#18 Portugal 1982-84
Ponto da situação: Portugal não pesca nada desde os Magriços em 1966. De lá para cá, façam as contas: Euro-68, Mundial-70, Euro-72, Mundial-74, Euro-76, Mundial-78, Euro-80 e Mundial-82. Ao todo, oito fases finais para o galheiro. Vai daí, a federação chama o treinador de campo do Mundial-66. Chama-se Otto Glória e acaba de se sagrar campeão africano pela Nigéria (3:0 vs Argélia, em Lagos).
O brasileiro é daqueles com queda para brilhar: campeão nacional pelo Benfica, campeão nacional pelo Sporting e vencedor de quatro Taças de Portugal, uma das quais pelo Belenenses. A isso junta-se o bigode inconfundível, o estilo bonacheirão e um tratado de jargões e frases para a história. Como aquela do ‘sem ovos, não faço omoletes’ a propósito da ausência do argentino Diego e do brasileiro Geo para justificar o surpreendente zero-zero do Sporting vs Lusitano Évora, no José Alvalade.
O plantel de Otto Glória é do best. O Sporting é campeão nacional em 1982 com o trio da frente constituído por Manuel Fernandes, Jordão e Oliveira. O Benfica chega à final da Taça UEFA com Bento, Humberto, Carlos Manuel, Nené e o Porto à da Taça das Taças em 1984 com Lima Pereira, Sousa, Gomes. Há matéria prima para duas selecções de nível. O sorteio da fase final, em Paris, a 8 Janeiro 1982, é uma anedota e diz bem do estado da (nossa) nação. Há cerca de zero representantes a nível federativo. Ribeiro de Magalhães convive com problemas de transportes, César Grácio faz-se pai e assiste a mulher na maternidade. Estamos isolados. E também estamos no pote 3, apanhamos Polónia (1) mais URSS (2). Sacanagem. Sobra a Finlândia (4). Menos mal, vá.
É precisamente lá, em Helsínquia, o arranque da qualificação. A figura do jogo é Oliveira, indiscutivelmente. Com a assistência para o 1-0 de Nené e a execução perfeita do 2-0 na transformação de um livre directo, o 10 do Sporting ganha balanço para uma época atípica em que junta o cargo de goleador ao de treinador, com a saída abrupta do inglês Malcolm Allison, campeão nacional e vencedor da Taça de Portugal em Maio desse ano. No onze, oito benfiquistas perante tão-só 3211 espectadores no Olímpico de Helsínquia e um frio de rachar (três graus negativos), Portugal espanta o seleccionador polaco Antonio Piechnicek: ‘Que grande equipa, com excelentes jogadores e uma técnica apuradíssima.’
O jogo seguinte é em casa, vs Polónia. Atenção, a Polónia é a favorita. Por mérito próprio. Afinal, acabara o Mundial-82 em terceiro lugar, eliminada na ½ final pela Itália. Sem algumas estrelas como Lato, Zmuda, Kupcewicz e Smolarek, os polacos acusam algum nervosismo, bem evidente nos constantes protestos dos avançados Boniek e Dziekanowski, que chegam a pegar-se com Otto Glória. Sem querer misturar alhos com bogalhos, Portugal reage bem ao apoio dos 80 mil entusiastas na Luz (receita recorde de 21 mil contos) e marca cedo, por Nené, assistido pelo inevitável Oliveira. O maestro do Sporting (que falha a 1.ª mão da supertaça, no dia anterior em Braga) seria também o responsável pelo passe para o 2-0 de Gomes, a meias com Król. Que seria o autor do 2-1 final, já ao cair do pano, quando os polacos andam mais para lá do que para cá.
Faz-se uma pausa no apuramento e organizam-se dois particulares em menos de uma semana. O carrossel de emoções é gritante. Em Guimarães, apanhamos 3:0 da França de Platini. No Restelo, ganhamos 1:0 à RFA numa das mais repentinas e improvisadas proezas. Se acrescentarmos mais dois factos, como o do seleccionador Oto Glória se encontrar demissionário, à espera de melhores condições de trabalho por parte da federação, e o da ausência de benfiquistas, à excepção de Bento, por via do compromisso europeu para a Taça UEFA, então o 1-0 tem ainda mais encanto. O golo da vitória é de Dito, titutar no onze de Otto como trinco. A jogada é de Costa, pela esquerda, e o cruzamento apanha o bracarense solto de marcação na marca de penálti. O remate seco apanha Schumacher em contrapé e garante uma alegria imensa junto do povo português.
