Vítor Hugo. ‘Marquei dois golos na primeira vez que dividi o ringue com o Livramento’
Vítor Hugo, 53 anos de idade. Portista dos sete costados, homem de conhecimento enciclopédico e senhor com voz do norte, carregada de sentimento. Ponto de partida: é campeão nacional pelo Porto em 1983, 1984, 1985, 1986, 1987, 1989, 1990 e 1991. Então, e 1988? É campeão nacional pelo Novara, em Itália. Nove, no-ve, n-o-v-e vezes seguidas. Só assim como quem não quer a coisa, é campeão do mundo (1991) e bicampeão europeu (1987, 1992). Como selecionador nacional, repete a proeza do título mundial (2003). O contacto telefónico é um mimo. Ligamos-lhe às 11h36 e ele responde-nos às 11h37 para ouvir de nossa justiça. “Vou ter um dia daqueles, já lhe digo alguma coisa.” Plim, plim. Mensagem para aqui, mensagem para ali, entre reuniões, cinema e jantar (tanto da nossa parte como da do Vítor). A conversa propriamente dita só se faz às 00h16.
Finalmente, ò Rui. Diga lá.
Daqui a nada é o clássico Porto-Sporting.
Está quase.
Estamos a colecionar memórias desportivas de alguns craques. O que fazias em criança?
Ia às Antas.
Sozinho?
Nãããã, levado pelo pai e pelo avô. Lá ia todo contente, domingo sim, domingo não.
Apanhas que fase?
A má [e começa a rir-se]. Nasci em 1963 e só fui campeão nacional em 1978. Estás a ver a demora em festejar um título, não estás?
Pois, 15 anos.
Lembro-me perfeitamente de um Porto 0 Belenenses 4 [Janeiro 1975]. Ou melhor, lembro-me bem do autogolo do Alhinho, o 4-0. Nessa tarde, perdi-me pela primeira vez.
Então?
O meu avô levou-me a casa de banho e pediu-me para esperar à porta. O tempo foi passando e eu perdi-me no meio de tanta gente. Às tantas, tive de ir ter com um polícia junto às bilheteiras e dizer-lhe que estava perdido. Perdido de amores pelo Porto, claro está. [este homem sabe divertir a malta]
E descobriram-no?
O meu pai e o meu avô estavam já doidos à minha procura na Avenida Fernão Magalhães e acabaram por me encontrar. Porto 0 Belenenses 4, autogolo do Alhinho, inesquecível.
E mais?
Nesse ano, acho, também vi aquele Porto 2 Sporting 3.
O do nevoeiro?
Esse mesmo, quando o apanha-bolas mete a bola na baliza do Damas e faz o 2-2. Xiiiii, agora falei no Damas e lembrei-me dos tempos que me cruzava com ele em Alvalade.
Em Alvalade?
Sim, eram lá os estágios da seleção nacional de hóquei em patins. Às vezes, até dividíamos o balneário com a equipa de futebol e tudo. Para banhos e massagens. Era ver a malta toda junta, tempos engraçados, divertidos. Daí ter conhecido melhor o Damas. E o Jaime Pacheco, por exemplo. Estávamos ali e, de repente, íamos beber um café ao pé do estádio. Assim, na boa. Sempre na descontração.
Belos tempos.
Grandes tempos. Havia rivalidade. Muita mesmo, e também havia este clima de respeito e admiração entre todos nós.
De volta às memórias das Antas. Estavas lá no dia do título de campeão em 1978?
Pois claro que sim, era o que faltava. Começámos a perder com um autogolo de Simões. Bolas, hoje só me lembro de autogolos. Depois, o Ademir fez o empate e libertou-nos. Começámos aí a ser campeões. Tenho a noção de que o guarda-redes do Benfica era o Fidalgo, natural aqui de Vila Nova de Gaia. Que alegria, aquele golo.
E era comum o Vítor Hugo vir a Lisboa ver a bola?
Na época do Mourinho, vi um Benfica 0 Porto 1, golo do Deco. E fui a Alvalade ver um Sporting 0 Porto 1, golo de Costinha. Vi ao lado de um amigo sportinguista. Gostava de rever esse jogo, foi uma exibição memorável. Aquele Porto era fantástico.
E o seu do hóquei em patins, nem se fala.
Esse Porto é maravilhoso.
Quando é que chega lá?
Fui do Académico de Espinho, onde fiz a formação toda e fui campeão nacional de juniores. Aos 16 anos, jogámos com o Sporting no torneio de Espinho e empatámos 4-4. Marquei dois golos na primeira vez que dividi o ringue com o Livramento. Brrrrr, que emoção.
O Livramento era isso tudo?
Se era? É o maior, ainda hoje. Que jogador, que classe. A figura do norte era o Cristiano Pereira, a do centro era o Livramento. Na altura em que assinei pelo Porto…
Quando foi isso?
