campeão nacional, que até está no museu do Ronaldo, no Funchal.
E mais, e mais?
Desde esse dia, só vi o Ronaldo mais três vezes. A primeira encontro-o na praia do Lido, bem mais alto que eu, já todo bicho e com orgulho de ser assim. A gente pergunta-lhe como é a vida no Sporting e ele ‘é difícil, estou sozinho’. E eles lá jogam muito? ‘Jogam muito, mas ainda jogo melhor que eles. Gozam comigo por ser madeirense, mas dou cabo deles no campo’. Partimo-nos a rir, porque imaginávamos isso mesmo. Na altura, lembro-me de ele fizer que se já dava com os jogadores da equipa principal, como o Oceano. Volto a encontrá-lo já com 18 anos, depois de um Marítimo-Sporting. Como o Sporting ganha [3-0 por Quiroga, Sá Pinto e Kutuzov], saem à noite no Funchal. Bem sei que agora seria impensável, naquele tempo nem por isso. Então, estou numa discoteca no molhe da Pontinha e vejo a equipa toda do Sporting a entrar: Sá Pinto, João Pinto, Paulo Bento, Rui Jorge, Barbosa, Beto e, claro, Ronaldo. Fiz uma aposta com uns amigos meus em como o Ronaldo se lembrava de mim. Eu, com os copos, aceitei a aposta e fui ao bar, onde estava o gajo. Quando ia a caminho do bar, já estava arrependido e a dizer a mim mesmo ‘não se vai lembrar de mim’. Já não o via há uns seis anos, não é? Ponho-me ao lado dele e parecia que estava a engatá-lo. Eheheh, que coisa. O gajo olha e nada. Olho para trás e vejo os meus amigos a rirem-se. De repente, o Ronaldo chama-me Tiago. Ah-ha, agora a minha sorte vai mudar. Deu-me um abraço e ficámos imenso tempo a falar. Na altura, já se falava que ele ia embora do Sporting. Dizia-se Liverpool, Inter e um outro clube.
Nada de Manchester?
Ainda não. Provoquei-o com essas propostas e ele ‘isso é só conversa, só quero jogar no Sporting.’ Ele que não era titular assumido. Essa foi a segunda vez. A terceira e última foi na Quinta do Falcão, onde a minha mãe ainda mora. Nessa zona, há um barzinho frequentado pelo irmão e primo do Ronaldo. É um sítio simpático, bem perto de casa, daqueles onde vou beber um café só para evitar descer até ao Funchal. Fui lá um dia e aconteceu-me isto: bebo um café, pago e alguém me cumprimenta quando vou a sair. Eu respondo ao cumprimento e continuo o meu caminho. Nunca pensei que ia encontrar alguém conhecido naquele espaço. Só quando estou fora do bar é que me dou conta ‘espera lá, aquele era o Ronaldo’. Agora, o que fazer: hipótese a) devia ter entrado para falar-lhe ou b) continuava o meu caminho.
E tu?
Escolhi a hipótese b.
Ouch
Pois é.
Foi há quanto tempo?
Só sei que ele já estava no Real. ‘Tou queimado, não ’tou? Aquilo não custava nada, era voltar atrás e falar-lhe. Por vergonha, continuei o meu caminho.
Ainda te lembras dessa equipa campeã?
Sim, claro que sim. O lateral-direito era o Bruno. No meio, o meu primo Sampaio, que era o capitão, mais o Magno. À esquerda, o Aleixo, que vive no Porto. Aliás, só ele, o Ronaldo e eu é que vivemos fora da Madeira. No meio, o Gonçalinho. Como extremo-direito, o Igor, que era o número 7. Como extremo-esquerdo, o Vieirinha. Era o pior de todos nos treinos, mandava o treinador prò c******, mas era muito rápido, uma espécie de Sérgio Conceição. O Ronaldo, número 9, era o segundo avançado nas costas do tal Futre, o número 10, e o avançado Décio, que já era muito peneirento, com o cabelo à anos 80.
in Observador, Out 2017