Ainda antes de jogar com a URSS para o Euro-84, somos meninos para ensaiar a escola de Leste vs Hungria. Empatamos 0:0, algo inédito desde Outubro 1980 (há 19 jogos, portanto). Com uma equipa forte no confronto físico e mais preocupada com a defesa, os portugueses abdicam do contra-ataque e passam a ser os donos da bola. Esse domínio dá-nos mais tudo, entre posse de bola e oportunidades de golo, duas delas salvas na linha pelas laterais Kocsis e Garaba a remates de Carlos Manuel (10′) e Nené (36′). Já na segunda parte, Gomes proporciona a defesa da noite a Bela Katzirz, que relegara o sportinguista Meszaros para o banco. Só no fim é que a Hungria se aventura por aí além e atira ao poste do estreante Silvino, por Hannich (87′).
Moscovo, aí vamos nós. E que cegada. É uma das tardes mais negras do nosso futebol. A URSS de Lobanovsky dá um pisão memorável e saca Portugal do primeiro lugar do grupo. Se o 2:0 ao intervalo já é um resultado negativo, o 5:0 é uma lição de vida. Com o apoio de 85 mil espectadores no Estádio Lenine, os soviéticos galgam terreno desde cedo e marcam aos 16′, por Cherenkov, num lance em que Bento se sai mal ao cruzamento de Blokhin. Aos 40′, Rodianov faz o 2:0 num outro cruzamento, este de Baltacha, em que Bento analisa mal o lance. Pelo meio (25′), Cherenkov atira uma bola à barra. Na segunda parte, o festival de golos é uma fartura ainda maior. Começa Deminaneko com uma arrancada fulgurante pela esquerda em que leva Pietra mais Bento pelo caminho. Segue-se o bis de Cherenkov, após fintar Bento e atirar a contar com a baliza deserta, e o 5:0 do lateral-esquerdo Larionov.
A barraca atinge proporções ainda mais dantescas com o 4:0 do Brasil em Coimbra. Mais uma tratado de bola dos ‘maus’. A confusão instala-se antes até do jogo. Então não é que um dirigente conimbrense diz à agência ANOP que o Portugal-Brasil não passa na RTP porque “não há nada que pague um estádio cheio” e, afinal, a televisão transmite as imagens ao vivo e a cores de um estádio quase vazio. Com o preço exagerado dos bilhetes para a bancada central na ordem dos 1500 escudos, o público prefere o factor casa (leia-se, sofá) e só se vêem cinco mil almas para aplaudir o Brasil de Carlos Alberto Parreira em tour pela Europa. Só o Brasil? Sim, Portugal merece ser apupado. Porque Otto Glória não convoca os jogadores de Benfica e Porto. E porque a exibição é francamente má. Sem os melhores (Bento, Carlos Manuel, Diamantino, Chalana, Eurico, Lima Pereira, Gomes, Jaime Pacheco e por aí fora), o Brasil faz o que quer e dá quatro secos num jogo apitado pelo português Mário Luís, em estreia internacional.
Já com Fernando Cabrita no lugar de Otto Glória, a selecção inicia a segunda volta da qualificação para o Euro-84 em grande estilo com um 5:0 à Finlândia no José Alvalade. Se a estreia do sportinguista Futre suscita os mais diversos comentários favoráveis, até porque só tem 17 anos, seis meses e 23 dias, o que faz dele o terceiro mais jovem de sempre, a figura é o benfiquista José Luís. Além de ser o outro estreante da noite, é titular e junta um golo a uma assistência. Antes desse festival particular, o herói da noite é Jordão. Um jogador à parte. Com a muralha finlandesa bem fechada, o sportinguista arranca um pontapé do meio da rua e desbloqueia o marcador. A partir daqui, é um regabofe de golos, um deles na própria baliza, e aplausos. À falta de dois jogos (Polónia mais URSS), bastam-nos duas vitórias para chegar ao Euro-84. Deixem-nos sonhar.
Alvo de muitas críticas na hora da convocatória, Fernando Cabrita coloca em Wroclaw uma equipa com sete portistas mais quatro benfiquistas e ganha um jogo importantíssimo rumo ao Euro-84. Com o golo solitário de Carlos Manuel (o primeiro de muitos realmente importantes), Portugal reforça o segundo lugar do grupo 2 e já só está a um ponto da URSS, com a qual iria jogar em Novembro, na Luz, para discutir o bilhete para a fase final. Se é certo que os polacos jogam sem a estrela Boniek, o guarda-redes Bento vê uma bola no poste por Smolarek e ainda um corte in extremis de Eurico em cima da linha de golo. Excepção feita aos sustos, a vitória é alcançada à passagem da meia-hora com uma rotação perfeita de Gomes na direcção de Carlos Manuel. Na cara de Mlynarczyk (ainda longe de pensar na transferência para o Porto), o benfiquista atira sem hipótese e garante o prémio de 250 contos para cada jogador.
