Stoitchkov. ‘Nada tenho contra os árbitros, um deles até é padrinho do meu casamento’
Ao pé dele, McQuade (Chuck Norris) é um menino. Paul Kersey (Charles Bronson) ficaria desfeito em mil pedaços. John Rambo (Sylvester Stallone), coitado, nem se mexeria. Dirty Harry (Clint Eastwood), pffff, é caso para dizer neeeext. Ivan Drago (Dolph Lundgren) bem poderia continuar a tentar que não lhe chega sequer aos calcanhares. Fosse quem fosse – e apresentámos aqui alguns dos maiores durões do cinema –, nenhum deles equipara-se em feitio à lenda de Hristo Stoitchkov.
O búlgaro é daqueles jogadores irrepetíveis, é daquelas figuras que nos obriga a interromper o que estamos a fazer só para ver o que sai dali. Tanto pode ser uma jogada de génio como uma de mau génio. Tanto pode ser um golo descomunal ou um passe do outro mundo como uma pisadela ao árbitro ou um gesto mal intencionado na direcção do seu treinador. Um enfant terrible, eternamente (re)conhecido pelas suas capacidades técnicas do pé esquerdo. Um fenómeno sem igual que se expressa sempre ao mais alto nível. Eleva o Barcelona (campeão europeu em 1992) e a própria selecção búlgara (quarta classificada no Mundial-94) a patamares nunca antes alcançados. É uma lenda, portanto.
Conhecido por Itso pelos amigos, nasce na cidade de Plovdiv em 1966 – e aqui temos de parar para fazer uma vénia a essa colheita de 66, já com Futre e Romário. O pai de Hristo é guarda-redes no Maritsa, a equipa da sua terra, e cedo desperta a atenção do filho para a bola. A paixão é tanta que a mãe (Penk) diz sempre que o filho nascera com uma bola entre os pés. Exagero ou não, a verdade é que Stoitchkov deixa a sua marca em todos os clubes por onde passa. E o primeiro deles todos é o CSKA Sofia, depois de contratado por Manol Manalov, dirigente do clube militar búlgaro, a pedido do treinador Dimitar Penev.
Na sua primeira época (1984-85), o extremo junta o campeonato nacional à Taça da Bulgária, com um grave incidente na final da Taça com o árbitro. Visionadas as imagens da discussão, a federação suspende Stoitchkov por uma época. Hristo só regressa ao activo em 1986 e, apesar de continuar refilão com a autoridade em campo, começa a marcar golos. Primeiro, seis no campeonato. Depois, 14. A seguir, 23 (melhor marcador) mais sete na Taça das Taças (melhor marcador). Por fim, 38 (melhor marcador da Europa).
Em 1990, Stoitchkov assina pelo Barcelona numa transferência milionária de 4,5 milhões de dólares. Estamos ainda no pré-Bosman e nenhuma equipa espanhola pode jogar com dois estrangeiros. Ora, o Barça tem o brasileiro Aloísio e o dinamarquês Michael Laudrup. O treinador holandês Johan Cruijff mantém Laudrup e liberta Aloísio para o Porto. A apresentação de Stoitchkov é um show que só visto, entre falar algumas palavras de catalão e criticar o Real Madrid. No primeiro dia, Camp Nou já é a sua casa e os adeptos catalães os seus fiéis acólitos. No primeiro ano, Stoitchkov é o vilão-mor. Por pisar um árbitro (Urízar), gesto que lhe vale a suspensão de seis meses.
Em cinco épocas, o Barça é tetracampeão espanhol e levanta a sua primeira Taça dos Campeões. Nesse tempo, já são permitidos três estrangeiros por equipa e o Barcelona contratara Romário, com quem Stoitchkov se entende às mil maravilhas. Dentro e fora do relvado. Nas suas melhores recordações, o 5-0 ao Real Madrid em Camp Nou.
Curiosamente, seria esta dupla a dar que falar no Mundial dos EUA, em 1994. O brasileiro, como figura incontestável dos campeões; o búlgaro, como goleador de serviço da selecção surpresa, que conta ainda com os sportinguistas Balakov e Iordanov, este último o alvo constante das brincadeiras do capitão. Numa delas, atira-o à piscina todo vestido.
Em dois dreams teams, o de Cruijjf e o de Penev, não é de estranhar a vitória de Stoitchkov na Bola de Ouro, prémio instituído pela revista France Football para o melhor jogador a actuar na Europa. Por essa altura, já Itso é do Parma, a troco de 15 milhões de dólares para o Barça, mas a vida não lhe corre bem por aquelas bandas, devido à sua condição de suplente num ataque liderado por Inzaghi e Zola. Estamos em 1996, ano de Europeu em Inglaterra.
A Bulgária apresenta-se com a mesma equipa do Mundial dos EUA mas sem o brilho de 1994, à excepção de Stoitchkov, autor de três golos em outros tantos jogos e até lhe é (mal) anulado um espectacular vólei à Espanha. Regressa ao Barça de Bobby Robson para ganhar uma Taça das Taças, na tal final em que jogam os três portugueses Baía, Couto e Figo. Em 1998, é emprestado ao Al Nasr. O contrato é válido para um jogo, o da final da Taça das Taças da Ásia. Os sauditas ganham um-zero aos sul-coreanos do Bluewings. Autor do golo? Stoitchkov. É o último golpe de génio? Nem pensar. Em 2000, é vencedor da Taça dos EUA, pelo Chicago Fire. Acaba 2-1 sobre o Miami Fusion e um dos golos é de você-sabe-mutio-bem-quem.