No último ano do presidente Américo de Sá, antes da chegada do Jorge Nuno [Abril 1982]. Estávamos em 1981 e o Porto nunca tinha sido campeão nacional. Nem o Porto nem nenhuma equipa do Porto. Até equipas das colónias tinham sido campeãs, como o Ferroviário de Lourenço Marques e o Grupo Desportivo de Lourenço Marques. De resto, só equipas do centro: Benfica, Sporting, Sintra, Campo de Ourique, CUF, Paço d’Arcos. Do Norte, zero. Chegámos ali a 1982-83 e acabou-se.
E era fácil o pessoal de Lisboa acomodar-se a esse registo?
Uiiiiiii. No início, acharam graça a um rival. Depois, já não.
A tal rivalidade. Muito forte?
Às vezes, sim. Havia jogos em que o pessoal perdia a cabeça.
Então?
Chegámos a receber taças no balneário, ligeiramente amolgadas.
Quando?
Na Luz, final da Taça das Taças 1983. O Benfica começou a ganhar: 1-0, 2-0, 3-0, 3-1, 4-1. O speaker estava todo animado, os adeptos também. De repente, 6-5 para nós. Com o 2-2 nas Antas, fomos os campeões. E recebemos a taça no balneário.
A nível nacional, FCP campeão sempre?
Entre 1982 e 1991, oito títulos em nove anos.
Só falhou 1989. Está o Vítor Hugo em Itália, não é?
O campeonato italiano era o mais charmoso. Um pouco à imagem do futebol: jogavam lá os melhores do mundo. Os italianos, porque eram os campeões do mundo. Depois, os espanhóis. O campeonato era mesmo bom, top.
E o Novara ganhou?
Fomos campeões e ganhámos a Taça de Itália. Na Liga dos Campeões, perdemos a final para o Liceo da Corunha. Tive três desilusões na carreira: a primeira, aquela derrota na final do Europeu de Juniores com a Espanha, em que estávamos a ganhar 3-1 muito perto do fim; a segunda, uma derrota na final do Mundial-89, em que marcamos o 1-1 no último minuto e a Espanha faz o 2-1 na jogada seguinte; a terceira, essa final da Liga dos Campeões. Revejo essa final hoje e vejo um penálti claro sobre mim. Um defesa do Liceo puxa-me claramente o patim, o árbitro, que, por acaso era português, nada. Nem me vou alongar sobre isso, não quero.
Até porque o Vítor tem duas Ligas dos Campeões.
Ambas pelo Porto, uma com o Novara, outra com o Nóia. Sempre grandes jogos, só vitórias, com o pavilhão cheio.
Só vitórias?
Nessas finais a duas mãos, ganhámos sempre: 6-0 e 5-2 ao Nóia, 5-3 e 7-5 ao Novara.
Olha, o Novara outra vez. Novara é onde dentro da bota da Itália?
A meio caminho entre Milão e Turim.
E o Vítor ia ver os jogos do Milan?
Não, os da Juventus.
Como assim?
Pois, o Milan tinha Van Basten, Gullit, Rijkaard, Baresi, Ancelotti, o actual treinador do Bayern. Só que a Juventus…
Era a Juve do Rui Barros?
Não, isso é o ano seguinte. A minha Juventus é do Tacconi, Cabrini, Scirea, Vignola. Foi um ano muito mau, só que o Novara era como a Juventus: a equipa com mais títulos.
Agora é que estou a pensar: era da Juventus? A Juventus que ganhou a Taça das Taças 1984 ao FCP?
Bem sei, bem sei. Torci-me todo [gargalhada bem sonora]. O pessoal do Novara era quase todo da Juventus e, olhe, contagiou-me. Daqui a umas semanas, há outro Porto-Juventus para a Liga dos Campeões. Já tenho amigos italianos a falarem-me desse jogo, que vêm cá e tal.
Como é que nasce a paixão do hóquei?
Desde cedo. Era miúdo e lembro-me perfeitamente de ouvir os relatos na rádio. Em 1974, pára tudo: dá o Portugal-Espanha na televisão. É o Mundial e somos campeões. Três anos depois, o Europeu é aqui no Porto e ia ver os jogos ao pavilhão.
Qual o pavilhão mais quente?
A nave de Alvalade era qualquer coisa. Os adeptos do Sporting enchiam aquilo e criavam um bom ambiente. Levantámos lá a Taça das Taças 1982. Foi uma final 100% portuguesa, muito boa. Na primeira mão, ganhámos 13-4 no Porto e marquei oito golos ao Ramalhete.
Isso era assim, aos oito de cada vez?
Nããããã [risos], apenas exceções à regra. Marcava aos quatro e aos cinco.
C’um caneco. Li algures que o Vítor Hugo foi uma vez o melhor marcador do campeonato nacional com golos em todos os jogos.
Fiz isso uma vez, sim. E repeti a dose num Europeu de seleções e também num Mundial. São marcas que nos ligam para sempre.
Obrigado Vítor, grande abraço.
Obrigado, abraço.
in Observador, Jan 2017