Pronto, eis-nos a 13 Novembro 1983. Só a vitória interessa e assiste-se a uma das melhores tardes de sempre do nosso futebol. Com uma exibição personalizada, Portugal carimba o passaporte para o Euro-84, algo que muitos julgam impossível após o desastroso 5:0 em Moscovo. Num Estádio da Luz composto pela presença de 55 mil espectadores, a selecção entra ao ataque enquanto a URSS de Lobanovsky opta por um futebol mais defensivo, normal para quem basta um empate na arte da qualificação.
Perto do fim da primeira parte, um rasgo de génio de Chalana é travado por Borovski no limite da área. O árbitro francês Konrath é amigo e assinala penálti perante os incrédulos soviéticos. Jordão, com toda a calma do mundo, engana o lendário Dasaev e apura Portugal para o Euro-84. É ainda Jordão quem atira uma bola ao poste (71′), numa demonstração inequívoca da nossa superioridade. Contra todas as expectativas, a URSS está fora. Aqui que ninguém nos ouve, a qualificação para o Euro-88 é a mais formidável de sempre.
Dos sete grupos, só o 1 é resolvido antes do tempo. Obra da Bélgica, largamente superior a Suíça, Escócia e RDA. De resto é um forrobodó. No grupo 2, Portugal elimina URSS in extremis. No 3, a Inglaterra é abalroada pela Dinamarca. O 1:0 de Simonsen em Wembley é o toque de mestre. No 4, há três selecções por um lugar. No último dia, Jugoslávia vs Bulgária em Split (de fora, Gales torce por um empate). Aos 89 minutos, 2:2. Tu queres ver?! No instante seguinte, a Bulgária falha o terceiro. Aos 90’+1, Radanovic cabeceia para a glória, 3:2 para a Jugoslávia.
No grupo 5, a campeã mundial Itália é uma pobreza inaudita e acaba em quarto lugar. Atrás de si, só Chipre — contra o qual empata 1:1 em Limassol. A movida é do pior que há, com realce para um 3:0 em casa vs Suécia, bis de Strömberg, então no Benfica. O primeiro lugar discute-se a Leste, entre Roménia e Checoslováquia. A decisão é em Bratislava, 1:1 com dois golos nos últimos oito minutos por Geolgau e Luhovy. Passam Bölöni e C.ª.
E a RFA? Quase quase quase soçobra à Irlanda do Norte, no grupo 6. Tire-se o chapéu aos rapazes da ilha, vencedores dos dois jogos frente à vice-campeã mundial com duplo 1:0 (golos de Stewart em Belfast e Whiteside em Hamburgo). No último dia, a RFA só tem de ganhar à Albânia em Saarbrücken. Aos 22 minutos, 0:1 por Tomorri. No quadradinho seguinte, 1:1 de Rumenigge. Ao intervalo, 1:1. A agonia (alemã, claro) acaba aos 82′, por obra e graça de um ilustre desconhecido chamado Strack.
Por fim, o grupo 7. A Holanda arruma as suas contas com 5:0 vs Malta em Roterdão e obriga Espanha a ganhar por 11 ou mais frente ao mesmo adversário daí a quatro dias, a 21 Dezembro 1983. O impensável acontece no Benito Villamarín, com 12:1. Ya, doze-a-um. Santillana marca quatro, Rincón idem idem. È um festival sem paralelo e a UEFA acaba aí com os jogos à lagardère. Ou seja, a partir daí, tudo no mesmo dia e à mesma hora.
Sete apurados mais a anfitriã França. Até ao Europeu, o nosso primeiro da história, Portugal faz dois particulares. O primeiro é vs Jugoslávia, no dia em que Nené cumpre a 64ª internacionalização e apanha Eusébio mais Humberto Coelho no primeiro lugar do ranking dos mais utilizados de sempre. O palco é o Jamor com início às 1506. Porquê o atraso de seis minutos? Fácil, Bento aparece em campo equipado de azul, tal como os jugoslavos, e depois de amarelo, da mesma cor do guarda-redes jugoslavo. É só rir. O árbitro fecha os olhos e não se fala mais disso. A primeira parte é intensa, com quatro golos, dois deles de Jordão, ambos com a chancela de Carlos Manuel. A Jugoslávia também marca dois, em lances de livres estudados. Na segunda parte, e já com Ivkovic à baliza, decide um penálti de Stojkovic, a castigar falta evidente de Bento. No diz que diz, os jugoslavos espantam-se com o futebol de Chalana.
A cinco dias da estreia no Euro, há um Luxemburgo-Portugal. Dos 10 mil espectadores, nove mil pertencem à comunidade emigrante portuguesa. E nem assim. Nem com essa ajuda a selecção dá um ar da sua graça. É mais uma desgraça, sobretudo na primeira parte. Só para se ver, ao intervalo, os luxemburgueses ganham 1-0, obra da “sinfonia” de Wagner, entrado em campo aos oito minutos. No segundo tempo, já sem Gomes em campo (o que motiva uma acesa troca de palavras com Morais, um dos três adjuntos de Cabrita), a reviravolta a cargo de Eurico e Diamantino em tão-só seis minutos.