Arruma as botas em 2003, no DC United, aos 37 anos. Tanta lenga-lenga para quê? Este Verão, há dois clubes na berlinda. O CSKA Sofia desce à 3.ª divisão por divídas ao fisco. Nem um dia depois, o Parma decreta falência à falta de um comprador. Ora bem, quem é o maluco a jogar nestes dois clubes? Um só: Stoitchkov, pois está claro. Ele atende-nos amavelmente. Ou nem tanto. Como é Hristo, até damos de barato.
Boa tarde, tudo bem. É uma boa hora para falarmos?
De futebol?
Sim, sim, claro.
Diz-me o queres saber. Mas rápido, vou apanhar um avião. Não te digo para onde, senão ainda escreves e estragas o efeito surpresa. Diz-me, diz-me. (a ideia não é despachar-me e chuto a pergunta que está mais à mão)
És conhecido pela Bola de Ouro, pelos golos mas também pela pisadela ao árbitro. Lembras-te?
Se me lembro? Claro que sim [e escangalha-se a rir]. Não me arrependo nada. Até me orgulho, sabes. Joder. O pior foi aquilo no balneário do Barcelona. Tinha chegado há pouco tempo e o Bakero [capitão] perguntou-me se tinha pisado. E eu ‘noooooo, que idea’. Ele insistiu, a olhar-me nos olhos, e eu ‘José Mari, te lo juro que no le he pisado’. E lá foi ele defender-me na zona mista, à frente de todos aqueles jornalistas. No dia seguinte, apanhou-me a jeito no balneário e disse-me, quase a salivar: ‘Hijo de puta, dime la verdad”. Tive vergonha, claro. Pedi desculpa a todos.
Era costume seres expulso. Tens alguma coisa contra os árbitros?
Nooooo, que idea. Nada, nada. Nada tenho com os árbitros. O meu padrinho de casamento até é árbitro. Só não aguento quando eles se enganam. Aí… Então o árbitro do Itália-Bulgária… Esse hijo de la gran puta?! Espero nunca mais vê-lo na vida. Quero lá saber o que a FIFA ou quem que que seja. Esse árbitro é o pior da história. Anormal. Não há explicação para aquilo. Uma coisa é roubar um futebolista, agora roubar um país. Ele roubou a Bulgária. O meu país. Ese maricón de mierda. Nós jogamos futebol, mas há quem se entretenha a beber champanhe e a comer caviar a ver-nos. E são esses que decidem o nosso destino.
Essa Bulgária era um espectáculo.
Sim, obrigado, muito obrigado. É bom ser reconhecido mas queria que a Bulgária de hoje é que fosse reconhecida e não a de 1994. Tínhamos um plantel muito bom. O Balakov jogava aí, no Sporting. O Iordanov também. O Kostadinov era do Porto.
Como ele era?
O Kostadinov? Não se aventurava nas palavras, sempre muito curto. Era preciso um saca-rolhas. Como estás? Bem. Como foi o treino? Mais ou menos. Dormiste bem? Sim. Não passava disso [escangalha-se a rir]. Dentro do campo, dios mío. O homem corria, saltava, goleava. Fazia tudo, tudo, tudo bem. Foi dos primeiros a sair da Bulgária, precisamente para o Porto, e devemos-lhes muito. É uma referência.
Ele marcava imensos golos, incluindo o da qualificação em Paris, certo? [2-1 à França nos descontos]
Esse dia é inesquecível. Sabes quem entrou no nosso balneário para a festa? Nem ideia. O Romário. O cabrón desmarcou-se de Barcelona, sem autorização do Cruijff, e apareceu de surpresa em Paris para me dar um abraço. Foi emotivo. E complicado. Depois tive de telefonar ao Cruijff a dizer-lhe que tinha convidado o Romário e tal. Se não o fizesse, o Romário era multado.
E davas-te bem com o Cruijff?
Johan é o meu pai, joder. Sempre que ganhei alguma coisa, ele ia comigo. Fazia questão de o levar. É uma instituição. O que ele fez no futebol, como jogador e depois como treinador é uma dupla revolução. Poucos são assim. Nos treinos, ele ganhava sempre os nossos concursos da bola ao poste. Uma vez, em Tenerife… Ou Maiorca, já não me lembro. Apostámos cem mil pesetas e o cabrón ganhou. Depois disse-me: se marcares amanhã um golo, esqueço a divídia. Ao intervalo, estava 2-0, golos de Laudrup e Goicoechea. No balneário, substitui-me. Porquê, perguntei-lhe. Paga o que deves, disse-me ele. Que hijo de puta, joder.
Só amigos famosos: Romário, Cruijff. Mais alguém?
Maradona, el más grande. No Mundial-94, nós começámos mal e perdemos com a Nigéria por 3-0. Estávamos de rastos. No mesmo dia, e para o mesmo grupo, a Argentina ganha 4-0 à Grécia. À noite, recebo uma chamada do Maradona a dar-me ânimo, qualquer coisa como ‘não te preocupes, também vais ganhar 4-0 aos gregos’. E não é que acertou? Génio, génio. Adoro-o, quero-o tanto. Olha, tenho de ir. A gente continua mais tarde.