Euro-84, agora é a valer. Vamos lá cambada, todos à molhada, qu’isto é futebol total. Na estreia, a campeã europeia em título. A RFA mete medo. Basta o nome. Ou simplesmente as camisolas brancas. Tudo aquilo é história, rigor e títulos, muitos títulos. Surpresa das surpresas, acaba como começa. Ya, 0:0. Ao apoio dos emigrantes portugueses nas bancadas em Estrasburgo, junta-se o futebol de Chalana, eleito pelos jornais franceses como o melhor jogador da primeira jornada do grupo 2. Portugal surpreende num jogo equilibrado em que Bento até nem acumula trabalho por aí além e Schumacher é obrigado a evitar o golo de João Pinto, ao cair do pano, numa altura em que Gomes já está em campo, no lugar de Jordão. Sobre o seu lugar no banco, o comentário é mordaz. ‘Puseram devidamente a questão e aceitei-a: sou um goleador e, se não queríamos marcar golos, é natural que tivesse sido eu o suplente.’
Segue-se a Espanha. E o ‘quem remata assim não é gago’. A frase entra-nos pelos olhos, passe a expressão, através da RTP. É o primeiro momento sublime de Portugal em fases finais do Euro. Após o intervalo, Chalana perde a paciência de estar colado às alas e vai para o meio. O homem recebe a bola e solta-a telepaticamente para Álvaro, seu companheiro de uma vida no Benfica. A correria do lateral pela linha tem um fim e é aí que a bola viaja para a entrada da área, onde está Sousa. O homem do pontapé forte, imagem de marca bem vincada no mês anterior com aquele golo à Juventus na final da Taça das Taças, pensa e executa. Na perfeição. A bola descreve um arco lindíssimo, sem hipótese para Arconada. É o 1-0, o do “quem remata assim não é gago”. Segue-se o empate de Santillana e, agora, Portugal tem de ganhar à Roménia para chegar à meia-final.
Nem sempre um apagão é sinónimo de desnorte. Basta uma voz para fazer-nos sorrir, meio incrédulos. Rebobinemos: dois jogos, dois empates. À terceira é de vez? Como não há voos directos de Nantes para Lisboa, resta-nos ganhar para sonhar. No onze, finalmente a ousadia de juntar Gomes a Jordão no ataque. Nada feito, a bola não lhes chega. Aos 63’, ainda com o teimoso 0:0, Cabrita alarga o ataque com Nené. É ele o herói, na noite em que iguala Eusébio como o mais internacional de sempre (64). Canto para Portugal, na direita. Sousa marca-o ao primeiro poste, Bölöni (esse mesmo) afasta de cabeça. Sousa recolhe a bola e aproxima-se da área antes do cruzamento com o pé direito para o coração da área, onde, caaabuuuuummm, apagão. A voz do jornalista da RTP ouve-se claramente, a imagem é mentira. Quando esta reaparece, Nené já está a festejar ao seu estilo, sóbrio. O seu remate é história. Com agá grande.
Conseguido o apuramento para a meia-final através do segundo lugar do grupo, atrás da Espanha, vitoriosa em cima do apito final vs RFA (1:0 de Maceda), a selecção joga com a anfitriã França em Marselha. É um dos melhores jogos de sempre. De Portugal. De França. Dos Europeus. O lateral-esquerdo Domergue, talvez o menos mediático jogador de uma França recheada de artistas, abre o livro na transformação de um livre directo a que Bento só vê a bola com os olhos, à espera de um remate de Platini.
A resposta de Portugal demora. Quando chega, é aos pares. Nos dois lances, cruzamento de Chalana e pontapé de Jordão – um de cabeça, outro é um passe picado por cima de Bats. As bandeiras portuguesas agitam-se, a final está ali à mão de semear. Nené tem o 3-1 nos pés, só que Bats adivinha-lhe os intentos. Puxada pelo seu público, a França empata por Domergue (mon Dieu, dommage, um bis) e, no último instante, dá a volta por Platini após insistência de Tigana.
Fim do sonho? Nem por isso. O Mundial-86 está aí ao virar da esquina e também queremos participar.
(a negrito, os jogos fora)
Finlândia | 2:0 | Nené / Oliveira |
Polónia | 2:1 | Nené / Gomes |
URSS | 0:5 | |
Finlândia | 5:0 | Jordão / Carlos Manuel / José Luís / Oliveira / Ikäläinen (pb) |
Polónia | 1:0 | Carlos Manuel |
URSS | 1:0 | Jordão |
RFA | 0:0 | |
Espanha | 1:1 | Sousa |
Roménia | 1:0 | Nené |
França | 2:3 | Jordão-2 |